O sobrevivente

 

Hoje pela manhã, pouco depois das nove horas, uma garoa começou a descer do céu chumbo de Charqueadas, apresentando o cartão de visitas da chuva anunciada. No final da rua Distrito Federal, o rio Jacuí já recuara bastante - no momento, 18 horas, atinge 7,54 metros, seu nível mais baixo desde o pico da enchente, de 11,32 metros, prenúncio de que o recuo total será agora questão de tempo.

 

Na referida rua, a imagem (foto abaixo), ainda que feia, é esperançosa e de bom prognóstico: a casa amarela, antes totalmente encoberta, ressurge; o antigo Hotel Beira Rio, desta vez, escapou incólume ao repique da cheia, junto com a casa do Caquinho. Um sofá que, desde o início da enchente, aparecia ora por ali e ora por aqui ao ritmo do sobe e desce da água no local alagado, parece definitivamente assentado no meio da rua (foto acima). Aproximo-me e noto algo sobre ele: é uma revista em quadrinhos, de boa qualidade, capa dura, de boa folha e impressão colorida. Como foi parar ali?! Junto, uma lata de tinta pequena, vazia.

 

Na verdade, aberto como estava, o gibizão (foto abaixo) sugeria a incrível e remota possibilidade de estar ali desde o início das chuvas, esquecido no sofá, deixado para trás por seu leitor acossado pelo Jacuí. Ou flutou a esmo e ali se acomodou, por acaso? Não tem como saber, ao certo. Fechando-o para olhar a capa (foto abaixo), constato que se tratava do Comics Star Wars, Clássicos 10, da Planeta DeAgostini. Pois então, uma personagem do espaço sideral ali deslocada, como sobrevivente na cheia gaúcha. Quem diria? Pois tudo é possível, então. Resolvi salvar o náufrago, levando-o para casa e dando um banho para tirar o barro, eis que mais molhado do que já estava não ficaria mesmo.

 

Foi minha boa ação do dia? Não sei, mas o fato é que respeitei aquele gibizão. Se o dono aparecer, aviso de antemão que não o devolverei, pois agora ele é uma relíquia da enchente por mim recuperada. Um super-herói que ressurge, como a famosa fênix, só que não das cinzas, mas sim da água e do lodo da enchente. Super-herói, tal qual um bombeiro voluntário de minha cidade ou de tantos outros voluntários, funcionários da prefeitura ou pessoas comuns de todas as profissões públicas e privadas que, na necessidade da situação, deixaram aflorar seus superpoderes, revelando suas identidades secretas. Super-homens e super-mulheres, altruístas, edificantes e benfazejos.

 

Deus os guarde, a vocês e aos seus, sempre, assim como eu guardei ao gibizão. No futuro, sempre que olhar pra ele, lembrarei de vocês e do que fizeram na enchente de 2024. Super-heróis, humanos e imprescindíveis que fazem a diferença.