Os dias em que críamos ser felizes

A superficialidade das perpetrações por nós impostas, cedem a todo o desejo de abster-se das resoluções imediatas e necessárias. São tempos de conivência, tempos de um Deus passivo frente às injustiças.

Tenho me questionado por onde anda o Deus punidor, aquele que tratava a ferro e fogo as iniquidades. O Deus dizimador e severo, um verdugo para com a antítese do homem justo e benevolente. Estamos, deveras, em tempos de um Deus alheio ao sofrimento. Face a este pandemônio, vivemos buscando saídas improfícuas dos arcabouços de nossos temores. Julguemo-nos, então, em cólera e repulsa, mas de modo algum, deixemos que a culpa por nós infligida, venha raptar a vontade de manter-se respirando às paragens do altruísmo.

Sabe-se, desde areias imemoriais, que não devemos retornar aos dias em que críamos ser felizes (engano crasso esta felicidade). Dias em que desfrutávamos de uma serenidade não castrada. Esse retorno é estratagema da tristeza e da melancolia. Deus já mudou tudo. Nem mesmo o ar, que inundava nossos pulmões, pode ser mais respirado com semelhança. Nada é o que era. Isso é tão óbvio, que nos aconchegamos na mais pura insanidade quando, por mero devaneio, cogitamos tal empreendimento. Nem mesmo o nosso Eu pode ser tomado como referência aproximada. Por entre nossos anseios a volúpia dos dias esmaecidos retorceu-se, e logo dilacerou tudo o que foi vivido.

Frente a um Deus conceitual, que se dilacera e espalha o sangue da injustiça, não mais podemos buscar por paisagens, que eram venezianas do pano de fundo de nossas douradas memórias. As pessoas... Ah, as pessoas que gozavam conosco do que pensávamos ser uma realidade gratificante, não estarão mais alimentando-se, a bel-prazer, do fruto que inebriava suas almas cálidas e entorpecidas de falsa tranquilidade. O carrasco da humanidade, chamado de Tempo, é um jogador sujo e impregnado de astúcia e descaso. Ele enterra e deixa que se profane o que cogitávamos ser felicidade.

Portanto, não deixe que seu espírito o tente, que busque manipulá-lo. Não permita que os sentimentos doces te levem ao passado. Ele não existe. Ele está morto e sua invocação é insalubre. O passado, assim como os erros, as falhas, os rancores, as culpas, as angústias, as mágoas, as tristezas e as aspirações, são nada mais que reflexos distorcidos de um espelho quebrado; a regurgitação de um sublime manjar. Um demônio vivo e sedento.

O Deus que alguns procuram, não está confabulado com a vida plena que os fiéis desejam; em contrapartida, o Deus que outros buscam é como o boi que leva ao dorso uma carga que sobrepuja suas forças. Esta carga é a cruz que nós não carregaríamos, nem debaixo da brutalidade do açoite, nem do flagelo de interpolar um Deus que se colocou no pedestal da indiferença. Sentou-se no trono da ignomínia pelo simples deleite de existir e se abster de seus próprios desígnios.

Abstenha-se, portanto. Não deseje o passado, você já o sofreu. A vida é o rio caudaloso que leva tudo o que há pela frente, sem piedade. Entre em consonância com a realidade e não se renda ao Deus que barganha contentamentos; não se apegue com o Deus que está revestido da absurdidade do mundo.

Gimi Ramos
Enviado por Gimi Ramos em 18/05/2024
Código do texto: T8066020
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