Acusação injusta na televisão

Era noite, meu vizinho começou a receber sucessivas mensagens em seu Whatsapp. Ao lê-las, foi tomado pelo susto. Soube que seu rosto apareceu em um telejornal. Uma emissora colocou a sua foto e o rotulou como “acusado de estupro”. Graças a isso, uma situação kafkiana acabava de irromper na sua rotina tranquila. A acusação era absurda; do seu ponto de vista, e de seus amigos, ela escapava a qualquer lógica ou racionalidade.

O medo veio junto com a perplexidade, pois todo mundo sabe como há “justiceiros” por todo canto, sequiosos para praticar linchamento contra “bandidos”. A sociedade odeia estupradores - esse tipo de crime não é tolerado nem entre bandidos, como traficantes e ladrões. Sua face na TV junto com a acusação de um crime grave poderia acabar decretando a sentença da sua morte. Seria como se a emissora colocasse um alvo na sua testa.

Amigos e conhecidos começaram se mobilizar para salvar sua vida. Fiéis de uma igreja que ele frequenta vieram ajudá-lo. Retiraram ele da sua casa e o colocaram num local seguro e desconhecido. Ficar em casa poderia lhe trazer problemas. Pessoas que moravam próximo poderiam reconhecê-lo:

- Já vi esse homem aqui no bairro! - alguém poderia dizer.

- Ele mora na rua de cima! - outro poderia afirmar.

Uma turba enfurecida poderia surgir a qualquer momento para trucidar o “estuprador”. Ficar em casa significaria estar à espera dos carrascos. Era melhor sumir.

Fiquei sabendo do calvário do meu vizinho. Várias vezes olhei a casa dele pela minha janela, sempre temendo que se formasse uma multidão em frente a ela. Mesmo que ele não estivesse em casa, os sedentos por sangue - que usam da “justiça” como pretexto para praticar a barbárie - ficariam contentes com a destruição da moradia dele.

Ainda bem que não aconteceu nada. Meu vizinho, no entanto, continuava aflito.

No outro dia, ele teve que aparecer na televisão para esclarecer que não era estuprador. No telejornal da hora do almoço, em outra emissora, ele deu entrevista ao lado de seu advogado.

- Sou trabalhador, tenho família, nunca cometi nenhum crime bárbaro…

Ele estava abatido, cansado, ainda tomado pelo medo e pelo choque. A entrevista ocorreu em frente a uma delegacia da Polícia Civil, onde ele esteve, por vontade própria, antes de falar para a televisão. Àquela altura, um fato fundamental estava patente: o verdadeiro acusado por estupro já havia sido preso desde antes da foto do vizinho aparecer na transmissão local.

O jornal da TV, para quem ele falou, colocou a foto desse suspeito: é calvo e usa óculos. Assim como o meu vizinho. A confusão foi a origem de todo o mal. Mas como a foto dele foi parar nas mãos da produção do canal de TV? E em um contexto tenebroso como esse?

É um mistério.

À noite, uma entrevista gravada, que ele deu à mesma TV que o acusou, foi ao ar. Era uma forma de o telejornal se retratar.

- Passei a noite em claro. - disse o meu vizinho.

Quem poderia dormir sabendo que não poderia sair à rua, pois havia o risco de ser morto por algum bandido que acreditaria estar fazendo “justiça”?

O apresentador pediu desculpas ao meu vizinho. Todavia, parece que ele não vai aceitá-las. Mais cedo ele veio aqui em casa para pedir ferramentas. Perguntei como ele estava e o que pretendia fazer.

- Vou processar a emissora. - ele disse.

- Justo. - afirmei.

- Vai vir uma bolada. Eles quase arruinaram minha vida.

Mesmo depois da retratação, ainda me preocupo. Será que a admissão do erro consegue atingir uma plena reparação? O jornalista Felipe Pena já escreveu que “no jornalismo [ou suposto jornalismo], não há fibrose. O tecido atingido pela calúnia não se regenera”. Não seria absurdo continuar temendo pela segurança do meu vizinho. Por aí, ainda há pessoas que viram a acusação, mas não viram a emissora se retratar.

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 01/05/2024
Reeditado em 03/05/2024
Código do texto: T8054372
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