OLHAR DE NISE E A NOSTALGIA DOS IDEAIS
 
Cada período da história concede a qualquer cidadão a chance de lutar por valores que humanizem a sua época, a vida é a oportunidade mais nobre que temos para gravar uma breve e indelével marca por onde pisamos. Foi com esta certeza que deixei a sala de projeção do Odeon, sob o céu nublado de um domingo em crepúsculo. Em Olhar de Nise, uma das primeiras cenas que impactam enquadra a genial Elke Maravilha nos iluminando com uma explicação simples, quase didática, sobre degradante realidade presente. Hoje, falta ideologia, não a ideologia de partidos, de políticos, de rótulos e palavras de ordem. Faltam os ideais que nos aproximam do outro.
 
Entramos num século de discursos atrelados à assinatura individualista de rostos e expressões faciais, onde a palavra perdeu o sentido de intérprete dos nossos ecos mais íntimos para servir ao exoesqueleto do audiovisual. É o pensamento imóvel, a militância inerte, acorrentados aos microcosmos das Redes Sociais, num looping incessante de denúncias e indignações, hipnotizados pelas conspirações palacianas. É a sublimação da ego trip e a morte da práxis. Hologramas e avatares reunidos, alheios ao calor dos corpos. Nada poderia ser tão distante de Nise da Silveira, nada é tão mais próximo das psicoses que ela ajudou a tratar.
 
Num tempo de homens, ela foi mulher. Num tempo de médicos, ela foi doutora. Num tempo de Prestes e Olga Benário, ela foi a revolucionária. Num tempo em que psicóticos eram vistos como animais a serem domesticados sob tortura, ela os curou resgatando a dignidade que nos cabe. Os regatou através da arte, da sensibilidade, do respeito pela necessidade de expressão em formas alternativas. Numa das cenas, um ex-interno chega à casa da psiquiatra para visitá-la; eufórica, ela grita o nome do paciente e ergue os braços para um abraço materno. O amor e a ciência numa intercessão indispensável.
 
Ficou presa por mais de 1 ano, acusada de ser comunista, uma sina de muitos que queriam somente compartilhar humanidade.
 
Nise revela que suas primeiras leituras foram os livros de Machado de Assis, a quem credita os primeiros e fundamentais ensinamentos sobre psicologia. Admirava o velho bruxo e é interessante a convicção de como ela associa sua própria veia científica à literatura. Teve conversas com Manuel Bandeira e também cultivou intensa amizade com Graciliano Ramos. Criava gatos. Ao invés de casar, juntou-se, isso nos idos preconceituosos de 1920. Foi estudiosa incansável de Freud. Conheceu Jung, a quem impressionou com suas inciativas.

Aos 70 anos, aposentada compulsoriamente, ela conta que pegou um caderno, colocou debaixo do braço e foi se inscrever como voluntária no mesmo lugar em que trabalhou. Que delícia é ver aquela velhinha gesticulando elétrica, cercada de livros, nos esfregando na cara o valor do humanismo neste século narcisista, em que todas as causas desaguam num discurso macropolítico dos que negligenciam ao seu principal objeto: as pessoas. 
 
Nise foi uma renascentista e como nos faz falta novos renascentistas como ela. Vivemos num mundo de progressistas confusos, perdidos em dissertações frágeis diante do pragmatismo brutal de um capital que nos reduz, cada vez mais, a índices que precisam ser alijados do zelo do Estado.
 
O documentário termina, os créditos sobem junto com uma música do Raul Seixas. “Enquanto você se esforça pra ser um sujeito normal e fazer tudo igual...”, canta o Maluco Beleza. E o que poderia parecer um clichê fora do lugar, me emociona. Não saio do cinema querendo ser um revolucionário, desejo apenas ser mais humano.
 

 
 
 
 
Alexandre Coslei
Enviado por Alexandre Coslei em 11/12/2016
Reeditado em 12/12/2016
Código do texto: T5850477
Classificação de conteúdo: seguro