A ARTE COMO DIÁLOGOS, HERANÇAS E PONTES ENTRE GERAÇÕES

Ao indagativo neto Wallace, após uma videochamada.

Resumo: A arte é uma força poderosa que pode transformar vidas, conectar gerações e superar obstáculos. É importante valorizar a arte em todas as suas formas e incentivar as pessoas a desenvolverem seus talentos, independentemente de suas origens ou circunstâncias.

Introdução

“Quando percebemos nossos potenciais e temos oportunidade de fazer o que amamos, nos dedicamos e gostamos de fazer. Quando temos quem nos apoia e nos incentiva a prosseguir independente dos resultados, faça chuva ou faça sol, driblamos dificuldades, enfrentamos obstáculos, encontramos soluções, vislumbramos possibilidades. Com afinco nos dedicamos, estudamos e trabalhamos a vida inteira com alegria, com gratidão, com imenso prazer e inesgotável sentimento de retribuição. A tudo e a todos dedicamos o nosso melhor e nos tornamos pessoas melhores, simplesmente por podermos fazer o que mais amamos, nos dedicamos e gostamos de fazer.”

O neto Wallace está edificando gosto pela escrita de fábulas e pelo desenho artístico. A maioria das crianças é dada a perguntar e com ele não é diferente. Questionar e querer saber é um dos princípios da Democracia, da Filosofia e do Pensamento Crítico. Infância é também fase onde ouvimos os primeiros imperativos "cale a boca" e "não é da sua conta." Abri o baú de memórias e resumidamente contei sobre os meus escritos e publicações. Ele ficou espantado ao saber que eu, aos 68 anos, ainda estou estudando. Na humildade e com todo respeito sou um negro sexagenário ignorante em formação e movimento constante. A título de incentivo e preenchimento da lacuna de algo que não tive, enviei o texto acima (Introdução) pedindo para a filha Kizzy encaminhar para ele criar uma história.

Aqui relato como seria uma possível conversa pessoalmente. Salvo equívoco, suponho servir de bússola e estrela-guia para os demais filhos, netos, sobrinhos e a quem possa interessar esteja onde estiver. Citando Leon Tolstói: “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia.” Sobretudo nesses tempos de epistemologias e produções afrofuturistas baseadas na filosofia Sankofa. Que Ancestrais iluminados e iluminantes estejam conosco: hoje, ontem, amanhã mesclados em tempos vividos com muito afã...

Pelos idos de 1968, eu comecei a desenhar de forma autodidata por volta dos 13 anos, copiando revistas em quadrinhos. Gostava também dos belos retratos que algumas revistas estampavam nas reportagens e que se pareciam com pinturas. Ficava fascinado! Parei de desenhar porque não gostei dos meus traços. Me recriminei por não conseguir reproduzir com perfeição o que via. Meus traços eram tortos e geralmente ovais. Até hoje eu não sei como segurar e manusear corretamente um lápis de desenho ou um pincel de pintura.

Devido a brigas, bullyings, constantes mudanças de casa e repetências de série, eu havia saído da escola no terceiro ano primário. Em parte por dificuldades minhas e em parte por marcação de professores. Que culpa tenho eu se algumas pessoas são ligadas no 220 e eu no 22? Se algumas pessoas são lebres e eu sou lesma? Tenho um antigo toca-discos, marca Multimaster, ganho de um casal de amigos, com quatro velocidades: 78, 45, 33 e 16 rotações. Assim vejo os seres humanos: Cada um tem seu ritmo e como tal deveria ser respeitado e tratado...

Suponho que a falta de práticas esportivas, que exigem treinos constantes, tenham contribuído. Os amigos, colegas e vizinhos, eram chegados ao boxe, corrida, futebol. Não me identifiquei com nenhum deles. Vivia no meio como plateia. Gostava de ler gibis e romances de faroeste e de assistir séries televisivas. Nas andanças em turma tomei gosto pela natação e aprendi a pedalar bicicleta com quem tinha. Mas não havia parques olímpicos nas regiões onde morei, nem tinha grana para adquirir uma magrela. Lembro que eu, Salôbo, João Caolho, Gordo, Adalberto, dentre outros moleques, lá pelos idos de 1969 íamos nadar na lagoa da Nitroquímica, em São Miguel Paulista e a lagoa de Aracaré, uma estação acima da estação Calmon Viana, pela linha variante. Na primeira vez que fui ao CEU Inácio Monteiro, COHAB Juscelino, à beira da piscina eu chorei. Um filme passou na tela da memória. Mentalmente xinguei empresários, governantes, políticos, pelo descaso às classes menos favorecidas.

Talvez seja por isso que não persisti nem tive quem me incentivasse a desenhar e se esforçasse para melhorar. O meio em que eu vivia pensava e se preocupava mais com dinheiro para sobreviver e atender necessidades imediatas, do que em formação escolar. Acabei sendo engolido e entrei no ritmo delas. Naquela época o presente de aniversário para jovens de famílias humildes e geralmente numerosas, era uma carteira profissional, quando nem bem ele completava catorze anos. O estigma da marginalidade e suas plásticas em mil faces era constante. Tanto por parte das famílias em situação de penúria, quanto da polícia sedenta para mostrar serviço. A festa de debutante para quem completava 15 ou 16 anos era estar empregado e com alguma qualificação profissional em curso. A partir dos 17 era assombrado pelo serviço militar e dificilmente empresário se arriscava a empregar alguém às vésperas do alistamento aos 18 anos. Por essas e outras muitos ficavam no limbo até os 21 anos. Comparo com casa bagunçada, alguém tirando proveito e não permite arrumação para continuar desfrutando uma boquinha na desordem.

Hoje eu me arrependo por ter desistido, por não ter persistido em desenhar, por não ter posto a boca no mundo em busca de alguém que me socorresse e me norteasse nos meus propósitos. Me agarrei à escrita que se iniciou no mesmo período adolescente e mais tarde busquei compensação na fotografia, precisamente a partir de 1998, revendo o documentário Ori, de Raquel Gerber e Beatriz Nascimento, 1989. A caminhada havia começado nos anos 1980, inspirado por Mário Espinosa, Januário Garcia e Luiz Paulo Lima, retomei entre 1990/92, porém não prosseguiu. Lembro de ter visto o grande bailarino e coreógrafo Ismael Ivo ensaiando o solo Rito do Corpo em Lua, no teatro Ruth Escobar, fotografei com uma câmera Kodak, emprestada pela minha irmã Izilda, e perdi de pegar o filme por falta de dinheiro para retirar do laboratório. Na época eu estava desempregado, fazendo bicos durante o dia e cavando trabalhos culturais à noite, em funções diversas.

Posteriormente e coincidentemente, estudando, observando e praticando ângulos e composição, eu tomei gosto por figuras e formas geométricas. Bases da Arte Africana, dos Povos Originários, linhas mestras da Arte Rupestre e presente na arquitetura moderna. Tomei conhecimento desses alicerces décadas depois quando voltei a estudar e tive que enfrentar fantasmas nas aulas de Educação Artística no ginásio e colégio supletivo. Consequentemente, motivado por colegas e professores passei a frequentar espaços e oficinas culturais, aprendi o que até ignorava e desde então me permito ir aonde nunca fui. Tenho por lema: Eu não tenho problemas com as pessoas; as pessoas, dependendo do ambiente ou da localidade, é que tem dilemas comigo.

Anos depois, comentando essas passagens alguém me disse que talvez a forma fora de esquadro que eu desenhava já era um princípio de estilo livre e pessoal, não de reprodução fiel de grandezas e cega obediência aos cânones eurocêntricos geralmente impositivos. Exige-se Capital Cultural, Inteligência Cultural, Inteligência Emocional, mas a construção e distribuição das três, entre outras não são igualitárias e genéricas para todas as classes, credos, etnias, gêneros. Fatores que levam grande parte a desistir de estudar, como também impulsiona algumas pessoas a fazerem perguntas e buscarem respostas em circuitos e grupos alternativos, por serem questões nem sempre atendidas por docentes e presentes em livros escolares e correlatos. Alguns saberes também são regulados não somente pelo Estado, mas também pelo Mercado, com aval de renomadas instituições. Segundo Milton Santos, no documentário “O mundo global visto do lado de cá, de Silvio Tendler: Com os processos de globalização, quem não preservar sua identidade corre o risco de desaparecer.”

Para contribuir com a manutenção da situação e seus engessamentos, famílias de baixa renda e regiões desprovidas de aparelhamentos possibilitam a geração direta e indireta de baixa autoestima, baixa autoconfiança, carências e necessidades somadas à falta de ambientes e pessoas motivadoras e fontes referenciais estimulantes. Estas, na maioria das vezes, nos desviam de possibilidades criativas e potencialidades promissoras com o que tivermos em mãos no meio em que vivemos. Não se trata de apologia à pobreza ou à riqueza. Cada caso é um caso. Alguns gênios nascem prontos e irretocáveis. Outros se desenvolvem gradativamente, errando e recomeçando até atingirem um ponto de satisfação. Os caminhos das artes se parecem com os da vida: são cheios de desafios. Segundo Cícero Buark: "Um sábio quando nasce, tem mais de 500 anos." Se me permitem, prefiro citar De Paula, Meu Poema, em Cadernos Negros 3 – poesia, Edição dos Autores, 1980, pg. 55:

“O meu poema não basta.

Não leva o pão à mesa;

Não constrói a moradia.

(...)

Bem sei meu poema não basta

Mas pobre do povo

Que não tem seus cantores!”

Espero estar ajudando a criar pontes e a pavimentar horizontes. Se existe algo pior do que viver frustrado, aplaudindo o sucesso alheio, com raiva por dentro por não ter tentado ou buscado alternativas, e se deixado vencer, creio estar ainda por inventar. Afinal, a liberdade para uns depende em tese da prisão e subserviência de outros. Suponho que o mais sensato seria edificar Liberdade com Responsabilidade, lá do sêmen e do útero, em acorde perfeito maior. Mas isto é outra história. Filhos, netos, sobrinhos e quem ler este relato memorial: "Aproveitem todas as oportunidades!" Aprendi e guardei esta frase dita por uma professora. Repetida com o mesmo entusiasmo sempre que compartilhávamos com ela alguma entrevista, necessidade em faltar a aula ou sair mais cedo. Se cuidem, nos cuidemos, Riquezas. Voe! Click, Click, Click...

Oubi Inaê Kibuko, escritor, fotógrafo e estudante de Dramaturgia na SP Escola de Teatro.

COHAB Cidade Tiradentes para o mundo, 01/Maio/2024.

Publicado com foto ilustrativa no blog CABEÇAS FALANTES: http://tamboresfalantes.blogspot.com