Estrela Bailarina

Na fila do posto de saúde, esperando ser atendido, fito olhares aturdidos com a demora, ou talvez incompreendidos pelo poder público. Apuro os ouvidos, na minha solitude, e examino os clamores do povo sofrido, que, assim como eu, espera exprimir suas queixas à doutora. Uma senhora, logo à minha frente, reclama que o país anda muito indecente, cheio de depravação, diz ela. Na novela é o que mais tem – ressalta. Seu rosto austero imprime um quê de gente séria. Sua interlocutora, talvez alguns anos mais velha, ouve as queixas com sinais veementes de reprovação – “Deus não fez Adão e Ivo”, quase apregoa as sobrancelhas dela. As duas beatas intercalam suas maldições aos homossexuais e afins com interjeições como “Misericórdia; Sangue de Cristo tem poder; mais do que Deus, ninguém” etc. A mais velha tem um ar cansado de quem já sofreu muito e, na vida, travou muitas guerras. Há uma fragilidade em seus gestos, em sua face. A voz cansada, quase falha. A outra fala de remédios, que acabaram. Decide que vai trocar de medicação, pois a anterior parece não surtir mais efeito. A outra, que assente com a cabeça, de repente elogia o prefeito – homem decente e crente. Vou votar nele de novo, a outra outorga. Engraçado que eu já forneci coca para o assessor dele, que, por sua vez, levou para o santo prefeito. E não me refiro à droga do refrigerante. Após os louvores ao político, voltaram ao assunto preferido: indecência.

Eu, decidido em protestar, acabo sendo surpreendido, ou melhor, fisgado, pelo olhar de inocência de uma garotinha, talvez dois anos de idade, que apareceu como que milagre – uma estrela cadente – a algumas cadeiras mais à frente. Esqueço meu protesto e presto atenção nos gestos da menina, graciosa como uma garça num lago. Tão logo sou absorvido pela sua graça, e agradeço também pela graça. Minha retina brilha, sorrio como que sob efeito de ácido. Interajo com os gestos da criança, eu, com trinta invernos, volto à aurora da mais tenra infância. Brincamos até o momento em que sua mãe leva-a para tomar vacina. Passa por mim, na volta, e acena com um sorriso sagaz, como que dizendo “não acabou ainda”. Serena, a mãe segura a mão da filha e some por entre as casas. Surpreso com aquele encontro de almas, e mais extasiado ainda, dou um sorriso largo – e umas lágrimas brotam como gotas de orvalho, regando a rosa que a menina deixou no meu olhar. Algumas abelhas vêm pra perto; abelhas e beija-flores e borboletas. Me sinto um jardim.

Quanto tempo fazia que eu não sentia tamanha alegria? Acho que esqueci de ser criança. Por um momento fugaz, mas belo, fui acolhido pela manifestação divina – aliás, eu sou ateu. Voltando às duas senhoras à minha frente, apenas disse, ainda com o sorriso reverberando no meu rosto, cheio de garça, borboleta, passarinho, abelha, libélula:

- Deus é uma criança, e Ela também quer brincar com vocês.

- É o quê?! - espantou-se a primeira. - Tá blasfemando, rapaz?

- Deus não é brincadeira, não, filho – apregoou a mais velha, dessa vez a voz menos cansada e as sobrancelhas mais severas.

- Por isso que vocês odeiam tanto. Conheceram o Deus tirano; não o Deus criança – quase falei, mas preferi o silêncio.

- Deixa esse maconheiro pra lá, comadre.

- Deve ser esquerdopata, a julgar pelo cabelo...

Me limitei a rir – mas não delas. Aquelas duas senhoras são sofridas demais pra eu rir delas. Infelizmente, suas almas foram capturadas por pessoas doentes e desalmadas. Minha mágoa é saber que o discurso de ódio vende como água... E o Amor é comprado como indecente.

O sorriso lago, a garça da menina, os gestos de borboleta - são a santíssima trindade da qual Nietzsche chamou de Estrela Bailarina.

Jei vson
Enviado por Jei vson em 18/05/2024
Reeditado em 01/06/2024
Código do texto: T8065827
Classificação de conteúdo: seguro