SERVIDÃO VOLUNTÁRIA

Inácio Strieder

Em 1577 foi publicada na França a primeira edição do livro “Discurso da Servidão voluntária” de Etienne de la Boétie. Esta obra, no entanto, de certa forma, foi escondida nas bibliotecas, pois já nestes inícios dos tempos modernos fazia uma crítica contundente aos poderes absolutos e tirânicos de qualquer espécie. Embora no século XIX voltasse a merecer reedições, contudo seus editores, em várias passagens da obra, não foram rigorosos na transcrição do texto do autor. Hoje temos um bom texto básico, que serviu para a tradução portuguesa, comentada pela filósofa Marilena Chauí, e outros. Mas por que estou ressuscitando este livro para construir uma reflexão sobre alguns poderes de hoje que subjugam milhões de homens a seu mando?

A preocupação de Etienne de la Boétie continua um alerta para os humanistas de hoje. O que se pretende com a educação de todos? Sem dúvida, formar cidadãos livres, conscientes, responsáveis, capazes de expressar e valorizar o que é verdadeiramente humano. E o que é verdadeiramente humano, segundo a consciência construída sobre as bases dos ideais filosóficos, humanistas e religiosos da civilização greco-romano-cristã do Ocidente? Todos os seres humanos são considerados como possuindo uma dignidade inalienável. Cada um é insubstituível em sua individualidade. E em qualquer circunstância deverá ser respeitado. A educação não pretende outra coisa do que apontar a cada um caminhos para que assuma sua humanidade. Uma humanidade livre, respeitosa, responsável, com sentimentos de respeito, solidariedade, compaixão para com os seus companheiros de história. Isto na convicção de que todos somos seres frágeis, falíveis, mas com capacidades que nos permitem levar uma vida digna, contribuindo para que outros também tenham uma vida melhor. Por isto, a história nos ensina o absurdo de quem se apresenta como possuindo poder absoluto, tirânico sobre pequenos grupos ou povos inteiros. Etienne de la Boétie nos ensina que estes poderosos somente possuem o poder consentido por seus súditos, sejam eles servos ou escravos. Pois, reis, tiranos, autoridades religiosas são simples homens, com pernas, braços, estômago, obrigados às mesmas necessidades biológicas como qualquer mendigo, servo ou escravo. Como explicar então que indivíduos, comunidades ou populações inteiras renunciem a ser eles mesmos livres, sujeitando-se às tiranias e aos abusos de um só (tirano abusivo), mesmo que ele alegue que seu poder provém de Deus.? Por que o homem se dispõe a renunciar à sua individualidade, dignidade, liberdade, e até à sua humanidade em troca da obediência e servidão a quem a qualquer momento pode ser levado deste mundo, ou cair numa tumba? Etienne de la Boétie ainda não tem uma resposta completa para este mistério humano. Mas nos diz que é preciso estar alerta para não cairmos em servidões, e que jamais nos é permitido renunciar a uma vida que é exclusivamente nossa, e da qual apenas nós devemos prestar contas ao Ser Supremo, e somente a Ele. Uma vida que se constrói durante todo o nosso existir. E para salvarmos nossa humanidade, às vezes até devemos estar dispostos a renunciar a comodidades pessoais, em favor dos valores humanitários. A partir disto, a sabedoria ocidental e cristã já nos ensinou que qualquer poder somente é respeitável, quando for um poder de serviço. Isto em qualquer nível, seja político ou religioso. Por isto, em qualquer ambiente civilizado, e ainda mais quando este ambiente for o dos ideais de perfeição religiosa, é inadmissível que uma autoridade seja desrespeitosa, intolerante, traiçoeira, mentirosa, caluniadora, ciosa de seu poder de opressão, e, para ser assim, busque reforço para sua covardia junto a “superegos”, que sentam em tronos, usam trajes imperiais e se fundamentam em vis legislações. Diante de tais poderes ninguém simplesmente deve baixar a cabeça, mas apresentar seus argumentos, evangélicos para os religiosos, constitucionais para os políticos, e humanitários para qualquer ser humano. Desta forma não se perderá a própria vida, que é nossa, única e perante a qual somos os únicos responsáveis. Perante a verdade não pedimos perdão, mas nos rejubilamos.

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