Moby Dick: releitura de um clássico

“Dizem que sou louco, mas eu sou demoníaco, sou a loucura enlouquecida.”

Fala do capitão Ahab

Uma das provas de que uma obra é um clássico é a sua vitalidade, e este é o caso de Moby Dick, o imortal romance de Herman Melville. Até hoje, a saga do capitão Ahab e da sua perseguição ao cachalote branco encanta leitores e rende inúmeras adaptações para o cinema e televisão, versões animadas e paródias, além de ter inspirado outros artistas. Peter Benchley, autor de Tubarão, admitiu que leu Moby Dick e o tinha como inspiração. Mesmo quem não leu o livro sabe da história da implacável obsessão do capitão que deseja matar a baleia branca por tê-lo mutilado, arrancando sua perna e enchendo seu espírito de ódio e loucura.

A qualidade do romance de Melville apenas comprova o que todo escritor deve saber: para escrever bem, devemos conhecer aquilo sobre o que escrevemos. E Herman Melville conhecia profundamente o mundo da marinha baleeira. Ele próprio trabalhou em navios baleeiros. O romance tem muitas páginas explicando o procedimento da caça às baleias, a importância comercial que a gordura desses cetáceos representava para a época e as diversas espécies de baleias que existentes. Dos cachalotes (a espécie de Moby Dick) extraía-se o espermacete, que tinha muitas utilidades para a economia americana naqueles tempos. Vale acrescentar que era preciso ser corajoso para caçar baleias. Na época do romance (por volta de 1850), a caça era muito mais perigosa e caçar tais animais colocava vidas em risco.

Cachalotes costumam ser agressivos e atacar embarcações. Muitos foram os casos reais de navios baleeiros afundados por esses imponentes mamíferos marinhos. Melville se inspirou em um caso real, em que um cachalote afundou um navio baleeiro chamado Essex. Também é bom dizer que existiu um cachalote albino que era feroz e que vivia no Oceano Pacífico, no Chile, a quem chamavam Mocha Dick. Assim como Moby Dick, Mocha Dick levou muitas arpoadas até o dia em que finalmente foi abatido e tinha um comportamento bastante agressivo.

Melville também era um ávido leitor e se admite que ele leu Arthur Gordon Pym, de Edgar Allan Poe e, provavelmente, a epopeia clássica A Odisseia, de Homero. Muitos críticos literários veem em Moby Dick evidências de que ele teria se inspirado em O albatroz, do poeta inglês romântico Samuel Taylor Coleridge. Alguns ainda acham Ahab parecido com o Hamlet de William Shakespeare. O capitão de Mellville, por sinal, serviu de inspiração para o Capitão Gancho de Peter Pan, cuja mão decepada pelo menino que não queria crescer foi comida por um crocodilo. É provável que Cecília Meirelles tenha lido Moby Dick pois um poema seu fala em naufrágio.

Moby Dick, que de início parece ser uma simples narrativa de aventura, é muito mais que isso. Ela é um verdadeiro drama, com profundas reflexões filosóficas acerca da existência humana, da busca pelo inacessível, das questões que nos fazem perguntar a razão de estarmos neste mundo. Haverá um destino prescrito ou somos os autores da nossa existência? Todas essas questões permeiam a obra e não há uma resposta definitiva porque, na verdade, uma boa obra literária não deve responder a perguntas, mas lançar questionamentos sobre tudo que nos inquieta.

Mais recentemente, uma adaptação feita para a televisão no ano de 2011 na forma de minissérie tem chamado a atenção de muitos devido às várias liberdades que quem escreveu o roteiro tomou em relação à história original. Se essas adaptações não tornam a história ruim na sua totalidade, com certeza não agradam a muitos que leram o livro ou assistiram à versão cinematográfica de 1956, em que Gregory Peck representa Ahab. Quem assistiu à magistral interpretação de Gregory Peck diz que teve a impressão de que o icônico capitão havia saltado das páginas do livro. E, com certeza, não dá para discordar de quem faz tal afirmação pois Peck, com sua voz possante e atuação imponente, consegue transmitir com um simples olhar a personalidade soturna, misteriosa e atormentada do capitão que quer a todo custo matar a baleia que o aleijou. Em outra adaptação, feita para a televisão em 1998, Ahab é interpretado pelo competente Patrick Stewart que, embora consiga transmitir bem a loucura e o tormento interior de Ahab, ainda assim é desfavoravelmente comparado a Peck. Na mais nova versão, a interpretação de William Hurt não foi bem recebida por vários espectadores, embora devamos reconhecer que ele é um excelente ator. Certamente, o fato da atuação de Hurt não corresponder satisfatoriamente ao que muitos dos que conhecem o romance esperam se deva mais à maneira como o personagem é construído. Sabemos que a construção de um personagem, apesar de depender muito de um ator e do seu desempenho, também dependerá dos que escrevem um roteiro e dirigem os atores no set de filmagem.

Ahab é um personagem complexo, carismático e fascinante, que tem sido alvo de estudos por parte de críticos literários e de psicólogos que tentam entender o que o leva a caçar incansavelmente a baleia Moby Dick devido à sua complexidade e ao mistério que o cerca. Percebemos bem que ele não é exatamente mau, embora não possamos acha-lo bom. Devemos reconhecer que ele é louco, ainda que tal conceito seja superficial para dar uma ideia exata do seu caráter e do que o leva a não descansar enquanto não pegar Moby Dick. Ele pode simbolizar o inconformismo, a arrogância de alguém que quer, a todo custo, dominar as forças da natureza e alcançar o inalcançável ou então aquelas pessoas dispostas a ir até às últimas consequências na busca dos seus objetivos.

Já Moby Dick, que parece ser um simples animal, adquire simbolismos importantes. O que ela pode significar? A força implacável da natureza, o destino, os mistérios do Universo, que queremos entender de qualquer maneira? Devemos fazer tais questionamentos porque, afinal, em princípio, não faz sentido um homem querer se vingar de um animal supostamente irracional. E a história de Moby Dick lança questões sobre a condição humana, o desejo de romper limites que leva muitos a se aventurarem na busca pelo desconhecido. Esse desejo é o que move Ismael, narrador da história e autor da frase que dá início ao romance: “Chamai-me Ismael.” Assim como Ismael, quem não quer ir além, viver aventuras?

O nome de Ahab deriva do nome bíblico Acab, rei perverso a quem o profeta Elias fazia oposição. O livro, por sinal, é cheio de referências bíblicas e sinais de mau agouro que anunciam uma tragédia. Ismael, nome do personagem narrador, refere-se ao filho de Abraão com a escrava egípcia Agar. Há um personagem louco chamado Elias (referência ao profeta bíblico) que, falando com Ismael e seu amigo arpoador Queequeg, diz que a viagem terminará em tragédia. Uma outra passagem importante é a pregação do Reverendo Mapple, que fala sobre Jonas e a baleia, pregando sobre o homem que acha que pode controlar seu destino mas não pode escapar do que Deus planejou para ele. Entre os muitos sinais de mau agouro, há o nome da estalagem onde Ismael se hospeda e conhece Queequeg: Peter Coffin (caixão de defunto), o jato fantasma avistado pelos baleeiros durante a viagem, os restos devorados de uma lula flutuando no mar, os sonhos de Ahab com carros funerários e o pedido de Queequeg para que façam um caixão para ele quando se encontra gravemente doente e sente que morrerá em breve.

Se esta nova versão, em que William Hurt (Corpos Ardentes) é Ahab, Charlie Cox (Demolidor) é Ismael, Ethan Hawke (Sociedade dos poetas mortos) é Starbuck e Raoul Trujillo é Queequeg não consegue agradar a tantos fãs da história, devemos considerar que é muito difícil transmitir toda a essência e complexidade de uma obra como Moby Dick para as telas ao tentar adaptá-la. Nem sempre se pode ser completamente fiel e os roteiristas e diretores sempre usam sua visão de mundo ao fazer suas adaptações. No caso desta releitura de Moby Dick, podemos notar inclusive muitas tentativas de humanizar Ahab e o uso de pontos de vista bastante contemporâneos sobre diversidade cultural, escravidão, respeito às raças e religiões. Entre as muitas liberdades que esta adaptação adota está a introdução da esposa e do filho de Ahab – que no romance são apenas mencionados – e a ausência do sinistro Fedallah – um parse(etnia indiana) e seguidor do zoroastrismo - , personagem que desempenhou papel fundamental no desenrolar da história ao desvendar sonhos premonitórios do capitão Ahab.

Para entendermos bem as diferenças entre a história original e a recente adaptação televisiva, comecemos falando sobre como os personagens vão sendo apresentados. No romance, Ismael começa falando sobre os motivos que o levam a viajar pelo mundo explorando o mar. O personagem, bastante reflexivo, embora não tenha um papel fundamental no desenrolar da trama, é a janela através da qual entramos no universo de Moby Dick e dos seus personagens. Então, após Ismael se apresentar, ele vai à estalagem de Peter Coffin, onde conhece Queequeg, que de início causa um certo medo no narrador por causa do seu aspecto peculiar: ele é todo tatuado e carrega consigo cabeças mumificadas. Depois, Ismael e Queequeg se tornam amigos e vão ao Pequod, conhecendo aos poucos os demais tripulantes: os outros arpoadores, que são o índio Tashtego e o negro Daggoo, o primeiro imediato, Starbuck, o segundo, Stubb, o terceiro, Flask, o jovem grumete Pip, garoto negro e tantos outros. No começo, Ahab não aparece e Ismael fica curioso em saber quem ele é, porém só ouve seus passos. O pouco que se sabe dele no começo é que ele é um homem estranho, que tem tido crises de depressão desde que perdeu a perna. Só depois Ahab aparece, dizendo que seu objetivo é caçar Moby Dick. Os marinheiros, fascinados por sua eloquência e carisma, concordam com a ideia. Apenas Starbuck fica apreensivo, porque ele quer caçar baleias, não se vingar de um animal irracional.

No filme, Ismael começa passeando de carroça para ir em busca de se aventurar no universo baleeiro e, no caminho, vê Pip sendo surrado por um feitor. Ele salva o jovem e o leva junto com ele. Quando Pip pergunta quem ele é, ele diz:”Chamai-me Ismael.” Depois, somos apresentados a Ahab, que observa, de sua janela, a reconstrução do Pequod, que está bastante avariado. Logo, aparece sua mulher, Elizabeth, interpretada por Gillian Anderson (Arquivo X). E o que se veem são cenas típicas de uma família feliz: Ahab, que tem uma vida bastante confortável, está jantando com a esposa e filho, quando aparece Starbuck, que quer alertá-lo que o Pequod não está pronto. Mas o teimoso Ahab quer se lançar ao mar de qualquer forma.

As cenas da vida familiar de Ahab nos fazem lamentar que ele queira ir atrás de Moby Dick. Vai deixar para trás uma esposa amorosa e um filho em busca de vingança? E vemos que ele tem uma boa família. Ele aparece dando um beijo de boa noite em seu filho, levando-o para ver o conserto do barco e conversando com sua esposa sobre ir ou não à igreja. No livro, Ahab só fala que tem uma mulher e um filho quando a história está bem adiantada, numa passagem bastante emocionante, ao pedir que Starbuck o deixe olhar em seus olhos pois neles pode ver sua mulher e seu filho. Aliás, no filme, podemos ver que Starbuck e Ahab parecem ser bem próximos a ponto de Elizabeth pedir ao primeiro imediato que vigie seu marido. No romance, nada indica que o capitão e Starbuck fossem tão próximos.

Por que os roteiristas colocaram personagens como a mulher e o filho de Ahab?Pode ter sido uma tentativa de humanizar o personagem ou dar mais vez a personagens femininos, que praticamente inexistem no livro – o que não é de estranhar, visto que o universo baleeiro era masculino – mas acaba por diminuir a aura de mistério que caracteriza Ahab.

Na estalagem de Peter Coffin, Ismael, além de conhecer Queequeg, acaba conhecendo todos os outros, como Tashtego e Daggoo. E é na estalagem que Starbuck, acompanhado de Bilbad, vai contratar os tripulantes. Quando Bilbad não quer contratar Queequeg por este ser pagão, Starbuck tem uma atitude bastante tolerante, dizendo:”Não faço objeções à religião de nenhum homem desde que ele me mostre o mesmo respeito”. Starbuck, além de ter este procedimento bem avançado para a época, ao conhecer Pip, que revela ser do Alabama, fala que não há escravos em Nantucket.

Também é válido observar que, enquanto no livro Ismael nunca falou diretamente com Ahab, no filme de 2011, ambos se tornam próximos, com Ahab praticamente adotando Ismael como pupilo, o que representa outra grande mudança, fazendo com que este último adquira maior relevância.

Que podemos dizer do elenco? Charlie Cox é competente ao interpretar Ismael, Gillian Anderson convence como a paciente esposa de Ahab, Raoul Trujillo também tem um bom desempenho como Queequeg e William Hurt faz seu papel com competência, mas quem realmente brilha é Ethan Hawke, como Starbuck. Nesta última versão, o sensato, prático e religioso primeiro imediato acaba sendo o personagem mais bem desenvolvido da história. Enquanto William Hurt soa um pouco exagerado – quase caricato, aliás – Ethan Hawke atua de forma contida, fazendo com que seu personagem seja um contraponto perfeito ao insano Ahab. E a oposição de Starbuck a Ahab acaba sendo o ponto forte do filme. Ambos são o claro e o escuro, o yang e o ying que fazem oposição um ao outro. Um só quer caçar a baleia e o outro quer impedir um desastre, perguntando-se o que deve fazer.

Mesmo nas cenas feitas para William Hurt ser o destaque, Ethan Hawke se destaca, mostrando com seus olhares, gesto e postura, o desapontamento e preocupação de um homem que percebe que Ahab está levando os homens numa caçada insana que poderá causar sua destruição. Em uma cena, quando Ahab convence todos os homens a concordar em caçar Moby Dick e eles começam a gritar o nome da baleia, Starbuck fica quieto, seu olhar mostrando que ele sabe que os homens estão se deixando manipular pela loucura e carisma de Ahab e que isso não vai levar a algo bom. Neste momento, os homens, gritando feito idiotas o nome da baleia branca, nos fazem pensar nas grandes massas que se deixam levar sem refletir por figuras carismáticas como Hitler, que convenceu os alemães que os judeus eram os inimigos da nação alemã. Pessoas como Starbuck, que usam a razão e conseguem ver a loucura de tais empresas, costumam ser minorias e não são ouvidas. E isso acaba confirmando o que disse Nelson Rodrigues sobre toda unanimidade ser burra. E, ao longo do filme, Starbuck dirá mais com seus olhares do que muitos atores com longos discursos. Seu olhar mostra um homem dividido entre a obediência ao seu capitão e seu senso de dever e preocupação com o destino de vários homens que não percebem que a loucura e o egoísmo de seu capitão os levarão à destruição. Na vida real, quantas pessoas não são destruídas ou consumidas por gente egoísta que só quer a todo custo realizar seus objetivos?

Portanto, podemos ver que Moby Dick é uma história imortal que sempre valerá a pena ser revisitada. Ainda que esta versão não chegue a corresponder totalmente ao potencial dramático da obra original, ainda assim ela funciona como uma trama de aventura, com boas doses de drama e suspense.