INFLUÊNCIAS IBÉRICAS NA LITERATURA DE CORDEL

PRESENÇA DE AUTORES ERUDITOS DE PORTUGAL E ESPANHA NA

LITERATURA DE CORDEL*

Por: Arievaldo Viana

Têm-se a errônea impressão de que os poetas populares são pessoas semi-analfabetas e de pouca incursão pelo campo literário. Esse equívoco foi reforçado, de certo modo, pela figura brilhante de Antônio Gonçalves da Silva, o popular Patativa do Assaré, um poeta roceiro, que escrevia seus poemas na linguagem rude própria dos sertanejos. É bom que se esclareça que Patativa também compôs sonetos na linguagem convencional e era leitor assíduo de Camões, Castro Alves, Gonçalves Dias e outros poetas eruditos. Um analfabeto jamais teria condições de produzir uma obra com a qualidade de seus escritos, aparentemente simples, mas de grande profundidade filosófica. Outra questão que deve ser trazida à luz refere-se aos poetas Leandro Gomes de Barros, Silvino Pirauá de Lima, João Martins de Athayde, João Melchíades Ferreira, José Galdino da Silva Duda, José Camelo de Melo e Francisco das Chagas Batista, considerados os grandes mestres da Literatura de Cordel. Todos tinham uma razoável formação intelectual, sendo que este último era dono de livraria e editora na capital da Paraíba. Manoel D’Almeida Filho, Manoel Camilo dos Santos e Joaquim Batista de Sena, poetas da segunda geração, também primavam pela correção ortográfica e eram dados a leituras eruditas. Batista de Sena chegou a confessar ao pesquisador José Vidal Santos, que havia lido todos os verbetes do Dicionário de Aurélio Buarque de Hollanda, com o intuito de melhorar seu vocabulário e empregar corretamente as palavras em seus poemas. Cantadores contemporâneos como Ivanildo Vilanova, Geraldo Amâncio e Oliveira de Panelas possuem, igualmente, uma grande bagagem cultural. O mesmo pode-se dizer de vários cordelistas da atualidade, dentre os quais destacaríamos Marco Haurélio, Gonçalo Ferreira, Manoel Monteiro, Rouxinol do Rinaré, dentre outros.

Uma prova evidente de que os mestres da poesia popular possuíam grande intimidade com as letras está na quantidade de folhetos e romances baseados em clássicos da literatura mundial, como “As mil e uma noites”, “Romeu e Julieta”, “Decamerão” e, evidentemente, o Antigo Testamento.

Mas, já que o tema central de nossa palestra são as influências ibéricas na poesia popular nordestina, passaremos a enumerar agora algumas obras literárias de Portugal e Espanha que serviram de inspiração para os nossos trovadores:

O drama O RICO AVARENTO da autoria do poeta português Bento Teixeira (Porto, 1560 – 1618) foi adaptado para Literatura de Cordel pelo paraibano Belarmino Nunes de França.

A obra PEDRO SEM, QUE JÁ TEVE E AGORA NÃO TEM, da autoria de Luís Antônio Bergain (natural de Havre, 1812) foi transformado em “HISTÓRIA DE PEDRO CEM” por Leandro Gomes de Barros e posteriormente por Apolônio Alves dos Santos.

O romance AMOR DE PERDIÇÃO, do grande escritor português Camilo Castelo Branco (Lisboa, 1825-1890) possui versão em cordel atribuída a João Martins de Athayde. Camilo escreveu também “A Vida de José do Telhado”. Os poetas populares Antônio Teodoro dos Santos e Rodolfo Coelho Cavalcante utilizaram o personagem Zé do Telhado em folhetos de sua autoria.

O romancista espanhol Henrique Pérez Escrich escreveu a obra O MÁRTYR DO GÓLGOTHA, da qual possuímos uma edição de 1891, impressa em Porto e traduzida por J. Cruzeiro Seixas. Este romance teve grande aceitação em todo o Nordeste brasileiro e gozou de grande popularidade junto aos cantadores do passado. Era, ao lado do livro de Carlos Magno e do Lunário Perpétuo, leitura obrigatória para os poetas que cantavam “ciência” no passado. Serviu também de fonte de inspiração para diversos poetas como Severino Borges da Silva, Manoel Pereira Sobrinho, Maria Batista Neves Pimentel e Francisco das Chagas Batista, todos paraibanos. Existem dois folhetos com o título O JUDEU ERRANTE, um de Manoel Pereira Sobrinho, outro de Severino Borges da Silva, que são claramente influenciados pela narrativa de “O Mártyr do Gólgotha”. Chagas Batista escreveu a HISTÓRIA DE DIMAS, O BOM LADRÃO, que também denota influências da referida obra. Já Maria das Neves Batista Pimentel escreveu O VIOLINO DO DIABO, inspirado em romance do mesmo nome, da autoria do citado Pérez Escrich.

Joaquim Batista de Sena, paraibano de Solânea, escreveu o poema AS SETE ESPADAS DE DORES DE MARIA SANTÍSSIMA claramente inspirado no romance de Pérez Escrich, notadamente na passagem que relata o encontro da Sagrada Família com Dimas, o bom ladrão, nos desertos das Judéia:

Inspirai-me ó Virgem Pia

Mãe de Deus, mãe amorosa

Para em poema versar

A coroa dolorosa

E ver se colho uma lágrima

Da pessoa impiedosa.

Quem subir o pensamento

Vai do Gólgota observando

Jesus pregado na cruz

A sua vida ultimando

Maria ao pé do lenho

Seus tormentos contemplando.

Os tormentos de Jesus

São os mesmos de Maria

Quando furavam seu filho

O seu coração feria

Ele sofria no corpo

Ela na alma sofria.

E não foi só no Calvário

Aquelas lágrimas sentidas

Mas toda a sua existência

Foi de dores comovidas

Era uma sobre a outra

Como ondas embravecidas.

A primeira dor foi quando

Jesus Cristo foi à pia

Que o velho Simeão

Tomou ele de Maria

E com a profetisa Ana

Declarou-lhe a profecia:

- Senhora, esse vosso filho,

Disse o velho Simeão

Será para vós motivo

De lágrimas, dor e paixão

E por ele, sete espadas

Transpassam o teu coração.

(...)

A segunda dor foi quando

Veio um anjo lhe avisar

Que fugisse para o Egito

E deixasse o seu lugar

Que Herodes o perseguia

Para o menino matar.

(...)

Numa noite tenebrosa

De relâmpagos e trovões

Seguia a Virgem chorando

São José em orações

Caíram em cerco de Dimas

Com o coito de ladrões.

São José amedrontado

Estacou naquele canto

A Virgem escondeu o filho

por debaixo do seu manto

Pensando ser os judeus

Pra matar seu filho santo.

São José pediu a eles

Por Jeová, Deus divino,

Que mal vos fez essa mãe

Com esse pobre menino,

Para banhar nosso sangue

Nesse punhal assassino?

Com a maior piedade

Falou Dimas, bom ladrão,

Nenhum desses meus capangas

Te tocará com a mão

E levou-os ao seu castelo

Comovido em compaixão.

Seguindo a mesma linha adotada pelos grandes mestres da Literatura de Cordel, desenvolvi e apresentei ao público (do Congresso Internacional de Professores da Língua Espanhola) um trabalho de nossa autoria denominado “A FORÇA DO SANGUE”, um cordel de 32 páginas baseado numa novela exemplar de Miguel de Cervantes, do qual apresentamos algumas estrofes:

Para o leitor que aprecia

Um bom romance rimado

Leia agora este episódio,

Há muito tempo passado.

Em Toledo, na Espanha,

Por Cervantes foi narrado.

Em Novelas Exemplares

Se encontra essa história

Eu a li quando criança

E ainda trago na memória

Narra um grande sofrimento

Com final cheio de glória

Um cidadão de Toledo

Retornava com a família

De um passeio vespertino

Por uma sinuosa trilha

Com a mulher, um menino

E também sua linda filha.

Parte II

As maiores autoridades que se ocupam em pesquisar o Romanceiro Popular Nordestino denominado, de uns tempos para cá, de Literatura de Cordel, atestam que sua origem está ligada aos trovadores medievais da Europa e ao Romanceiro Ibérico. O centro irradiador do Trovadorismo na Península Ibérica foi a região que compreende o Norte de Portugal e a Galiza, onde está situado o famoso centro de romarias consagrado a Santiago de Compostela. Os trovadores produziam poemas e cantigas que eram propagadas pelos jograis ao som de instrumentos como a flauta, a viola e o alaúde. As composições de maior aceitação popular chegaram a ser impressas. A própria denominação Literatura de Cordel, amplamente utilizada para designar a poesia popular nordestina nos dias de hoje, vem de Portugal*, onde os folhetos dos trovadores eram vendidos a cavalo no cordão. Na Espanha, dava-se o nome de “pliegos sueltos” a este tipo de literatura.

Por influência da colonização espanhola, esse tipo de cultura manifestou-se em diversos países da América Latina como o México, Guatemala, Peru e Argentina. Em nenhum deles, entretanto, teve a força e a projeção que alcançou no Nordeste do Brasil. Aqui, depois de impressas, as histórias eram decoradas por cegos cantadores e recitadas para as multidões nos alpendres e nas feiras sertanejas, ao som da viola ou da rabeca, instrumento rústico ancestral do violino.

Sabe-se, de fato, que os grandes clássicos do nosso romanceiro são oriundos de antigas estórias escritas originalmente em prosa ou quadras em Portugal, França e Espanha. Câmara Cascudo afirma, em seu “Vaqueiros e Cantadores”, que a “História do Imperador Carlos Magno e os Doze Pares de França, traduzida do castelhano para o português, era o grande livro de História para as populações do interior nordestino”. Desta obra originaram-se folhetos como “Batalha de Oliveiros e Ferrabrás”, “Prisão de Oliveiros”, “Roldão no Leão de Ouro” e “A morte dos 12 Pares de França”. Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco, foi adaptado num longo poema atribuído a João Martins de Athayde, publicado em dois volumes de 32 páginas cada um. Outra grande fonte de pesquisa e inspiração para os cantadores e poetas populares de antigamente foi o romance “O Mártir do Gólgota”, do escritor Espanhol Henrique Pérez Escrich, do qual já falamos em postagem anterior. Histórias como a do célebre navegador João de Calais, de Pierre e Magalona e do duque normando Roberto do Diabo também chegaram ao nosso conhecimento através de versões impressas em Portugal e Espanha.

* Nota – O termo LITERATURA DE CORDEL se popularizou a partir de 1881, quando o pesquisador português Teófilo Braga publicou sua obra “Os Livros Populares Portugueses, Folhas Volantes ou Literatura de Cordel”.

Fragmento de palestra realizada no Congresso Internacional de Professores da Língua Espanhola.

* Esse texto é um fragmento da palestra “Influências Ibéricas na Literatura de Cordel”, que proferi em 2002 num congresso de professores de língua espanhola, realizado em Fortaleza-CE.

Arievaldo Viana
Enviado por Literatura de Cordel em 13/08/2015
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