O AVEJÃO DO SÍTIO GLÓRIA - Versos Heptassilábicos
O Avejão do Sítio Glória
(Poeta Felipe Amaral)
1
Amigo, ouça a narração
De um caso de arrepiar.
Pode parecer ficção,
Mas a um fato é similar.
Firmo que a presente história,
Documenta a trajetória
Do povo do sítio Glória,
Sem exagero ou patranha.
Dou fé do que lembro e narro,
Que ao que é factual me agarro
E em deslize algum esparro,
Expondo essa história estranha.
2
Juleuza de Zé Catanha
Já tinha ouvido falar
Sobre espectro que acompanha
Vivo, após desencarnar,
Mas ainda não havia
Tido a chance, nenhum dia,
De comprovar a ingresia,
No seu terreno rural.
Horrendo dia em que veio
A testemunhar o feio
Episódio e, no aperreio,
Ver que a história era real!
3
Depois de ir ao varal
E pôr roupas pra secar,
Notou algo de anormal,
Mas não quis se perturbar.
Era um sussurro esquisito
Seguido de um choro aflito
De alguém em grande conflito
Com graves dores renais.
Falava, entre ais e gemidos,
Seus muitos males sentidos
E esses resmungos ouvidos
Assombravam-na demais.
4
Nos âmbitos maritais,
Relatava ao seu marido
Os assombros fantasmais
Que haviam se repetido,
Mas o esposo só sorria,
Fazia pouco e dizia
Que a tal fantasmagoria
Era criação mental.
E, assim, não achava um jeito
De consertar o defeito
E mal dormia no leito,
Pensando naquele mal.
5
Até que essa abantesmal
Figura deu de inquietar
Outras donas, no local,
E alguém lhe veio a contar:
Livina, Floriza e Neuma,
Já pelo mesmo celeuma,
Vinham passando; e da fleuma
O ar passou pra inquietude.
Adultos alvoroçados,
Velhos desorientados
E, em similares estados,
Toda a local juventude.
6
Pra descer do céu virtude,
Toda rezadeira orava,
Todavia, essa atitude
Graça nenhuma alcançava.
Feitiço até foi usado,
Mas, quanto mais o enviado
Enfeitiçava o roçado,
Mais o espectro se movia.
Era um terror desmedido,
Generalizado e havido
Por ser sem fim, porque crido
Sem solução de avaria.
7
Judite de Zé de Bia,
Que, há muito, era aposentada,
Lembrou-se de uma homilia
De idade muito avançada,
A homilética mensagem
Tratava de alma e visagem
E alertava da vantagem
De uma ladainha antiga.
A melodia não soube,
Mas a letra que lhe coube,
Pra que o mal dela não roube,
Pôs num papel, sem cantiga.
8
Rezando e fazendo figa,
Correu até a morada
De Juleuza, sua amiga,
Para ajudar a coitada.
A novena se estendia
E um feiticeiro fazia,
Em frente ao lar, a magia
Que jurava resolver.
Nada mudava; e o mistério -
Como o mágico critério -
Não solucionava o sério
Problema a se combater.
9
Mas, ao chegar e trazer
O apotropaico versejo,
Judite fez conhecer
Ao povo o dom benfazejo.
Só que uma romeira velha,
Como quem se destrambelha,
Derramou chá de groselha
No papel, antes do ensaio.
Todo o mundo ficou triste
E o demônio alçou um chiste,
Sambando e comendo o alpiste
Do prato do papagaio.
10
Só que o vulto arteiro e gaio
Não contava co'o futrico
Da ave que, como um raio,
Voou co'o papel no bico.
Parou num canto e pegou
A ler parte do que achou
Legível do que sobrou,
Após o chá ter manchado.
Era recitando o verso
E o mal-assombro perverso
Estrebuchando, submerso
Num medo desmesurado.
11
Só sei que, ouvindo o recado,
O capeta fez partida;
E o papagaio, aclamado,
Retomou sua comida.
Tudo isso é pra que os mortais
Entendam que os animais
Têm muitas lições iguais
A ensinar ao ser humano.
E, a partir daquele dia,
Quem a ladainha ouvia,
Rememorava a porfia
Daquela ave pura e pia
Contra aquele ente profano.