Cap.1 - O recomeço

ARCO 1: A FLORESTA DO RENASCIMENTO

A umidade carregada pelo ar trazia consigo um aconchegante prazer em receber a presença dos ventos tranquilos passando livremente entre o verde, com as folhas chacoalhando, uma melodia harmoniosa trazia paz e ritmo aos animais que ecoavam canções distintas, timbres diversos e desconexos, contudo, de alguma forma tal sonata se encaixava perfeitamente diante a paisagem selvagem, a manhã tinha seus véus de luz exibidos pelo reflexo das gotículas do restinho do sereno da noite passada nas copas das árvores ou entre as folhas secas no chão, o calor fazia subir uma névoa refrescante que começava a se dissipar acima das árvores.

Uma gota de orvalho em queda. O verde em contraste do amarelo entre as folhas mais antigas até as que ainda cresciam, flores diversas tanto entre os galhos quanto entre a mata.

O voo de uma arara cortando a névoa com suas penas em tom azulitas chegavam a se camuflar no azul dos céus, os rios de águas doces que corriam como lágrimas sem fim, desenhavam a vida exorbitante que existia sobre aquele local por longos quilômetros.

Tamanho verde que consome o infinito trazendo a beleza de um mar vivo de esmeralda.

Tamanha diversidade passava de canto a canto acompanhando o ciclo da vida, de sapo-aru para uma jiboia, de tarântula para onça pintada, de solidão para companhia, ao ser possível ver uma silhueta acatada pela natureza.

Seu corpo não respondia, mas sua consciência se encontrava em algum lugar, por suas orelhas entravam o som dos animais próximos, às formigas carpinteiras passavam por cima de suas coxas em fila, suas mãos sentiam as folhas secas no solo ressecado, o cheiro amadeirado que entrava por suas narinas trazendo consigo o odor da floresta, seu único olho fechado, tentando bisbilhotar pela escuridão se mexia inquieto por debaixo de suas pálpebras, talvez um pesadelo ele estivesse tendo.

(A) Um deslocamento de ar agrediu as árvores e um forte som perturbou seus ouvidos, o ruído de uma aeronave passando em alta velocidade desamparou a harmônica trilha sonora que aquele ambiente ancestral carregava consigo até então.

De um lado seus cabelos vermelhos tocavam os frutos caídos de guaraná, de outro suas mechas brancas refletindo um tom prateado sob o véu de luz, e no encontro do vermelho com o prata a silhueta de duas mechas de cabelo se cruzando, uma vermelha e outra prata, pareciam desenhar um peixinho acima de sua nuca, seus fios balançavam ao vento em comunhão com as flores que desciam rodopiando da árvore carregada de frutos semelhantes a olhos.

Seu rosto no chão, exibia um tom inocente em contraste com seu corpo já maduro, o físico de um guerreiro, carregado por um jovem com uma tatuagem incomum em seu peitoral esquerdo, que estranhamente estava brilhando.

A dor dos cacos de vidro que por sua pele estavam saindo até caírem no chão, incomodava seu subconsciente, contudo não foram o suficiente para fazê-lo despertar, mas as feridas abertas, cujo sangue se recusava a vazar, logo desapareceram com uma cicatrização rápida.

Sua única veste era uma sunga branca, uma prótese preta que integrava parete de seu tronco incluindo seu braço direito, tal material era facilmente visível em contraste com seu tom de pele branca, o mesmo material escuro era encontrado em alguns pontos de sua coluna, e cobrindo seu olho direito com uma estrutura semelhante a um tapa olho.

Misteriosamente uma densa nuvem escura se aproximava de sua presença espantando os animais próximos ao local, que se acovardaram dando um fim a qualquer resquício de barulho que ainda restava, nem araras, grilos ou sapos ousavam em romper o silêncio que ali se estabeleceu junto do temor que aquela densa fumaça trazia.

Da escuridão daquilo que parecia ser um tapa-olho, emergiu uma luz vermelha ardente, semelhante a brasas incandescentes. A silhueta majestosa de um olho de dragão surgiu, projetando-se de forma imponente e enigmática, como se fosse capaz de penetrar até mesmo as sombras mais densas.

A penumbra avançou sorrateiramente, envolvendo os raios de luz que já começavam a se dissipar. Dentro desse manto sombrio, olhos maliciosos pareciam perfurar o jovem rapaz caído no chão.

A expressão 'sonhar acordado' nunca pareceu tão pertinente como naquele momento, pois o surrealismo da situação rivalizava com o brilho vivo do sol, agora completamente eclipsado.

As silhuetas sinistras se destacavam entre as sombras, instilando medo em seu espírito. Era como um pesadelo ganhando vida diante de seus olhos, uma perturbadora incursão do irreal no mundo real. Embora suas bocas permanecessem imóveis, suas palavras ecoavam em sua mente com uma enorme clareza.

- Nós o encontramos, Bertari! Avise ao monarca das sombras; ele certamente ficará satisfeito em saber que Zero ainda respira.- proclamou uma voz distorcida, permeando o ar com uma aura de malícia.

- E a armadura de Seraph também!- acrescentou outra silhueta, com uma voz carregada de sinistra reverência.

- Não esperarei pelo mestre. Eu mesmo vou arrastar esse verme de volta à base conosco.- anunciou a voz deturpada de uma das sombras, enquanto se aproximava lentamente do jovem rapaz.

Todos avançavam em direção à sombra acolhedora que se formava sob a grande amendoeira e o pé de guaraná, onde o garoto jazia deitado. Seu olho direito observava tudo com agudeza, enquanto sua consciência lutava para romper a barreira que o prendia à inatividade. Seu corpo permanecia imóvel, uma casca vazia ansiosa por ser preenchida pela vontade incansável de sua mente.

As mãos monstruosas e disformes das criaturas sombrias se aproximavam cada vez mais, enquanto sua consciência clamava desesperadamente por movimento: ‘Mova-se, por favor, mova-se!', ecoava em sua mente como um mantra desesperado.

A garra sombria estava prestes a tocar em seu braço quando, de repente, uma voz rompeu o silêncio:

- Alô, alô!?- trazendo consigo uma esperança em forma de som. Era uma voz inocente e infantil, que acariciou o coração do rapaz, desviando a atenção das mãos maliciosas.

Por algum motivo inexplicável, as mãos sombrias recuaram em espanto, deixando apenas uma estendida teimosamente. Seu proprietário emergiu das sombras, dissipando-as com sua presença imponente. Tinha cerca de dois metros e meio de altura, com uma postura firme que inspirava respeito. Seus punhos estavam adornados com braceletes de ouro reluzente, enquanto sua cabeça, que lembrava a de um boi, ostentava cinco chifres, destacando-se como uma figura imponente diante das árvores.

Mesmo voltando-se na direção oposta, o olho do jovem rapaz conseguia discernir a silhueta de uma criança com pequenas asas, sentada em uma grande cápsula prateada presa entre os grossos galhos da amendoeira próxima a ele. A luz do Sol, ao romper as sombras como holofotes, banhava a criança em seu esplendor, revelando seus humildes um metro de altura e um corpo fofinho, saudável. Seus cachos se emaranhavam sobre os olhos, mas não escondiam seu sorriso sapeca. Pulando animadamente, ele se colocou de pé atrás do rapaz deitado, encarando a imponente silhueta demoníaca gigante à sua frente com a naturalidade de quem enfrenta horrores diariamente, como se fosse parte de seu cotidiano.

A monstruosidade retribuiu o olhar do jovem anjinho com uma expressão amedrontadora, enquanto erguia um machado negro que se igualava em altura à sua própria. Sem piedade, a criatura proclamou com voz trovejante:

- Esse pó da terra nos pertence! O destino dele já está nas mãos do nosso soberano... Saia daqui antes que eu decida cortar essas suas asas medíocres!

O anjinho, em resposta, começou a rir e a zombar, sua voz carregada de deboche enquanto retrucava:

- Pertence a vocês? O destino dele pertence a vocês? Hihihi! Deves ser apenas um bobo da corte, pois tua ignorância só me faz rir...

- Basta!- Rugiu uma voz macabra entre as sinistras silhuetas.- Vamos levá-lo de volta, independentemente de suas intenções. Diferente de vocês, nós cuidamos deles e a alma desse aí já foi entregue ao nosso soberano! Não há mais salvação para ele!

Os olhos da criança permaneciam sempre fechados, mas parecia capaz de enxergar cada um que estava à sua frente. As mãos do anjinho tentavam tapar o sorriso perverso em seu rosto, até que, finalmente, ele falou:

- Vocês são corajosos. Parecem não ter medo da morte... Gostei de vocês! Vamos fazer um jogo bem divertido, então! Se qualquer um de vocês conseguir matar esse menino, eu deixo vocês ficarem com ele e até mesmo devolverei a alma dele ao corpo... Mas se ele remover mais do que um peão de vocês... Vocês perdem, e eu protegerei o pó da terra. Darei a vocês o controle sobre alguns animais que invocarei; esses serão seus peões. E para ser justo, não poderão usar seus poderes contra ele. Se quebrarem as regras... Bem, hihihi... Eu terei que interferir no nosso joguinho...

A voz macabra avançou em fúria na direção do anjo, brandindo seu grande machado:

- Insolente! Se defende em teu soberano para querer impor isso a nós? Estou enjoado de sua soberba. Um anjinho insignificante como você morrerá com apenas um golpe! Resolverei isso eu mesmo!

Mas, como se nada daquilo fosse capaz de amedrontá-lo, a criança simplesmente estalou os dedos, e o vulto que disparou contra ele desapareceu subitamente, como num truque de mágica. Naquele momento, todos se calaram, envoltos em uma tensão que pairava no ar.

O anjo caiu na gargalhada, aquele ser tão pequeno, depois de demonstrar um pouco de seu poder, parecia maior que todos eles ali. Ao recuarem vagarosamente, tomaram um susto ao esbarrarem com outro anjinho de mesma aparência, que estava logo atrás deles.

- Cuidado aí, moço! Por acaso os demônios não olham para onde vão? Hihihi!

Os demônios olhavam assustados para o clone do anjo em suas costas, que parou de rir e em tom sério, disse:

- Vocês entenderam errado... Isso não foi uma pergunta. Vocês vão brincar comigo! Eu estou ordenando, e como bons cachorrinhos que são, vão me obedecer. Mas acho que não deve ser um problema para vocês... Já que vocês só servem para isso... Obedecerem calados!

A escuridão se dissipou com a luz emanada por vários clones daquele ser celestial. Ele estava sentado no galho das árvores, na grama, nas folhas secas, voando ao redor, sua presença estava por todo lugar, em todas as direções. Mesmo que de olhos fechados, ele mirava os vultos, que se acuaram. Oprimidos, grudaram as costas uns nos outros, encarando as várias cópias daquela criança, que ria do terror estampado nas faces dos demônios.

Os olhos dele se abriram, mas Zero não conseguia ver cor ou o que havia neles de tão apavorante. Sua visão apenas o levava ao sorriso imponente do anjinho, quase como se fosse obrigado a olhar apenas para abaixo do nariz daquela criança. Entre dentes escapou uma frase que deixou o rapaz intrigado:

- Eu confio em você, Davi... Lute!

Nos olhos daquele anjo, havia algo que amedrontava as bestas. Todos os anjinhos que os encaravam disseram empolgados:

- Não fiquem com medo... Hihihi, preparados? Vamos lá!- e num estalo de dedos marcante, todos os clones e demônios desapareceram em um instante.

O jovem, deitado no chão, foi despertado por uma tosse repentina, como se estivesse emergindo de um sonho profundo. Seu olho esquerdo se abriu, revelando um azul tão intenso quanto o céu naquela manhã, mas sua expressão era inquieta, como a de um dia tempestuoso prestes a explodir. Do lado direito, seu olho de dragão permanecia imóvel, observando atentamente cada detalhe ao redor.

Um tanto atordoado, ele se ergueu lentamente, apoiando-se nos joelhos. A floresta ao seu redor parecia ter retornado à normalidade, mas ele permanecia desconfiado, em constante estado de alerta. Buscando abrigo, ele se arrastou para trás, tentando entender se o que acabara de vivenciar era realidade ou apenas uma alucinação passageira.

As palavras pareciam distantes em sua mente, e tudo o que conseguia emitir eram grunhidos. Procurando desesperadamente por um lugar seguro, ele acabou por esbarrar em uma amendoeira. Assustado, virou o pescoço na direção da árvore, e foi então que avistou algo preso entre os grossos galhos: uma cápsula metálica com um grande vidro frontal quebrado.

O coração do jovem disparou ao perceber a presença da cápsula, e sua curiosidade se misturou com um profundo sentimento de apreensão. O que estaria dentro daquela estranha cápsula, e como teria parado ali, entre os galhos da amendoeira?

Próximo à parte inferior da entrada da cápsula, um nome estava gravado: "Zero". Sem perceber, o garoto pronunciou o nome em sua mente, produzindo pela primeira vez uma palavra coerente:

- Z... Zero... Argh!

Uma dor intensa e súbita de cabeça tomou conta dele, e ele caiu de joelhos, contorcendo-se enquanto uma enxurrada de informações invadia sua mente, agitando seus neurônios de maneira caótica.

De repente, entre as árvores ao longe, uma silhueta estranha chamou sua atenção. Uma onça pintada, coberta por uma aura negra, encarava Zero com uma ferocidade palpável. Não era fome que emanava dela, mas sim ódio. Seus dentes, afiados como lâminas, eram visíveis mesmo a metros de distância.

O garoto paralisado sentia algo que até o momento parecia ser novo para ele: Medo. Talvez fosse isso que impedia seus movimentos, o olhar demoníaco penetrava a alma do garoto, quando seu pé tentou recuar, o quebrar das folhas secas no chão o denunciaram.

Arrancando a terra do chão, a onça disparou em sua reta, e pulando para cima dele, seus olhos arregalados encararam as garras que voaram em sua direção, a morte parecia olhar em seus olhos, que admiravam a cena em câmera lenta.

Cada roseta daquela onça poderia ser contada facilmente, sua mente talvez estivesse tentando colocar o filme de sua vida para passar, mas não encontrando tais memórias, deixou o garoto a mercê de seus instintos diante daquela situação.

Algo dentro de si se manifestou, talvez uma memória corporal tivesse vindo à tona para ajudar nesse momento difícil, seu braço direito, se tacou frente a onça para defender sua investida, um movimento rápido o suficiente para impedir sua morte.

O antebraço de Zero entalou a boca da onça, que mordia ferozmente sem cessar, mas nenhum dano era causado ao material de seu braço direito, observando assustado a onça abocanhando seu braço em relutância.

O material do braço, era forte como o metal, mas não haviam fios e nem se quer se comportavam como partes robóticas, o tato era presente, uma sensação confusa vinha de sua armadura, mas não havia tempo para análise.

A situação piorou quando as garras da onça começaram a perfurar a carne de Zero e tocar os ossos de suas costelas, seu braço direito servia de escudo, tal como uma armadura, mas o resto de seu corpo continuava sendo de carne e osso.

A onça abria trincheiras em sua pele, enquanto o grito de desespero do rapaz ecoava pela floresta ao sentir as trincheiras feitas em sua carne.

Puxado pelo braço, Zero viu o feroz animal romper sua proteção por alguns instantes e avançar contra ele novamente. Desesperadamente, seu braço esquerdo agarrou o pescoço da besta e a arremessou para o lado com violência.

A onça foi lançada brutalmente contra uma árvore próxima. Em uma mistura de medo e admiração, Zero se arrastou para trás, mantendo os olhos fixos na criatura.

Ao vê-la se levantar, ele não hesitou em aproveitar a oportunidade e fugir na direção oposta, buscando escapar o mais longe possível daquela ameaça iminente.

A onça exalava uma aura ameaçadora, seus olhos transmitiam terror, e Zero sentia a intensa intenção de matar que emanava dela, como espinhos cravando em sua pele. Ela começou a persegui-lo, e sua velocidade logo a colocou na cola do garoto, ambos provocando um alvoroço na floresta, espantando os animais por onde passavam.

À medida que suas presas se aproximavam, a luta pela sobrevivência continuou, até que o terreno acidentado da região decidiu intervir.

Ambos caíram de um pequeno barranco, rolando até às margens de um rio que cortava o bosque. Embora não fosse grande nem profundo, as águas escuras pareciam esconder algo, mas não havia tempo para investigar.

A onça afundou a cabeça sob a água, e por um momento, Zero não pôde conter o riso nervoso diante da ironia da situação. No entanto, a fera emergiu, sua expressão agora repleta de fúria diante da reação do garoto, como se fosse uma afronta intolerável ao seu orgulho ferido.

Com um susto repentino, Zero tentou retomar a corrida, mas a água em seus pés reduzia sua velocidade, como se cada gota fosse uma mão invisível puxando-o para baixo. Cruzando o rio, ele vislumbrou um vulto sinistro se movendo sob as águas turvas, cada vez mais próximo. Mas o medo e a urgência o impediam de olhar para trás, pois sua mente estava fixada na outra margem, no escape que ela representava.

Para seu horror, a onça parecia dominar as águas tão habilmente quanto ele, sua figura sombria cortando a correnteza com uma destreza assustadora, seus olhos fixos em Zero com uma determinação selvagem. E junto dela, o vulto, se aproximando cada vez mais, revelando sua verdadeira forma através do olho de dragão, emanando uma energia escura que arrepiava os pelos da nuca de Zero.

Em um movimento que parecia coreografado pelo destino, o jacaré, envolto em sombras e ódio, surgiu das profundezas do rio, sua presença imponente desafiando até mesmo as leis da natureza. Seus olhos, mais sinistros que os abismos mais profundos, fixaram-se em Zero, como se o destino do garoto estivesse selado nas profundezas daquele olhar reptiliano.

Com um movimento rápido e mortal, o jacaré avançou, suas mandíbulas se abrindo como as portas do próprio inferno, prontas para devorar tudo em seu caminho. A onça, agora percebendo a ameaça iminente, lançou-se em um ataque feroz contra o garoto, seus rugidos ecoando como trovões nas margens do rio.

Num instante de desespero e adrenalina, Zero mergulhou fundo, as águas escuras daquele rio se tornando seu único refúgio diante da batalha iminente entre as feras. Sua mente gritava por escapar daquele pesadelo aquático, mas seu corpo respondia apenas ao instinto de sobrevivência, impulsionando-o para longe da superfície.

Enquanto as sombras dançavam sob as águas, o garoto lutava contra a corrente, seu coração batendo em descompasso com os rugidos distantes das feras. O que o aguardava do outro lado do rio, ele não sabia, mas uma coisa era certa: ele não poderia parar. Pois naquele momento, a única coisa que importava era a busca pela vida em meio ao caos selvagem que o cercava.

Já do outro lado, Zero se aproveitou mais uma vez da brecha criada e correu o mais rápido possível para a direção oposta da onça.

As marcas dos arranhões já haviam desaparecido, uma bênção em meio ao caos da floresta. Perdido entre as árvores imponentes, Zero buscava desesperadamente um sinal, uma orientação para seguir. Por um breve instante, avistou o anjinho ao longe, seu sorriso radiante reluzindo como uma estrela distante antes de desaparecer entre as sombras das árvores. Mas foi o suficiente para despertar uma centelha de esperança em seu coração, impulsionando seus passos na direção da última aparição daquela figura celestial.

A corrida era exaustiva, suas pernas queimavam com o esforço, mas Zero persistia, determinado a alcançar o que acreditava ser sua salvação. Finalmente, quando sentiu que havia conquistado uma boa distância, permitiu-se um breve momento de descanso. Sentou-se sobre um monte de folhas secas, recostando-se ao tronco de uma árvore, deixando-se envolver pela serenidade momentânea que o ambiente proporcionava.

O som de sua respiração ofegante ecoava no silêncio da floresta, acompanhado pelo ritmo acelerado de seu coração. As folhas sob seu corpo forneciam um conforto rudimentar, acalmando seus músculos tensos e cansados. Por um instante, Zero permitiu-se esquecer da batalha que enfrentava, buscando refúgio na tranquilidade efêmera que encontrara. No entanto, o peso das responsabilidades logo retornou, lembrando-lhe que a guerra ainda não havia acabado.

Enquanto contemplava a beleza selvagem ao seu redor, algo inesperado aconteceu. Uma pressão desconhecida se fez presente sobre seu colo, despertando-o do breve devaneio. Ao perceber as escamas que envolviam seu corpo, o cansaço se dissipou instantaneamente, substituído pelo puro espanto. Mais uma vez, sua percepção falhara, pois uma monstruosa jibóia agora se enroscava firmemente em torno de sua cintura, sua presença maciça e opressora como um lembrete cruel do jogo em que estava.

O pobre coitado, desesperado, se levantou, o peso da grande cobra não ajudava seus joelhos, que faziam força para tentarem se manter de pé, o sibilar que ela fazia no ar, só piorava o psicológico abatido do jovem, assim como um marca passo, cada ruído que a língua da cobra produzia era adicionado a partitura da sua morte.

A pressão era muito grande, era possível sentir cada escama que roçava em sua pele, aos poucos a força dela aumentava exponencialmente.

O ar úmido já tinha dificuldades de chegar aos seus pulmões, o tamanho da grande cobra parecia passar de quatro metros de comprimento, a cobra se envolvia ainda mais por seu corpo, a cada vez que ela colocava seu peso sobre ele, eram mais de meia tonelada para tentar aguentar, pressionando seus ossos e suas veias, enquanto o garoto gemia de dor.

O anjinho de olhos fechados e com um grande sorriso, observava sentado em um galho de árvore, enquanto brincava com alguns macaquinhos despreocupado, até que de repente, ele opinou:

- Ainda se acovarda? Não pode fugir das consequências de seus atos, você relaxou na hora errada, agora tome a atitude e conserte seu erro, sim vai doer, e vai doer ainda mais se você continuar parado aí, a vida é assim, se não aprender a lidar com seus erros, não vai conseguir vencer de si mesmo e nem deles.

Nesse momento de tensão, as frases tranquilas daquela criança, entraram nos ouvidos de Zero como algodões, a confusão entre dor e desespero não deixava o garoto pensar direito, mas uma coisa ele entendeu, tinha que tomar uma atitude logo antes que a cobra o matasse sufocado.

Rangendo os dentes, agarrou a cabeça da cobra com as duas mãos, seu rosto em uma mistura de vermelho e roxo, misturado ao desespero, modificaram a situação com uma ação inusitada.

Metendo as mãos na boca da cobra e puxando para ambos os lados, a boca da cobra dilatou, até não conseguir mais, entretanto a serpente não desistia, continuava pressionando seu corpo com sua força esmagadora.

O som de suas costelas se quebrando, só pioravam a situação, agora seus pulmões eram furados por seus próprios ossos, tossindo sangue o garoto se manteve de pé e continuou lutando, dando tudo de si, em meio a tosses e a falta de ar, soltou um grito de guerra, liberando todas as forças dentro de si, e continuou escancarando a boca da criatura.

Gritando de dor, a raiva ajudou, dando a energia que faltava para acabar de uma vez por todas com a criatura, com uma força até então desconhecida, Zero firmou as mãos sobre a grande boca do animal e rugindo, começou a causar um verdadeiro estrago.

A pele grossa da serpente era difícil de rasgar, mas na base da força e do ódio, foi obrigada a ceder, a carne se rompia como um tecido e expôs o interior da serpente, que se abriu como uma banana, rasgando a grande jibóia ao meio.

O corpo da cobra se afrouxou do tronco do jovem, e mesmo sem vida se contorcia no chão, a pressão das escamas sobre os pulmões do menino foi retirada, dando espaço para que ele pudesse respirar.

Caindo ao lado da imensa jiboia morta, seus grunhidos de dor escapavam de sua boca junto do sangue, suas costelas voltavam aos poucos para o lugar enquanto seu fator de cura cuidava de suas feridas, desconfortável com o local, num instante levantou-se e seguiu para uma direção qualquer, em sua cabeça o único desejo que ele tinha era o de escapar dali.

A terra recebia de bom grado o suor do menino escorrendo por seu rosto e chegando ao chão como chuva.

Por alguns instantes a esperança se estabeleceu sobre o olhar dele, todavia, como um trem bala, passou graças a um grunhido em suas costas, seguido da tensa atmosfera que caia novamente sobre seus ombros, aquela sensação ruim, só poderia estar vindo daquilo que até então ele mais temia.

Voltando o olhar para as suas costas desacreditado do que sentia, não importava o quanto ele tentasse negar, não havia do que duvidar, a onça estava encarando ele, talvez o seu grito tivesse denunciado sua localização para ela.

Um vulto preto atrás da onça exibia um sorriso macabro, que saboreava a face aterrorizada do menino, mesmo distante foi possível ouvir suas palavras ecoando por sua mente:

- Agora você não escapa, pó da terra!

Nenhum ruído foi produzido, a não ser o bater de seu coração, que acelerava quanto mais a onça se aproximava a passos sutis, já sem forças engolia em seco, enquanto buscava ao seu redor, esperando por algum tipo de salvação.

Em meio a tensão, um som um tanto diferente pode ser escutado, som esse que chamou a atenção do jovem e do feroz animal, que deixaram de se encarar para observar aquilo que em um momento onde qualquer deslize levaria a morte de um deles, havia chegado com tanta tranquilidade.

Aquele que ousou interferir em tal momento, quebrando as rédeas do silêncio e do caos foi uma criatura abusada e sem noção do perigo.

Um filhote de macaco-prego, degustava sua bananinha tranquilamente, os estalos que sua boquinha fazia enquanto comia, quebraram o medo que pesava nos ombros de Zero, a onça encarou o filhote de macaco com ira e avançou para cima dele com suas garras.

(A)Mas após agarrar a criatura, ela desapareceu, e reapareceu em cima de um galho rindo.

- Hihihi! O que foi filhote de cruz credo? Quer um pedacinho?- pergunta o anjinho enquanto oferecia a banana pela metade ao demônio e voltava a sua aparência original.

(A) O demônio que controlava a onça havia ficado furioso com a atitude do anjo, e resolveu reclamar, ao parar de controlar a onça ela ficou estática, o vulto preto apontou o dedo na cara do celestial, ele gritou:

(A) - Como ousa interferir?!? Isso não estava nas regras! Seu anjo mentiroso! Desgraçado!

(A)- Mas eu só estou observando… Você parou por que quis!

(A)- Por acaso está querendo quebrar as regras para salvar o pó da terra?

(A)- Que pó da terra? Eu não vejo ninguém por aqui… Hihihi!

Malandramente, Zero meteu o pé, seus ouvidos só escutavam a floresta com suas folhas que produziam uma melodia agradável e seus pássaros a cantar, que com o tempo acalmaram o coração e seu espírito, a paz que reinava naquele lugar em que chegará era estranha, uma grande árvore se encontrava em sua frente, com mangas grandes e maduras e um belo rio que passava próximo ao local chamaram muito a sua atenção.

A ideia de parar de fugir e começar a lutar veio à mente do garoto, que aproveitava a tranquilidade para se apoiar no tronco de uma árvore próxima.

A cena da jiboia sendo partida se repetia em sua memória, e bufando confiança ele exibia os músculos como forma de mostrar que era forte.

Talvez se pudesse falar naquele momento ele diria: “Da próxima vez que eu ver aquela onça, vou pegar ela e transformá-la num chapéu”.

Mas sua empolgação se esvaiu quando se viu cercado por vultos de pessoas, seu olho de dragão pode ver melhor a situação em que havia se metido.

Espíritos de índios apareciam próximo a árvore, com máscaras tapando seus rostos, e lanças de madeiras, apontadas para ele, eles se aproximavam do rapaz, intimidando ele com gritos em uma língua estranha.

Com a determinação que havia juntado para usar contra a onça, percebeu que teria que usar contra eles, e levantando a guarda, encarou firmemente os espíritos, pronto para o combate.

Um dos espíritos deu um assobio, parecendo o canto de um pássaro, e num piscar de olhos, algumas dezenas de espíritos semelhantes a eles apareceram com suas lanças.

A determinação de Zero pareceu ter ido embora, junto com ele que não poupou esforços e começou a correr.

Mas estranhamente os espíritos dos índios não estavam correndo atrás dele, apenas continuavam de pé ali, parecendo querer proteger a árvore ou apenas aquele território, Zero por precaução se afastou um pouco mais até perdê-los de vista.

Infelizmente, ele sentiu de novo aquela sensação de uma atmosfera pesada, e ficou atento ao seu redor, mas logo identificou a origem daquilo.

Um dos vultos pretos estava bem à frente, escondido atrás de uma árvore, de onde saíram lacraias enormes que avançavam em sua direção.

Logo em seguida outro vulto preto, agora com grandes olhos em sua cabeça, controlava uma dúzia de porcos selvagens, que apareceram com uma aura negra, indo para cima do garoto, neste momento ele só viu uma escapatória.

Seguiu correndo para a única direção que ainda não tinha nada, o condicionamento físico dele era realmente impressionante, mais impressionante que isso, foi a quantidade de jacarés que o esperavam no rio ao qual acabara de se deparar.

Sobre os jacarés um demônio se sentava despreocupado encarando Zero, todos os oito olhos dele miravam apenas a garganta do rapaz.

As lacraias e os catetos cercavam a maior parte ao redor do menino, os crocodilos cercavam pelo rio, Zero olhava ao seu redor, no entanto não havia nenhuma escapatória.

Amedrontado com tudo aquilo enquanto tentava se proteger de alguma forma, deixando sempre a mão direita na frente.

Os demônios começaram a rir, enquanto os animais se aproximavam lentamente, Zero não sabia para qual lado olhar, em qual lugar se proteger, não havia posição confortável ali, em todos os lados sua chance de sobrevivência era idêntica ao seu nome, zero!

Era seu fim, o ciclo da vida sendo modificado de forma sobrenatural por seres desconhecidos, para um fim anormal, não havia lógica para nada daquilo.

Por que tudo aquilo estava contra ele? Por que ele tinha que lutar contra tudo isso? Não é justo, talvez essa fosse a lição daquele momento: A vida não é justa.

Mas a injustiça iria acabar ali, com apenas um ataque, a onça apareceu novamente, e aproveitando da fraqueza de sua presa, deu o bote, pulando sobre seu ponto cego, o silêncio momentâneo elevou o bater do seu coração que logo poderia parar.

Aquelas presas, aquelas garras, aqueles animais, aqueles demônios, tudo o que causava medo no rapaz estava diante de seus olhos, o tempo parecia estar congelado e num piscar de olhos.

Chegou ao fim de um ciclo da vida, entre presa e predador.

Os pássaros de cima das árvores voaram assustados com o rugido da onça, o corpo dela se mexia em cima do garoto ensanguentado.

Todos os demônios admiravam a cena em silêncio.

(A) O sorriso que se abria na face anjinho chegava a ser assustador, que agachado em cima de um galho de árvore, admirava a tudo e rodopiando no ar em alegria, comemorou com uma voz gentil e alegre:

- Você venceu, parabéns!

Zero jogou o corpo da onça para o lado e mesmo com dificuldade se levantou, olhando assustado e ofegante os demônios que o encaravam perplexos.

O que havia acontecido ali, foi que, quando a onça estava prestes a fincar suas garras no garoto, em sua mente se passaram os seguintes pensamentos:

- Por que eu estou passando por isso? Isso não é justo! Por que eu? Injustiça maldita, eu odeio isso! Eu queria que, queria que…

- Queria matá-los? - Perguntou a voz macabra em sua cabeça.- Deixe fluir, use o ódio que eles tanto depositaram em você contra eles!

Os dentes de Zero rangeram, um grunhido de raiva ecoou a floresta, sua energia mudou acompanhada de seus cabelos que se arrebitaram semelhante a chifres, a armadura obedecia a sua ira, num piscar de olhos sua armadura se modificou, deixando a mostra espinhos por todo seu braço e garras em seus dedos, seu olho de dragão em brilho escarlate rapidamente se virou junto ao seu corpo para encarar a onça nos olhos.

Uma memória corporal veio em meio aos cacos de memórias da sua mente, dentro da escuridão do ódio que tapava seus olhos, sua garra rasgou o vento, e com a onça ainda no ar desferiu o seu poderoso golpe.

Tão rápido quanto um trovão, seu braço fez um semi arco no ar junto da força da rotação de quadril e do abdômen, o tapa atingiu a cara da onça, as garras de sua armadura fincaram no pescoço do animal, as gotas de sangue jorravam pelo ar naqueles milésimos de segundos, se moviam pelo vento lentamente como neve, o golpe fez a cabeça dela voar como uma bailarina, dando piruetas no ar, a beleza do caos se mostrava em meio ao sangue, ao ódio a brutalidade e a um guerreiro que ali nascia.

Todos acompanharam a cabeça da onça girando e atravessando o rio, até se encaixar perfeitamente em um galho de árvore do outro lado das águas.

Perante o silêncio da morte, o demônio que controlava a onça, encarou Zero assustado.

O corpo da onça caiu sobre o menino, voaram os pássaros temerosos de cima das árvores, até voltarmos para o momento onde o jovem já se encontrava de pé encarando a todos.

Os demônios não se agradaram com o resultado e enfurecidos dispararam em direção a Zero mais rápidos que flechas, porém o anjinho entrou na frente, gritando:

- Pediu pra parar, PAROU!- O marcante estalar de dedos finalizando a frase, deu um fim a barulheira e um início a melodia natural da floresta.

Um grande flash extinguiu as sombras de todo o lugar, num piscar de olhos os demônios sumiram junto com os animais que ali estavam.

Sem entender nada, Zero admirava as asas do pequeno anjo que voava acima de sua cabeça, a paz tão repentina que ele trazia, chegava a dar sono.

O anjo voou até conseguir ficar de frente para o rapaz, e com seu grande sorriso, começou a dizer:

- Eu já sabia que você iria vencer, mas… Foi divertido, hihihi! Eu avisei que se eles tentassem usar os poderes deles contra você, eu iria intervir…

O anjo se virou de costas e continuou dizendo:

- Que bom que você entendeu a minha mensagem e resolveu lutar… Espero que aprenda mais sobre si e sobre como controlar seus sentimentos, minha missão aqui acabou… Na verdade faltou uma coisinha!

O anjo assumiu uma forma adolescente, seus cabelos dourados junto de um sorriso mais maduro, e agora do mesmo tamanho que Zero, ficou de frente para ele e conjurando um círculo mágico, começou a proferir palavras:

- A partir de hoje, eu o anjo Gabriel em nome de Deus, Deus filho e o espírito santo, retiro o seu pacto com Lúcifer, dado a ti por obrigação, a partir de hoje, devolvo a ti teu livre arbítrio, e que assim seja! Aproveite bem essa segunda chance, pois é um presente que muitos almejam, mas nem todos podem ter um recomeço como este.

Zero tentou dizer alguma coisa, mas sem notar, sua visão ficou turva e seu corpo logo foi de encontro ao chão, o sono repentino o atingiu como um forte soco.

O anjo calmamente se sentou ao seu lado, e disse palavras que tatuaram em seu cérebro uma forte memória desse momento final:

- Daqui para frente, eles não podem te obrigar a nada, você não está preso a mais nada, seu destino pertence apenas a você, agora é você que faz as suas escolhas, então não se esqueça, a vida não vai ser fácil, procurar entendê-la e vencê-la, será de suma importância no seu caminhar, o caminho do bem e do mal, estão abertos para você, espero que escolha sabiamente… Davi…

( segredo)

(A armadura tem vida, assim como um cavalo que obedece ao seu cavaleiro.).

Brauns
Enviado por Brauns em 15/05/2024
Reeditado em 19/05/2024
Código do texto: T8063762
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.