A história de Adônis inicia-se com uma rede de histórias interpessoais, regadas aparentemente a paixão sexual; mais precisamente, é um desdobramento de ritos envolvendo o processo de individuação de homens e de mulheres.

Esmirna (posteriormente, Mirra) era filha de Téias, rei da Síria; desavisada dos perigos envolvendo a inveja de uma mulher pela beleza de outra, Esmirna deseja competir beleza com Afrodite.

Os mitos, geralmente, têm variações e numa versão diferente, Esmirna é filha de Cíniras, rei de Chipre, e de Cencréia: porque nasce muito bela, a mãe de Esmirna espalha a notícia ou a infâmia de que sua filha é mais bela que a própria Afrodite.

Ofendida com a petulância de Cencréia, Afrodite pune a mãe de Esmirna através da criança supostamente mais bela que a própria deusa.

O senso comum e até inúmeros especialistas costumam reduzir as qualidades de Afrodite a um caráter pejorativamente sensual, vingativa, explosiva, movida por descontroladas paixões e multiamores: é preciso aprofundar a compreensão da psique de Afrodite, despatologizando o seu caráter.

A deusa grega Afrodite é a deusa romana Vênus: o cognome de deusa do amor procede de uma interpretação redutiva do seu nascimento.

A deusa Géia e o deus Úrano tiveram vários filhos, os Titãs e as Titânidas, os Ciclopes e os Hecatonquiros.: após o nascimento, Úrano devolvia os próprios filhos ao ventre de Géia, temendo ser por eles destronado.

Cansada da atitude do marido, Géia liberta todos os seus filhos de seu ventre e a eles pede ajuda para destronar Úrano; todos, porém, se recusam a ajudar a mãe e destronar o pai, exceto um deles – o Titã Crono.

Com uma foice dada por Geia, o seu filho Crono corta os testículos do pai tão logo o mesmo se deita sobre a mãe para mais uma relação sexual: no clímax do orgasmo, os testículos de Crono são arrancados e lançados ao mar.

O sangue dos testículos de Úrano derrama-se sobre Geia e dele nascem as Erínias, os Gigantes e as Ninfas dos freixos (Melíades ou Mélias); quando os testículos de Crono caem no mar formam uma grande espuma da qual nasce Afrodite.

Afrodite, portanto, não é filha do amor mas filha da castração do pai, castração executada pelo próprio filho sob o pedido da mãe.

Filha de um pai castrado, tão prontamente nasce é levada pelas ondas do mar ou pelo vento Zéfiro para Citera e, depois, para Chipre aonde é acolhida, vestida e ornamentada pelas deusas Horas, guardiãs das portas de acesso à mansão dos deuses: por isso, após o acolhimento, a vestimenta e a ornamentação, Afrodite é levada pelas Horas ao Olimpo.

Horas ou Estações são mais três das outras quatro filhas de Zeus e de Têmis, a deusa da justiça divina e uma das Titânidas: Eunômia ou Talo (personificando a Disciplina, aquela que faz brotar), Dique ou Auxo (personificando a Justiça, aquela que faz crescer) e Irene ou Carpo (personificando a Paz, aquela que faz frutificar).

As deusas Horas estão sempre acompanhando Afrodite e Dioniso (Zagreu, Brômio e Iaco) – o masculiníssimo filho de Zeus desenvolvido em suas próprias coxas para suceder-lhe o reinado divino. Zagreu, o primeiro Dioniso, é filho de Zeus e Perséfone: Zagreu é raptado, despedaçado, cozinhado e devorado pelos Titãs, fulminados por Zeus e de cujas cinzas nasceram os humanos. Entretanto, Atená ou Deméter salvaram o coração de Zagreu que foi engolido pela princesa Sêmele, amante de Zeus, e tornando-se grávida do segundo Dioniso: mau orientada pela esposa oficial de Zeus, Hera, a amante Sêmele é fulminada pela visão absoluta de Zeus ao pedir-lhe para que se apresente a ela em toda a sua grandeza divina. Num gesto supremo, Zeus retira o feto do segundo Dioniso no ventre de Sêmele e o coloca em sua coxa de deus para continuar a gestação. Nasce o terceiro Dioniso gestado na coxa de Zeus.

Citeréia e Cípris são os outros nomes gregos de Afrodite, aludindo ao seu destino após o nascimento: não se trata de duas origens, mas de dois caminhos percorridos por Afrodite após o seu nascimento.

O epíteto de Afrodite Urânia lembra sua paternidade divina; o epíteto de Afrodite Pandêmia lembra sua paternidade humana.

Afrodite pertence à primeira geração divina (Úrano e Géia): nasceu de Úrano, ou mais exatamente da espuma formada pelo sangue dos testítulos de Úrano caído no mar.

 Afrodite não foi concebida por mulher: sua geração pode ser tida como filha de Úrano e das espumas formadas no mar pelo sangue dos testículos do pai castrado.

 Não há ligações seminais de Afrodite nem com a mulher nem com o chão da terra; sua ligação é com as águas do mar, receptoras do sangue dos testículos de Úrano: a interação águas do mar e sangue dos testículos produziram a espumarada da qual nasceu a deusa.

Mar ou Oceano e Úrano são homens, não se esquecendo de que Oceano é um dos Titãs filho de Úrano e Géia: pai de todos os rios, das espumas do deus Oceano formadas pelo sangue dos testículos de Urano.

Para mais amplas considerações, Úrano foi gerado por Geia sem o concurso de nenhum deus: ou seja, autogeradora, Géia fez nascer de si Úrano (personificação do Céu), Montes e Pontos (personificação do Mar).

Filho e esposo de Géia, do próprio Úrano sem Géia nasceu Afrodite – neta de Géia.
Nem Celestial nem Mundana, nem totalmente Urânia nem totalmente Pandêmia, Afrodite nasce de homens sem mulher; tais homens, por sua vez, nasceram de mulher sem homens.

Úrano, representado pelo touro, é símbolo masculino-feminino de força e de potência fálicas: eis porque Afrodite, sua filha, é símbolo feminino-masculino de força e de potência fálicas.

Deusa do amor e deusa da beleza são reduções humanas da força e da potência fálicas de Afrodite: o castigo por ela imposto a Mirra se deve à petulância da impotência fálica desta e não a uma mera disputa por quem é a mais bela.

O castigo de Afrodite a Esmirna dirige-se não à consecução de prazer com o objeto sexual – o pai; Esmirna deverá reverenciar o deus Falo que encarna exclusivamente no homem.

Falo é o pênis ereto e exclusivamente o pênis ereto como símbolo da encarnação do deus no homem: é extremamente fácil – e comum – desviar a força e a potência fálicas para a força e a potência genitais. Nesse desvio está o castigo.

Força e potência fálicas são atributos do deus Falo – independente da tipificação física e da orientação sexual de uma pessoa: a tal força e potência nomeio de energia fálica.

Por energia fálica entendo a energia psíquica do homem e da mulher a serviço da construção da personalidade total – nem feminina nem masculina: não se apóia, pois, nos estereótipos de masculino e de feminino criados e impostos pelo patriarcado e pela anatomia, igualmente mantidos na caracterização dos arquétipos anima e animus por Carl Gustav Jung.

Em verdade, a energia fálica é expressão do arquétipo animi também expresso em Adônis e Afrodite.

Qualquer abordagem no campo da Saúde do Homem e da Saúde da Mulher precisa aprofundar estudos da psique masculina e feminina, expressa em mitos.

Na Enfermagem, o Cuidado com a Saúde do Homem e o Cuidado com a Saúde da Mulher, tais estudos estão propostos por Carlos Roberto Fernandes no subcampo por ele criado e nominado de PSIQUÊUTICA
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                                                                          Imagem: Pintura de Pieter Pauwel Rubens, 1610.
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BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:
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-BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Volume 1. 9. ed. Petrópolis: Vozes. 1994
-BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Volume 2. 5. ed. Petrópolis: Vozes. 1992
-BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Volume 3. 5. ed. Petrópolis: Vozes.
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-JUNG, Carl Gustav. Os Arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed. Petrópolis: Vozes. 2008
-MONICK, Eugene. Falo: a sagrada imagem do masculino. São Paulo: Paulus.  1993
-SPERBER, Dan. O Simbolismo em geral. São Paulo: Cultrix.  1974
-SANFORD, John A. Os Parceiros invisíveis. 5. ed. São Paulo: Paulus. 1986