É só o que eu sou. Pt. 1

Não é que eu tenha nascido assim (mas talvez seja), só sei que quando me dei por mim, já estava desse jeito. No começo, as pessoas expurgavam para debaixo do tapete, deixavam fora da vista. Mamãe dizia “É coisa de criança, o filho da Ângela, já viu? Aquele menino é perturbado, bem pior, aquilo que é coisa séria.” pros outros e logo mudava de assunto, mamãe dizia “Isso é coisa que se faça?” pra mim. Papai dizia “ ”. Foi assim até não ser mais, até já não poder ser “coisa de criança”, até começar a ser “coisa de gente problemática”. Mãe diz “A gente dá tudo de si, alimenta, dá brinquedo, veste, ensina... pra quê? Pra depois não querer nada na vida, pra não olhar nem mais na cara. Filho é tudo ingrato mesmo.” pros outros, mãe diz “Você é muito problemática, deixa de ser assim, menina.” pra mim. Pai diz “Você não tem futuro, só sabe ficar aí resmungando.” pra mim. Foi assim que, mais do que esconder debaixo do tapete, eu quis sumir com cada pedaço, segurar bem forte e gritar, jogar na parede, estilhaçar o estilhaçado, poderia até engoli-los se isso significasse sumir com cada mísera nuance da sua existência, só para ninguém os enxergar, só para ninguém os perceber, mas querer isso já é “coisa de gente problemática”, não é “coisa de mocinha”, mocinhas nunca precisariam desejar isso. Mesmo assim o fiz. Não porque tudo que um brinquedo quebrado quer é ser um brinquedo, eu não sou um brinquedo, antes de tudo, eu não sou nem como um brinquedo: antes de quebrado, é brinquedo, já eu, antes de quebrada, não sou. Mas sim porque tudo que um copo jogado no chão – cacos – quer é não ser visto, é sumir pelas brechas. E, como eu, o caco, antes de ser caco, não é.