A morte e a morte de Olney São Paulo

Se o cinema não existisse (eu só não seria cineasta se o cinema não existisse), seria contista, pintor ou músico, nesta ordem” (Olney São Paulo)

Em 1978, Olney São Paulo, filho de Riachão de Jacuípe, com passagem destacada pela cultura local de Feira de Santana, ainda na Bahia, e depois no Rio de Janeiro, “se transformou em luz”, como diz o amigo, compadre e cineasta, colega de profissão, Orlando Senna, num artigo emocionado. Uma luz tênue, infelizmente, vista por poucos no País dos sem-memória. Procurar algo sobre Olney São Paulo nos sites oficiais do governo, é chover no molhado. Uma jornalista do Rio de Janeiro, Ângela José (NR: faleceu este ano), arriscou-se a fazer uma biografia – Olney São Paulo (A Peleja do Cinema Sertanejo), publicada em 1999 pela Quartet. Iniciativa louvável, mas que sequer teve lançamento à altura em terras baianas. Em 1999, na Jornada Internacional de Cinema, organizada por Guido Araújo, teve tarde de autógrafos no Forte de Monte Serrat. Para quem foi torturado pela Ditadura Militar por causa de um filme, Manhã Cinzenta (1968), uma ironia e tanto, prestigiada por poucos gatos pingados.

Cogitava-se em Salvador (no Pelourinho, afinal, trata-se de história e patrimônio) e também em Feira de Santana, tendo à frente esta jornalista a criação de um memorial, preservando o acervo de 14 filmes, os contos, além dos escritos nos jornais de época, enfim... A memória de quem foi considerado por Glauber Rocha um ‘martyr do Cinema Novo’ e por Orson Wells um cineasta acima da média e das medidas. Em seu livro – leitura obrigatória para os aspirantes a cineastas e jovens cineastas em evidência – Ângela José conta um pouco da vida e da obra deste artista. Morto, de acordo com as “orelhas” assinadas por Orlando Senna, por ter “ousado fazer um filme sobre 1964 em 1968”, filme que, ainda segundo Senna, “pelo esplendor e a maldição, desviaram a atenção de estudiosos e cinéfilos do restante da obra de Olney, descrevendo temas do sertão e do mar, camponeses, ciganos, erês, adivinhadores de chuva”.

Na Secretaria de Cultura do Estado, encontra-se há anos, de minha autoria como já dito, o projeto Quincas & Molambo (título provisório), de cunho sócio-cultural, com direito, é claro, a um memorial a este que foi um dos grandes nomes do Cinema Novo, embora, na lembrança embaçada da maior parte dos historiadores, pareça ininteligível. Nos depoimentos que se seguem, os cineastas Orlando Senna, Tuna Espinheira, Emmanoel Cavalcanti, a jornalista Ângela José e o filho mais velho, Olney São Paulo Jr., relatam um pouco da vida e da obra deste homem.

Olney deixou essa terra aos 41 anos, pai de quatro filhos à época (Olney, Ilya, Irving in memoriam e Pilar), vítima oficial de um câncer de pulmão e, oficiosa, de um cárcere no Rio de Janeiro, no qual sofreu todos os tipos de agressões, embora, depois de liberto, tenha optado por falar pouco ou quase nada sobre o assunto. Deixou viúva, a sua musa Maria Augusta (NR: Faleceu recentemente), que, saída de Antas, no interior da Bahia, filha de nobre fazendeiro, seguiu o homem amado numa vida de apertos e dificuldades financeiras, num lar onde, como fazia questão de dizer “O Velho Baiano”, apelido dado pelos amigos, havia sempre espaço para todos e pão para repartir.

Quando morreu, a 15 de fevereiro de 1978, depois de três paradas cardíacas, sendo enterrado no dia seguinte no cemitério São João Batista (RJ), Olney São Paulo deixou Um Dia de Erê para ser finalizado pelos amigos Orlando Senna e Manfredo Caldas. Todas as recomendações foram seguidas, mas o hoje cultuado fotógrafo Walter Carvalho assume o take rodado sem que Olney se desse conta. Nele, o cineasta recebe “passes” de descarrego de uma entidade de Umbanda. Ao final, a imagem congelada do homem que simplesmente ousou sonhar. Talvez sua passagem para o céu. O sétimo da arte que tantos anseiam!

Humanismo e poesia
Orlando Senna*

Meu compadre Olney São Paulo filmava com o que tinha à mão, com a câmara que podia conseguir, com negativo vencido, com produção mínima ou sem produção. Ainda não tinha vinte anos, há pouco havia abandonado a pequena Riachão de Jacuipe no agreste baiano e começava a conhecer o mundo nas ruas de Feira de Santana, dita Princesinha do Sertão, quando fez seu primeiro filme. Como ninguém conhecia o assunto em um raio de cem quilômetros (a distância Feira-Salvador), foi roteirista, diretor, ator, figurinista, cenógrafo e continuista, além de se ocupar do som. Era o cabeça de um pequeno grupo de jovens que se interessava por fotografia e cinema e que, na falta da possibilidade de fazer, mergulhava na teoria. A esta altura Olney já tinha lido toda a teoria, façanha das maiores para quem vivia no interior da Bahia nos anos 40 e 50, e visto mais filmes do que todos seus amigos de Feira - cobria constantemente os tais cem quilômetros para ver filmes em Salvador e para freqüentar, aos domingos, o Cine-Clube de Walter da Silveira, onde o conheci. A teoria já estava digerida, John Ford já lhe havia mostrado a “força criadora”, Vittorio de Sica já lhe havia revelado o “lirismo”, já não havia outro caminho possível para sua ânsia a não ser a prática.
Não podia fazer tudo, claro, não dá para chutar o córner e cabecear na área, e estimulou um dos amigos, Elídio Azevedo, que fazia fotos, a entestar uma câmara cinematográfica. A câmara, uma Kodak mais antiga do que estes antigos tempos aqui narrados, conseguiram emprestada. Para a compra do negativo fizeram uma vaquinha. Não deu para muito, teve de ser um por um (ou seja, só tinha dez minutos de negativo para um filme de dez minutos de duração) e assim foi feito. Grana para a montagem, para alugar uma moviola, nem pensar. Então o jeito foi fazer a edição na câmara, filmar a história na ordem linear, incluindo as inserções, o que deu um enorme trabalho a Elídio e ao próprio Olney (que também cinegrafava quando não estava de ator) porque não é fácil: em cada troca de plano tem de voltar um pouco a película para não dar fotograma em branco, evitar os saltos de imagem, manter o equilíbrio da luz ou calcular exatamente as mudanças dela.
Tempos heróicos, um tipo de cineasta que não existe mais. O filme, preto-e-branco, com muita câmara na mão, primeiros planos exacerbados e travellings vertiginosos, se chama Um crime na rua, meio policial, meio documentário, suspense universal e essência nordestina, feito em 1955, mais ou menos na mesma época em que Roberto Pires realizava em Salvador seu primeiro filme curta, O calcanhar de Aquiles, também preto-e-branco, também um policial (no de Olney a pista é um toco de cigarro, no de Roberto é um prego no sapato). No sertão e na cidade, Olney e Roberto gestavam o moderno cinema baiano e, por extensão, o Cinema Novo brasileiro. Até se transformar em luz, numa noite estrelada de 1978, Olney dirigiu quatorze filmes (além de atuar como continuista, assistente ou produtor de outros nove), entre eles o clássico Manhã Cinzenta, um marco na evolução estética do cinema brasileiro e na relação política do artista independente e vertical com o Estado repressor e horizontal e vice-versa.
Todos os seus filmes foram realizados do jeito como realizou o primeiro, Crime na Rua: com produção escassa, apoio da família e de amigos (os tinha em quantidade), superação de qualquer dificuldade. Alguns mais, outros menos, todos foram uma batalha pessoal, um corpo-a-corpo com arma branca, um enfrentamento de vida ou morte. E em todos a realidade brasileira nua e crua segundo o seu ponto de vista onde a sabedoria arcaica do sertão e a cultura sofisticada do ocidente resultam em indignação e humanismo. Mesmo em O Forte, o único filme em que lançou mão de uma história não escrita por ele, o que prevalece é a sua alma-olho de cineasta radical, o seu ângulo humanista e não o do autor do romance homônimo. Radical, vertical, experimental, marginal, ou seja, poeta.

*Orlando Senna é cineasta.

Olney e a amnésia cultural brasileira
Ângela José*

Passados tantos anos da morte de Olney São Paulo sua obra continua desconhecida para muitos estudantes e estudiosos do cinema brasileiro. Se estivesse vivo, Olney faria 66 anos neste 7 de agosto e talvez nos tivesse brindado com vários filmes cujos roteiros já estavam prontos. Porém, mesmo trabalhos como Ciganos do Nordeste, um dos seus últimos documentários, continua inédito para o grande público, esquecido no acervo do CTAv/Decine, pois não existe verba por parte dos organismos oficiais para recuperá-lo.
Dediquei cinco anos estudando e pesquisando a obra de Olney. Decupei seus filmes, reuni artigos, reportagens e entrevistei pessoas que conviveram com ele para minha tese de mestrado. Em 1999, transformada no livro biográfico: Olney São Paulo e a Peleja do Cinema Sertanejo, foi lançada no Rio e em Salvador. Meu interesse pelo personagem surgiu em 1976, após assistir numa sessão clandestina do filme Manhã Cinzenta, obra pela qual o seu autor pagou um alto preço, foi preso, torturado e processado durante o regime militar.
Mártir do nosso cinema, vítima de uma época em que o País silenciava opositores e criadores intelectuais, Olney continua vítima da amnésia cultural brasileira. O passado pouco importa, “o aqui e o agora”, é a máxima de um povo que prefere esquecer a reverenciar. Este silêncio sobre nossa história e raízes culturais me faz lembrar um dos últimos roteiros de Olney, sobre A Revolta dos Alfaiates. Para ele, o ocorrido na Bahia tem tanta importância histórica quanto a Inconfidência Mineira para o Brasil. O cineasta morreu acalentando o sonho de transformar seu argumento em filme.
E acredito que é esta a segunda morte de Olney, a falta de continuidade de uma obra comprometida com seu povo e com suas raízes culturais. Preocupado em expressar o homem, em particular o homem nordestino, ele descobriu na sua própria cultura sertaneja, personagens, histórias e temas a serem abordados. Riachão de Jacuípe, Cachoeira e Feira de Santana, foram cenários dos documentários Sob Ditame de Rude Almajesto: Sinais de chuva; Cachoeira – Documento da História; e Como Nasce Uma Cidade.
A obra do artista plástico Raimundo de Oliveira está em O Profeta de Feira de Santana e o carisma do deputado federal Francisco Pinto em Pinto Vem Aí. O desenvolvimento do teatro brasileiro e as festas populares de São Cosme e Damião também estão presentes em sua filmografia.
Olney São Paulo foi um artista extremamente preocupado em documentar a cultura e a vida do homem brasileiro diante das perspectivais sociais e políticas de sua época. Mesmo quando parte para a ficção o seu foco é voltado para a literatura baiana, de Adonias Filho levando para as telas O forte e de Ciro Carvalho Leite, Grito da terra. Independente das críticas que toda adaptação literária sofre, são obras a serem vistas e discutidas. E este é o poder do cinema, eternizar imagens de uma época. Olney só não seria cineasta se o cinema não existisse e já que ele existe, por que não rever sua obra?...

Angela José do Nascimento, jornalista e produtora cultural, organizadora do Festival Latino-Americano de Cinema e Vídeo-Cinesul, atualmente leciona Organização de Produção Audiovisual no curso de Cinema da UFF. Autora do livro Olney São Paulo e a Peleja do Cinema Sertanejo, Quartet/Pulsar, RJ/1999. Morreu este ano (2008).

Fotograma velado
Olney São Paulo Jr.*

Olney, ou melhor “O Velho Baiano”, gerúndio sem futuro nem pretérito, um cara de olho aberto para as coisas, atento, inteiramente atento, sem se dividir, sem chegar em casa do trabalho... Conheci esse cara mais ou menos dezesseis anos, sem contar a fase em que não se conhece nada. No planeta do “Velho Baiano”, só existia um vetor: a objetiva. Mas, vale dizer que sua presença, em suma, era maior. Uma enervante capacidade de síntese das situações e um espírito infernal para produzir uma produção. Do início ao fim, o clima sempre foi de produção. E, diante dos problemas, dos brasilianismos, se impôs eternamente a figura da realização e do trabalho.
Era engraçado como sua natureza se manifestava: absoluta. Nada outro existia a não ser o plano, o movimento. E o mundo todo, as pessoas, a vida, as árvores, ruas, enfim tudo, tinha apenas um objetivo: um filme. Não posso falar muito desse cara como homem ou pai ou vizinho ou um cara que entra num bar para comprar cigarros. Pois essa defasagem nunca existiu. Quando não estava fazendo cinema, estava pensando cinema ou discutindo cinema. Todo o resto era pretexto para pensar cinema. Os discos seriam para futuras trilhas sonoras; os livros futuros roteiros; e as pessoas futuros personagens.
Ah, ia esquecendo: comia, depois dormia. Mas não sei o que sonhava. Depois acordava e vivia no mesmo pique. Uma vez, durante as filmagens dos Ciganos, fiz uma foto onde estava mirando um plano atrás de Arryflex. A integração é tão grande, que é difícil saber quem é quem.
Insone, resolveu dormir de vez. Quando começava a veicular todos os projetos antigos e arranjado uma porrada de outros novos. Ironia? Sacanagem do divino? Não sei. A última coisa que fizemos juntos, foi a montagem do Dia de Erê. Depois, algumas saídas esparsas e um até logo que dura até hoje. Mas o fato é, que depois de dez anos, ainda espero que “O Velho Baiano” chegue com suas latas de filme, me mandando buscar o resto. Ainda espero a alegria de trazer o carro sozinho após uma noite de batalha. Espero as fotos, os dias cansados de produção, a moviola, o copo de leite gelado, o Jornal do Brasil na praia, as buscas de coração, o Deus te abençõe antes de dormir, a lasanha. Os aniversários da Pilar. Mas de qualquer maneira, tenho de esperá-lo, pois restam coisas a aprender.
Não consigo entender o sincronismo ou o nome dos planos. Ele me disse que quando voltasse, me ensinaria o resto. Eu lembro de tudo. Isso é um negócio terrível. A memória podia se desligar de vez em quando. E a morte, é, finalmente, un manque de savoir-vivre (NR: uma falta de polidez).


* Olney São Paulo é o filho mais velho do cineasta. Este texto-carta serviu de guia para o filme O Cineasta do Sertão (1988), documentário elaborado por Ângela José, com trilha sonora de Ilya São Paulo e narração de Irving São Paulo. A carta foi enviada por Olney, de Paris – onde viveu por 16 anos -, em 1987.


Cinéfilo por excelência
Emmanoel Cavalcanti*

O tempo, aquele em que Olney desenvolveu sua atividade criativa de cinema em preto-e-branco, é inesquecível, porquanto entregue a seus personagens da terra brasílica, nordestina, rural ou urbana, todos refeitos na margem de conflitos sociais e políticos e incorporados na ficção realista ou documental, no domínio do cinema que Olney realizava. Dia-a-dia, o consumiam as suas preocupações de realizador do cinema brasileiro.
Os projetos do cineasta, sobrecarregados de carência de recursos, asperezas do meio competitivo alagado de rancor, divergências econômicas de grupos realizadores que discordavam da sua forma e do seu estilo - se é que a maioria dominasse estilo – pois, na realidade, seguia (essa maioria) o modelo de roteiros técnicos atrelados ao convencionalismo explícito na ordem de começo, meio e fim, orientado no que se propunha fazer o filme de público, certo da aquiescência de colunistas de cinema e a pinimba inchada, calculista na defesa de convicções, convencionalismo, a bitola, o estereótipo, coisas fechadas contra as quais Olney ia de encontro.
Olney de fato era cinéfilo. John Ford era de sua predileção, o neorealismo e outros mestres do tempo. A história do Ciclo Baiano de Cinema, obviamente, inclui Olney no elenco de seus melhores realizadores contemporâneos. O longa, O Grito da Terra, adaptado por Olney e Ciro de Carvalho Leite, extraído na narrativa de romance, que o autor Ciro esforçou-se para levantar recursos e produzir em negativo preto-e-branco, com intérpretes escolhidos do elenco baiano – Helena Ignês e Lídio Silva entre estes- encorajou Olney para ocupar o seu lugar no meio cinematográfico do Rio de Janeiro, muito próximo de seu compadre Nelson Pereira dos Santos. Atento, engajado naquele meio que produzia o moderno cinema de ficção eclética, mas a contento de formas novas de liberdade criativa com o brilho de uma luz forte, crua, do famoso resultado do negativo Plus-X.
A partir desta permanência no meio cinematográfico do Rio, explode uma nova ordem de sobrevivência do realizador. São os documentários. Deslocando-se para a Bahia, Olney adaptou o romance O Forte, de Adonias Filho, que apreciava respeitoso a obra do cineasta. Fui testemunha desses contatos entre Olney e Adonias, que acabou cedendo direitos e entusiasmando Olney a realizar O Forte no cinema. Filme de produção complicada e dolorosa, já em 1974.
Antes, em 1968, Olney realiza Manhã Cinzenta, filme surpreendente, captando a brutalidade do mundo da repressão, o ataque à integridade do meio universitário do Rio que Olney, compenetrado nas questões políticas de seu tempo, desencandeou de maneira espontânea, como uma escolha de suas apreensões. Negativos em pequena quantidade, preto-e-branco, câmara emprestada, alguns dias de filmagem com interrupções, registrando passeata, protesto, um pouco do que se vivia na repressão nas ruas.
Roteirizou uma ficção – fez esta nova etapa do filme com Janete Chermont, atriz, estudante de filosofia e sociologia, apresentada por mim a Olney e a Sonélio Costa, o Índio, seu amigo baiano. No MAM (RJ) enquadrou Olney a sua ficção, organizou o novo corpo que teria o filme de expressar. Feito aos pedaços, montado e sonorizado, realizou-se com tensão uma estréia para convidados e depois aconteceu o que foi amplamente noticiado: uma cópia em poder de guerrilheiros exibida clandestinamente, chamou a atenção de órgão repressor de liberdade no País. Olney, infelizmente preso, sofreu torturas até a libertação por interferência justamente de Adonias Filho. Não se abateu no propósito de continuar na tarefa de realizador até que lhe faltou forças. Doente, até o término de tanto sofrimento, manteve firmeza de caráter e o grande sonho de concluir projetos que sempre alimentou.
É, portanto, um lutador de suas idéias democráticas, um homem de cinema com autonomia de escolha de argumentos e feitura de filmes enquadrados na sua forma de fazer e existir no cinema brasileiro, com autenticidade e visão de mundo que lhe seguiam permanentemente: o agreste, a qualidade de pensamento que desenvolveu em sua experiência de vida e apreço na independência de adaptar obra literária, roteirizar documentários com identidade, justeza de técnica e amor aos personagens retratados em seus filmes.
Vi, vivi, participei um pouco do seu mundo de ficção e documentários. Tenho franco respeito e cultivo a memória de Olney São Paulo. Era funcionário do BB. Bom pai, amigo humorado, realizador de grande valor com seus filmes precisos e vivos.

Emmanoel Cavalcanti é ator, diretor de cinema e poeta.

Notas sobre Olney São Paulo
Tuna Espinheira*

Olney nasceu nos Grotões do Agreste da Caatinga, Riachão do Jacuípe. Aos sete anos ficou órfão de pai. Primogênito de uma família de parcos recursos, teve a infância interrompida, obrigado a trabalhar para “defender algum”. Até o final de sua curta existência, foi com bíblico suor do rosto, sem metáforas, que haveria de prover os seus e apascentaria os tormentos da sua alma em fogo enredada pelos feitiços do cinema.
No fim da década de 50, dois filmes – Rio 40 Graus e Rio Zona Norte, ambos de Nelson Pereira dos Santos, abririam uma nova vereda na cinematografia nacional. Obras inspiradas no neo-realismo italiano. Toda uma corrente cinematográfica iria despertar para este novo horizonte País afora, produzindo filmes cuja ideologia principal era a de mostrar a cara do Brasil, sem sotaque, com baixo custo de produção.
Na Bahia, os filmes Redenção, de Roberto Pires, e Bahia de Todos os Santos, de Trigueirinho Neto, deram a largada para o que seria o mais importante ciclo do cinema baiano, a nossa época de ouro. Nesta esteira esfuziante seriam realizados Barravento, de Glauber Rocha; A Grande Feira, de Roberto Pires; e Caipora, de Oscar Santana. Vindas de fora, chegariam as produções Sol Sobre a Lama, de Alex Vianny (totalmente rodado em cores o que era um luxo para a época), e o clássico de Ruy Guerra, Os Fuzis.
Eram filmes com temas, cenários, técnicos e atores da terra. Foram justamente adotados pelo Ciclo Baiano. Ainda neste período, foram rodados Deus e o Diabo na Terra do Sol, obra-prima de Glauber; e O Grito da Terra, de Olney São Paulo, este filme foi o último ato deste ciclo fecundo.
Com este filme, no meu entender o carro-chefe do importante legado cinematográfico de Olney, a cinematografia baiana iria criar um fato inusitado beirando o assombro, por Grito da Terra ter sido totalmente realizado e produzido numa cidade do interior, Feira de Santana.
A Ditadura Militar colocaria uma perversa pá de cal, sepultando aquela época intrépida. Tinha início, na Bahia, os agônicos tempos de vacas magras para o nosso cinema.
No bojo dos Anos de Chumbo, em meados da década de 60, como uma espécie de retirante, Olney aportou na “Cidade Maravilhosa”, com muitas idéias na cabeça e um punhado de filhos pelas mãos. Trazia no matulão seu filme O Grito da Terra. Foi naquelas plagas que eu vim a conhecê-lo. Logo nos tornamos amigos, parceiros, irmãos.
Olney parecia saído das páginas de Graciliano Ramos. Um cabra aprumado, sempre orgulhoso da sua condição de catingueiro e cioso do seu sotaque. Era acometido de uma coceira especial, sempre querendo fazer ontem o que poderia fazer amanhã. Essa constante inquietação jamais interferiu na sua característica maior: o exercício do bom humor, a solidariedade e docilidade no trato com os amigos. Ele, um “amigueiro”profissional.
Enquanto Olney prosseguia, dando murro em ponta de faca, produzindo seus filmes, abateu-se sobre ele um acontecimento terrível, de proporções kafkiana, seu filme Manhã Cinzenta, considerado artefato subversivo pelos repressores de plantão, fez com que Olney fosse seqüestrado e confinado em local desconhecido. Mais tarde seria processado, incurso na famigerada “Lei de Segurança Nacional”. Foram três anos de sofrimento e prejuízos vários. A seqüela mais grave atingiria, de forma feroz, a sua saúde, o que tem tudo a ver com a deterioração física que o levaria à morte alguns anos mais tarde. Não foi à tôa que Glauber Rocha, quando do seu passamento, exclamaria: “Olney, martyr do cinema brasileyro!”.

*Tuna Espinheira é cineasta e documentarista baiano.

FILMOGRAFIA

1. Curtas

Um Crime na Rua (1955), 16mm, 10 minutos, p&b, roteiro, direção e ator. Câmera: Elídio Azevedo. Elenco: Edson Campos, Fernando Ramos, Vera Campos, Míriam Arruda. OBS: Não foram encontrados os fragmentos do filme que existiam até meados da década de 1970.

O Profeta de Feira de Santana (1970), 35mm, 8 minutos, cor, roteiro, montagem, diretor e co-produtor. Câmera: Julio Ernesto Romiti. Montagem: Carlos Alberto Camuyramo. Assistente de direção: Tuna Espinheira. Truca: Miguel Spenillo. Depoimentos: Theon Spanudis e Dival Pitombo. Co-produtor: Júlio Romiti.

Cachoeira: Documento da História (1973), 35 mm, 9 minutos, cor e p&b, roteiro, montagem, diretor e co-produtor. Câmera: Júlio Ernesto Romiti e Márcio Curi. Assistentes de direção: Tuna Espinheira e Emmanoel Cavalcanti. Narração: Paulo Pontes. Co-produtor: Júlio Romiti.

Como Nasce Uma Cidade (1973), 35 mm, 10 minutos, cor e p&b, roteiro, direção e produção. Câmera: Ronaldo Foster. Montagem: Manfredo Caldas. Produção executiva: Maria Augusta São Paulo. Gerente de produção: Hermínio Lemos. Assistentes: José Telles, Jorge Silva e Pio Araújo. Narração: Echio Reis. Produção: Pilar Filmes Ltda. Apoio: Prefeitura Municipal de Feira de Santana.

Teatro Brasileiro I: Origem e Mudanças (1975), 35 mm, 12 minutos, cor, roteiro e direção. Câmera: Ronaldo Foster. Assistente de câmera: Ney Costa Filho. Assessoria e pesquisa: José Marinho. Diretor de produção: Epitácio César. Som direto: Sérgio Otero. Montagem: Severino Dadá. Narração: Paulo César Pereio. Depoimentos: Luiza Barreto Leite, Yan Michalski, Nelson Rodrigues e Paulo Autran Dourado. Regina Filmes Ltda. Produção: MEC/INC-DFE.

Teatro Brasileiro II: Novas Tendências (1975), 35 mm, 11 minutos, cor, roteiro e direção. Mesma equipe técnica e produção anteriores. Narração: Paulo César Pereio. Depoimentos: Flávio Rangel, Abílio Pereira de Almeida e Gianfrancesco Guarnieri.

Sob o Ditame de Rude Almajesto: Sinais de Chuva (1976), 16mm, 13 minutos, cor, roteiro e direção. Argumento: inspirado na crônica de Eurico Alves Boaventura. Câmera: Edgar Moura. Som direto: Lael Rodrigues. Equipe de produção: Maria Augusta São Paulo, Regina Machado, Hermínio Lemos e Valneide São Paulo. Montagem: João Ramiro Mello. Depoimentos: Valdenei São Paulo, Roque e Edgar Toledo. Produção executiva: Pilar Filmes Ltda.

A Última Feira Livre (1976), 16mm, cor, direção. Roteiro: Hermínio Lemos. Câmera: Edgar Moura. Som Direto: Leal Rodrigues. Equipe de produção: Maria Augusta São Paulo, Regina Machado e Hermínio Lemos. Produção executiva: Pilar Filmes Ltda. Produção: Prefeitura Municipal de Feira de Santana, detentora da única cópia, não localizada pela jornalista Ângela José.

2. Médias

Manhã Cinzenta (1969), 35 mm, p&b, 21 minutos, roteiro, direção e produção. Câmera: José Carlos Avellar. Montagem: Luís Tanin. Gerente de produção: Jorge Dias. Assistentes: Sonélio Costa, Evaldo Falcão, Poty, Carlos Pinto. Dublagem: Echio Reis. Técnicos de som: Raimundo Granjeiro e Antonio Gomes. Sonoplastia: Geraldo José. Reportagem adicional: Equipe Herbert Richers S.A , TV Globo (canal 4). Narração: Ricardo Cravo e Ivan Souza. Trabalho de arte: Antonio Manoel e Newton Sá. Elenco: Sonélio Costa, Janete Chermont, Maria Helena Saldanha, Jorge Dias, Nestor Noya, Poty, Cláudio Paiva, Antonio Manoel, Paulo Neves, Carlos Pinto, Adnor Pitanga, Márcio Curi, Nagla, Tuna Espinheira, Paulo Sérgio e Violeta. Participação especial: Flávio Moreira da Costa, Iberê Cavalcanti, Neville d’Almeida e Zena Félix. Produção: Santana Filmes S.A.

Pinto Vem Aí (1976), p&b, 25 minutos, roteiro e direção. Câmera: Edgar Moura. Montagem: Ricardo Miranda. Som direto: Cintia Brito. Direção de produção: Hermínio Lemos. Co-produção: Pilar Filmes Ltda. e Cine-Qua-Non.

Dia de Erê (1978), 16 mm, 30 minutos, cor, roteiro e direção. Câmeras: Ronaldo Foster e Walter Carvalho. Som direto: Ismael Cordeiro. Assistentes de direção: Maria Helena Saldanha. Produção executiva: Maria Augusta São Paulo. Assistentes de produção: Ilya e Irving São Paulo. Still: Olney São Paulo Jr.. Mixagem: Walter Goulart. Narração: Echio Reis. Montagem: Henrique Santos (1ª parte). Edição final: Manfredo Caldas. Coordenação: Orlando Senna. Produção: Pilar Filmes Ltda. Acervo: Centro de Tecnologias Educacionais (SEC-DEC).

3. Longas

Grito da Terra (1964), 35 mm, 80 minutos, p&b, roteiro e direção. Argumento: romance homônimo de Ciro de Carvalho Leite. Câmera: LeonardoBartucci. Diretor de produção: Eládio Theotonio Freitas. Montagem: João Ramiro Mello. Música-tema: Fernando Lona, letra de Orlando Senna, orquestração de Remo Usai. Produção executiva: Ciro de Carvalho Leite. Assistente de direção: Raymundo Mendonça. Elenco: João de Sordi, Helena Ignês, Lucy Carvalho, Nestor Peixoto, Lídio Silva, Eládio Theodoro Freitas, Raimundo Figueiredo, Branca Drugolensky, Marinoel Martins, Maria Augusta São Paulo e Ciro de Carvalho Leite. Produção: Santana Filmes S.A/Produtora Associada: Saci Empreendimentos e Planejamentos. Distribuição: Satélite Filmes e Herbert Richers.

O Forte (1974), 35 mm, 90 minutos, cor, roteiro e direção. Argumento: romance homônimo de Adonias Filho. Câmera: Júlio Ernesto Romiti e Marcos Bottino. Diretor de produção: Agnaldo Siri (pré-produção). Continuísta: Janete Chermont. Elenco: Monsueto Menezes, Adriano Lisboa, Suzana Vieira, Paulo Villaça, Léa Garcia, Olney São Paulo Jr., Irving São Paulo, Maria Pilar São Paulo, Hermínio Lemos, Janete Chermont. Participação especial: Jurema Pena, Milton Gaúcho, Eduardo Cabus, Sílvio Robatto, Bartira, Marisa rangel e Carlos Olympio. Produção: Júlio Romiti Produções Cinematográficas. Distribuição: Embrafilme.

Ciganos do Nordeste (1976), 16 mm, 70 minutos, cor, roteiro, direção e produção. Câmera: Edgar Moura. Fotografia adicional: Gabriel Ramalho e Campinho. Som direto: Lael Rodrigues, Cíntia Brito e José Roberto. Assistente de produção: Hermínio Campos. Produção executiva: Maria Augusta São Paulo. Narração: Echio Reis. Montagem: Luís Abendia, Mário Murakami, Henrique Santos e Walter Barreto. Produção: Pilar Filmes Ltda. Apoio: TV Globo (direitos de exibição).

Nota: Olney São Paulo atuou como continuísta no longa Mandacaru Vermelho (1961), de Nelson Pereira dos Santos. Foi assistente de direção em O Caipora (longa, 1963), de Oscar Santana; Major Cosme de Farias (curta, 1971), de Tuna Espinheira, e Castro Alves (curta, 1971), de Emmanoel Cavalcanti. Em Memórias de Um Fantoche (curta, 1974), do filho Ilya foi co-produtor. Como produtor executivo, trabalhou em Um Sonho de Vampiro (longa, 1969), de Iberê Cavalcanti; Riachão do Jacuípe (curta, 1976, de Ilya São Paulo); Diamante Bruto (longa, 1977, de Orlando Senna); e Festa de São João no Interior da Bahia (curta, 1978), de Guido Araújo.

Trechos de depoimentos e entrevistas

“...Certamente os Paleólogos feirenses não entenderam as minhas críticas, pois ao contrário, não teriam dito que elas não possuíam objetivo. Ou será que eles pensam que destruir uma abóbada de ilusões e de egoísmo que guarda uma sociedade ávida de publicidade não é um objetivo? Os meus leitores já estão com os ouvidos cheios de ‘maria-champanhota’ para a Micareta, e pouca importância darão à Causerie, prefiro mais explicar aos meus friends que o conhecido trovador Crispim deixou agora de rimar, para contar prosa. Será que ele escreve sua coluna com tinta fisiológica como fez um jornalista COMBATEnte? Sei lá... um matuto letrado só deixa de sê-lo quando recebe o último sacramento” (7 de abril de 1956, data em que por conta das queixas dos leitores contra a coluna satírica Causerie ou conversação em francês, que Olney começou a escrever no quinto número da gazeta O Santanopólis, em 27 de agosto de 1955, o cineasta decide encerrá-la, sem dispensar seus aforismos).

“1956 – este ano, dele não posso falar, foi quando eu pude exibir meu filme Um Crime na Rua para o público. Havia cinco meses que o filme passava em casa de amigos aos pedaços – então, numa palestra com Emilson acertamos para exibi-lo no Tênis. Coordenamos toda a fita e para aquela casa fomos em 14 de março de 1956. O filme anunciado, Lábios que Escravizam, com Robert Taylor, um bom abacaxi que nos preencheu. Os assistentes deram margem aos seus sensos de humor quando a projeção teve início. Foi uma semana de comentário geral e nós gozávamos quando alguém nos apontava na rua dizendo: - ‘Olha o detetive!’ ou ‘Olha eles, os artistas!’. Em abril fui a Salvador deixando Um Crime na Rua para ser exibido no Cine Brasil. Lá, demos uma nota na seção ‘A TARDE Municípios’ do jornal A TARDE. Diz-me Edson em carta que a confusão foi geral. ‘Não ficou aí a publicidade do filme’... Também este ano em matéria de publicidade foi maravilhoso para mim enquanto em matéria de produção cinematográfica foi um desastre. Exibi a película em São Gonçalo, ‘A TARDE Municípios notificou’ (Anotações de Olney São Paulo feitas no caderno de 1956, contendo também títulos, fichas técnicas e comentários dos filmes assistidos).

“Numa das exibições do filme assistiu-o, tendo gostado de alguns movimentos-seqüências, o Glauber Rocha, que voltava de Pernambuco arrastando umas alpergatas de cangaceiro e muita vontade de fazer cinema. Foi quando o conheci pessoalmente. Já o conhecia pelas suas realizações: as Jogralescas, os artigos no semanário Sete Dias e na revista Mapa. Glauber me apresentou ao seu grupo em Salvador – Luiz Paulino dos Santos (fizera um curta-metragem, Rampa, com sentido plástico documental semelhante ao Crime na Feira, porém muito mais válido, muito mais adulto), José Teles Magalhães e Paulo Gil Soares, que fazia poemas e posteriormente escreveria ‘Evangelho de Couro’” (Depoimento do cineasta para a Revista da Bahia, em que fala sobre o começo da amizade com Glauber, depois de uma sessão de Um Crime na Rua).

“Mandacaru Vermelho resultou em um filme autêntico que respirava a poesia do Nordeste. Nascia um ciclo que Salvyano Cavalcanti de Paiva chamaria “Nordestern”. Todos amávamos Nelson. Não por ele ser um homem bom, uma espécie de mártir vivo do cinema nacional ou pela sua simplicidade. Nós o amávamos porque em Nelson existia uma obra que se consolidava a cada filme novo: o verdadeiro cinema brasileiro” (Declaração à Revista da Bahia, em 1960).

“O deficiente sistema de produção usado no Brasil não nos oferece as condições necessárias para que possamos rodar um filme e dizer: ‘fiz este filme como tinha planejado’. Nunca é assim, os obstáculos são imensos (...) O sertanejo vive sofrendo sem saber por que até que toma consciência abruptamente da miséria. Ao lado desta crise surge sempre a violência. Uma violência indomável, genuína, grandiosa. Embora muitas vezes inócua. Minha intenção é caracterizar esta crise interior do sertanejo, seja ele lavrador, boaiadeiro, vaqueiro ou pequeno comerciantes, das nossas vilas miseráveis” (Tirado da entrevista O Grito da Terra é Crônica Rural, publicada no Jornal da Bahia em 15/16 de novembro de 1964).

“Um canto desesperado ao amor e à liberdade (...) um documentário sobre a crise existente por que passa a juventude de hoje” (Definição de Olney para o seu filme Manhã Cinzenta, em entrevista ao Última Hora (RJ), de 26 de setembro de 1969).

Nota da redatora: Artigo publicado originalmente na Revista Neon, do jornalista e professor baiano Sérgio Mattos, antecipando os 25 anos da morte do cineasta. Republicado em vários sites no todo ou em parte com autorização da organizadora e dos articulistas envolvidos.
Iza Calbo
Enviado por Iza Calbo em 09/07/2008
Reeditado em 05/10/2008
Código do texto: T1072386
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