O relatório de Brodeck - Philippe Claudel

Claudel nos conta uma fábula sombria e desesperançada sobre a banalidade do mal

Philippe Claudel - El informe de Brodeck, Salamandra (Espanha), 2008

O autor francês situou a ação de seu livro quase que inteiramente num vilarejo de uma região montanhosa da Europa Central habitado por cerca de quatrocentas pessoas falantes do alemão. Um ano se passou após o final da guerra (que se presume ser a Segunda) e nesse lugar sobre o qual não nos é dado a conhecer muita coisa ficamos sabendo que um estrangeiro foi morto pelos moradores. De um modo ou de outro, todos participaram do assassinato; antes disso, porém, mataram seus dois animais de carga, sem os quais ele não poderia jamais sair dali, atravessar as montanhas.

Brodeck é o narrador, o personagem central dessa história sombria e desesperançada, que se desenvolve de modo um tanto nebuloso até o final, porque parece tratar-se muito mais de uma fábula, uma parábola sobre a banalidade do mal, do que propriamente uma narrativa tradicional. Desse modo, é atemporal, serve para qualquer época em que reinem a obscuridade e a desumanidade. Desde o início Brodeck afirma que não participou dos acontecimentos, que não tem nada a ver com o que os moradores fizeram com o estrangeiro. Mas, por ter frequentado a universidade (que nem concluiu) e ter uma máquina de escrever, foi obrigado por eles a fazer um relatório sobre os acontecimentos para a administração do vilarejo, situada em S. (assim mesmo), de modo a inocentar todo mundo.

A aversão dos moradores pelo estrangeiro de quem nem o nome sabiam (nós também não ficamos sabendo), ele era apenas Der Anderer, o outro em alemão, também parece se estender em parte a Brodeck: ele se sente um estrangeiro entre os demais, não apenas por ter estudado um pouco, não ser violento, encarar a vida de outro modo, mas porque veio morar ali quando era um pequeno órfão, trazido por uma desconhecida, Fédorine, ambos sobreviventes de uma tragédia (possivelmente outra guerra, a Primeira).

Para poder fazer seu relatório sobre a morte do estrangeiro, e porque é meticuloso, ordeiro e pretendendo buscar a verdade, Brodeck vai entrevistar os personagens mais importantes do lugar, o padre, o dono da pousada onde o estrangeiro se hospedava, um antigo professor, o prefeito etc... Este último lhe diz para se ater basicamente aos fatos, não procurar saber demais, não buscar o que não existe, “o que existiu, mas já não existe mais.” Brodeck compreende que não convém ir muito a fundo no caso, que as palavras do prefeito soaram como ameaça. Mas ele deseja saber tudo...

Ao tentar entender completamente a situação que está vivendo agora, que o próprio morto viveu nos quatro meses que passou no vilarejo, Brodeck não consegue reconstruir a história do outro sem deixar de contar sua própria história, o que faz com que elas até certo ponto se entrelacem. Ele foi prisioneiro de guerra, viu amigos morrerem impiedosamente e sobreviveu limpando as fossas das latrinas dos prisioneiros num campo de concentração, onde os guardas o tratavam como um cão. Cão Brodeck o chamavam.

Quanto estavam bêbados os guardas colocavam-lhe uma coleira e uma guia e faziam-no rastejar, ou levantar, virar, latir, mostrar a língua, lamber suas botas... O prisioneiro que se recusasse a agir como cão morria de fome ou de tanto apanhar dos guardas e Brodeck viu alguns morrerem assim. Outros, que eram mortos por outras razões ou por nenhuma (eram simplesmente escolhidos para morrer), eram enforcados e tinham no pescoço uma placa onde estava escrito “Ich bin nichts" (Eu não sou nada). Mas ele não se importava em ser tratado como animal, limpar latrinas: “(...) eu me acostumei. Você se acostuma com tudo. Há coisas piores que o cheiro de merda. Há coisas que não cheiram a nada, mas corrompem os sentidos, o coração e a alma com muito mais facilidade do que os excrementos.” Ele queria sobreviver e conseguiu, mas agora...

Agora, lembrando das palavras do prefeito, ele novamente precisava tomar cuidado com seu relatório, sobreviver, porque tinha mulher, uma filha pequena e a velha Fédorine para cuidar. A mulher, Emélia, que conheceu ainda jovem, radiante, se tornara uma mulher de vida introspectiva, quase taciturna, murmurando sempre uma mesma canção, resultado de um violento trauma por que passara quando a vila foi ocupada por militares durante algum tempo e ela tentou esconder três jovens que foram a eles entregues porque eram estrangeiras, que ela sabia que seriam mortas...

Enfim, Claudel construiu uma narrativa cheia de tensão o tempo todo e somente perto do final passamos a entender melhor a história do estrangeiro e a do próprio Brodeck, Emélia e Fédorine. Além do que temos o aguardado relatório finalizado, que deverá ser entregue ao prefeito do vilarejo antes de seguir para a administração em S. E ficamos na expectativa do que acontecerá não apenas com o relatório, também com a vida de Brodeck e dos seus.