Releitura da obra Operários (1933), Tarsila do Amaral. "Também Somos Seres Humanos"

O trabalho nos consumia. 10;12;14 horas. A nossa função era dar lucro. Dormíamos, comíamos e bebíamos para trabalhar.

As condições eram desumanas. Era desgastante viver com tanta precariedade. Mas éramos apenas operários. Não tínhamos voz.

Numa segunda que parecia ser normal- e estava sendo-, às 06:00 já estávamos todos reunidos na fábrica para dar início ao grande dia. Estava próximo às festas de fim de ano e o trabalho era ainda mais agressivo, pois até nossa mísera uma hora de almoço havia sido reduzida.

“Também somos seres humanos”- disse um dos operários que vez ou outra eu fuzilava com um olhar. Era negro. A quantidade de operários era muito grande e não tínhamos tempo para jogar conversa fora. Mas eu o conhecia pelo negro de sua pele- que era um pouco raro naquele ambiente.

“Também somos seres humanos”- disse outro operário diante da grande porta de entrada da fábrica. Mal havia terminado de falar e já havia outro operário gritando a mesma frase. “Somos seres humanos” era a frase que agora gritavam com os dentes cerrados.

Nunca antes tiveram tal ousadia. Sabíamos que éramos dependentes do salário oferecido pela fábrica, por isso sempre recusávamos qualquer tipo de coisa que garantisse a nossa demissão.

“Somos seres humanos”; “somos seres humanos”. Os que estavam temendo gritar, não resistiram. Estávamos todos berrando numa só voz: “somos seres humanos”.

Os anos de precariedade criaram pensamentos revoltosos. O salário era escasso; a comida era péssima; trabalhávamos de forma errônea.. todo o cansaço psicológico acumulado de anos se deu num grande protesto. Ruas foram paradas. Crianças se prostravam nas janelas de casa para ver o que nunca presenciaram antes. Até operários vizinhos se juntaram a nós. Eram multidões de operários que se juntavam para reivindicar os direitos que nos eram garantidos- se é que tínhamos um. Imprensas se reuniram para dar a grande notícia: estávamos de greve. Era a primeira do país.

Já chegando à hora primeira do turno vespertino, ainda estávamos reunidos na rua (25 de Março) com o objetivo de protestar. Não queríamos ser a causa de tumultos- e não estávamos sendo. Protestávamos de forma pacífica. Ouvimos falar de uns “direitos trabalhistas” que estavam ao nosso lado. Era uma grande revolução. Mudaríamos a forma de trabalhar de muita gente, por gerações.

Quase chegando ao final do dia, recebemos a visita de uma mulher que dizia estar ao nosso lado. Havia acabado de chegar da Europa e se dizia artista. Nunca antes ouvimos falar. Mas a Tarsila de um tal de Amaral- como assim dizia ser chamada- disse que isso seria um marco na vida de muitos trabalhadores até fora do país. Ah, que orgulho dos meus colegas! Quem diria que míseros operários de uma fábrica de laticínios mudariam o mundo!

Dias se passaram e voltamos a trabalhar normalmente. Não diria normalmente, pois a nossa carga horária havia sido reduzida a oito horas diárias, o horário de almoço havia aumentado e até a comida nos favorecia. Meses depois saiu estampado nas capas de muitos jornais um quadro feito pelas mãos da Tarsila de um tal de Amaral que era em homenagem a nós. Abaixo da foto estava escrito: “Também somos seres humanos”.