AGORA SEM OSSOS

Seu nome é Antônio Araujo. Tem oitenta anos, mora com os seus dois filhos e quando morrer, imediatamente irá acordar em algum lugar, quando perguntará porque gastou uma vida sendo quem foi. Não há muitas oportunidades para existir e desta vez veio aquilo! O que foi aquilo? Foi inútil a foto tirada pelo pai quando Antônio era pequeno e tinha a vida pela frente? Inutilmente acabar como acabou! Quem irá explicar o desperdício? Antônio procurará a sala de “achados e perdidos” e questionará o plantonista: “O que foi esta vida? Não pedira o que se passou ou a culpa era somente dele? Que não procurou os lugares certos, que falou com pessoas muito estranhas”. Poderiam pelo menos terem arranjado para ele um certo conformismo no final. Ninguém fez questão de ajudá-lo e agora está ali. Ali era um imenso estaleiro e Antônio via agora muitos barcos abordarem satisfeitos. O plantonista, já acostumado com reclamações poderá dizer: “ Olhe como há encarnações piores do que a sua! Mal chegaram a nascer e já caíram na piscina magnética. Olhe quem foi levado pela enxurrada e não sobraram nem os documentos ou aquele sujeito que morava do outro lado do mundo e morreu sem nem mesmo tomar um copo de Coca-cola?” Antônio não se aliviará. Foi coerente até o final, esperando uma mudança. Viajar para Varsóvia. Entrar em um museu, chegar perto da obra prima e pensar que o autor também esteve ali. Há um passo de sua obra. Também queria estar a um passo de sua obra, mas nem aprendeu a pintar. Poderia ter surgido então como um perfumista. Ter combinado diferentes cheiros e criado um perfume essencial para a mulheres do mundo, para a indústria de cosméticos. Poderia ter sido um filósofo e proferido aquele ditado significativo, o mesmo que procurou a vida inteira presenciar: “Os cães ladram, enquanto a carruagem passa.” Antônio queria estar na carruagem, então não irá esperar agora as enfermeiras da Cruz Vermelha de Todos os Ossos que chegarão para acertar o primeiro ajuste. “Não quero enfermeiras!” Antônio pensará então em Madalena. “Onde está Madalena? Ela inverteu a ordem natural das coisas e desencarnou primeiro. Há uma ordem natural das coisas e ela o deixara com duas crianças para criar”. Perguntará ao plantonista da sala de “achados e perdidos”: “Onde está Madalena?” O plantonista responderá: “Ela esteve aqui hoje. Já recusou três oportunidades de transição porque queria lhe pedir desculpas por ter ido tão cedo. A vontade de justificar-se permaneceu nela e isso sim se tornou forte. Mais forte do que a decepção pela qual tu acaba de passar”. Antônio por um instante esquecerá as reclamações e perguntará novamente como fazem todos os velhos: ”Onde está Madalena? Quero ver Madalena! Eu sim queria pedir desculpas por ladrar tanto em vida, enquanto via a carruagem passar”.

Seu nome é Antônio Araujo. Tem oitenta anos, mora com os seus dois filhos e quando morrer, imediatamente irá acordar em algum lugar, quando perguntará porque gastou uma vida sendo quem foi. Mas se lembrará também de Madalena já desencarnada e sem forma. Ela o esperou para lhe dizer: ”As pedras também rolam no amor, querido. Desculpe por meu impulso em sair de nossa vida naquele momento, mas trabalhar com crianças igualmente exige, abnegação de um pai, curar as feridas de um pai, dormir as noites mal dormidas de um pai, salgar os ossos de um pai. Portanto, eu lhe parabenizo por você ter sido tão atuante nesses aspectos”.

Seu nome é Antônio Araujo. Tem oitenta anos, mora com os seus dois filhos. Os dois estão divorciados, mas confiam no pai. Antônio pode chegar a um passo dessa confiança.

Pelo menos arranjaram para Antônio Araujo um certo conformismo no final da vida.