O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL

TABORDA, Cleuza Regina Balan (GPMSE/UFMT); cbalantaborda@gmail.com

RESUMO

Este artigo é fruto de um estudo exploratório realizado após a leitura do livro Desigualdades Raciais no Brasil: um balanço da intervenção governamental de autoria de Luciana Jaccoud e Nathalie Begh, bem como a participação nas conferências realizadas durante a I Jornada Desigualdades Raciais na Educação Brasileira, evento científico realizado concomitantemente ao Seminário Educação 2007, promovido pela Universidade Federal de Mato Grosso no período de 11 a 14/11/07. Este estudo possibilitou perceber o quanto à sociedade brasileira está marcada pelas desigualdades raciais. Porém, apesar dos dados alarmantes que comprovam as desigualdades existentes no Brasil as ações afirmativas são fortemente criticadas tanto por parte da academia como também pelas classes sociais mais privilegiadas. Este estudo demonstrou que a democracia racial no Brasil ainda é um mito.

Palavras Chaves: Democracia Racial - Desigualdades Raciais – Ações Afirmativas

I - Introdução

A “democracia Racial” é facilmente percebida como mito, ao depararmos com os altos índices que apontam as desigualdades raciais existentes no Brasil. Os dados apresentados por instituições de pesquisa respeitadíssimas, como o IBGE e o IPEA, não deixam dúvidas sobre a gravidade da situação vivenciada pela população negra no Brasil.

Em pleno século XXI os dados resultantes de várias pesquisas desenvolvidas comprovam que os negros encontram-se em desvantagem em relação aos brancos em vários aspectos tais como: infra-estrutura urbana e habitação, acesso à educação e justiça, mercado de trabalho e na distribuição de renda. “Do total dos Universitários brasileiros, 97% são brancos, sobre 2% de negros e 1% de descendentes de orientais, 22 milhões de brasileiros vivem abaixo da linha da pobreza, 70% deles são negros. Sobre 53 milhões de brasileiros que vivem na pobreza, 63% deles são negros” (HENRIQUES, 2001).

A dimensão das desigualdades sofridas pela população negra no Brasil é assustadora e “são oriundas tanto de menores níveis de educação e de qualificação como da discriminação racial, ou seja, a existência do preconceito e do racismo acaba por prejudicar os indivíduos em razão de suas características físicas ou culturais” (JACCOUD, 2002, p. 11) Os dados apresentados no livro demonstram que a democracia racial no Brasil ainda é um mito.

Apesar do Brasil contar com a segunda maior nação negra do mundo perdendo somente para a Nigéria. O histórico brasileiro é marcado pelo descaso com a problemática racial, fruto de uma ideologia que impediu, por muito tempo, o reconhecimento público da existência do problema racial em nosso país. Este descaso retardou a implementação de políticas afirmativas voltadas para promoção da inclusão dos negros em todos os espaços da vida social.

Porém, o enfrentamento das desigualdades, com o desenvolvimento de políticas afirmativas não tem contado com o apoio unânime da sociedade e essa política tem sofrido várias críticas por vários setores da sociedade. Até mesmo por intelectuais que afirmam que é preciso o desenvolvimento de políticas universais de combate a pobreza e não o desenvolvimento de políticas afirmativas. Mas essa resistência era de se esperar num país marcado pelo ideário do modernismo político onde se trata igualmente seres desiguais, em vez de tratá-los de modo desigual, é normal esperar que haja uma rejeição no sentido de implementação de uma política de discriminação positiva, como medida de reparação aos prejuízos que por mais de 400 anos a população negra foi vítima. Nem todos têm a preocupação com a busca da igualdade e da equidade social.

II O Surgimento do Mito da Democracia Racial

Embora o “mito da democracia racial” se constitua como marco na história do racismo brasileiro autores apontam que uma outra tese, a do “branqueamento” também fez parte de nossa agenda política e social. Pode-se dizer que essa tese se constituiu como pensamento dominante na elite que comandava o Brasil e assim permaneceu até a construção do “mito da democracia racial”.

A tese do branqueamento era a crença na qual a partir da mistura entre brancos e negros, a raça branca (como sendo uma raça superior) predominaria sobre a negra (inferior) e haveria um melhoramento genético. Já no Segundo Império e início da República havia a crença de que o Brasil estava livre do problema relacionando ao preconceito racial e a solução encontrada para enfrentar essa situação voltou-se para o branqueamento da população através da miscigenação seletiva e política de povoamento e migração européia.

Assim, quanto mais branca fosse a pele da pessoa mais privilégios e poder de ascensão ela teria em contrapartida qualquer cor que não fosse branca passaria a ser desvalorizada e os que as possuíam passaram a ser considerado os outros. Um outro fator que também contribuiu para que o conceito de democracia racial fosse difundido estava relacionada com a concepção desenvolvida pela elite política e intelectual supostamente caracterizado pela harmonia racial e a ausência de preconceitos e discriminação racial. (HASENBALG, 1996)

O ideal do embranquecimento foi sendo incutido na sociedade brasileira, de tal forma, que levou o próprio negro a sua autonegação.

A hierarquização das pessoas em termos de sua proximidade a uma aparência branca contribuiu para que os indivíduos de pigmentação escura desprezassem a sua origem africana, cedendo a forte pressão do branqueamento. Essa pressão fez com que vários negros procurassem fazer o possível para parecerem mais brancos. O que levou a uma fragmentação das identidades raciais no país. (HASENBALG, 1996)

Apesar da expressão “Democracia Racial” ter sido atribuída a Gilberto Freyre, segundo Guimarães ela não aparece nas obras mais importantes do autor. Para Guimarães, Freyre não pode ser integralmente responsabilizado, “nem pela idéia nem pelo rótulo”. Mesmo que ele tenha sido o inspirador da “democracia racial”, ele evitou nomeá-la dessa forma. Freyre buscou conservá-la com um significado bastante peculiar, ou seja, através do termo “Democracia e Étnica”. Contudo é a ele atribuída a responsabilidade pela propagação do mito de acordo com Souza “Gilberto teria sido o criador do conceito de ‘democracia racial’, o qual agiu como principal impedimento da possibilidade de construção de uma consciência racial por parte dos negros”. ( SOUZA, 2000, p 136)

Em consulta realizada por Guimarães (2002) em produções acadêmicas e jornalísticas de alguns pioneiros no estudo das relações raciais o termo “democracia racial” foi empregado pela primeira vez por Artur Ramos (1943) no ano de 1941 durante a realização de um seminário de discussão sobre a democracia no mundo pós-facista. Tendo sido empregada também em um artigo publicado no diário de São Paulo em 31 de março de 1944. A expressão na realidade começa a ser utilizada pelos intelectuais somente a partir da década de 40

De acordo com Guimarães (2002) a expressão “democracia racial” surge em discursos intelectuais na década de 30, no entanto a crença na democracia racial, ao menos como ideal de igualdade e de respeito, torna-se consenso nos anos 1950, atingindo o seu auge na década seguinte. A expressão foi aderida tanto por intelectuais e universitários como pelas próprias lideranças do Teatro Experimental do Negro (TEN). (GUIMARÃES, 2002 p. 142-3)

A disseminação e aceitação da expressão “democracia racial” foi utilizada pelo movimento negro nos anos de 1940. Guimarães em artigo publicado cita o exemplo do Jornal Quilombo, dirigido por Abdias do Nascimento, entre 1848 e 1950 em que havia uma coluna intitulada “Democracia Racial” em que assinavam os artigos intelectuais brasileiros e estrangeiros aliados à luta anti-racista da época. Em agosto de 1950, durante a fala inaugural de Abdias no Congresso do Negro Brasileiro esse engajamento fica bastante claro:

Observamos que a larga miscigenação praticada como imperativo de nossa formação histórica, desde o início da colonização do Brasil, está se transformando, por inspiração e imposição das últimas conquistas da biologia, da antropologia, e da sociologia, numa bem delineada doutrina de democracia racial, a servir de lição e modelo para outros povos de formação étnica complexa conforme é o nosso caso (Abadias 1968:67 apud Guimarães 2002)

Apesar de não ter sido o autor da expressão e de ser até contrário a ela, uma vez que evocava uma certa contradição em seus termos. Freyre contribuiu muito para a legitimação científica da afirmação de que no Brasil não havia preconceitos e discriminações raciais. Enquanto a idéia de “democracia racial” era consensual, “seja como tendência da sociedade brasileira, ou seja como padrão de ideal de relação entre raças”. Isto é, enquanto a luta anti-facista e a luta anti-racista, aproximava-o da esquerda e dos escritores e políticos progressistas brasileiros ele manteve-se em silêncio. Porém, nos anos 60 com a polarização na áfrica, ocorrendo as guerras de libertação e, o avanço ideológico da “negritude” no Brasil e do movimento pelas “reformas de base”, Freyre voltou a defender a “democracia racial” ou “étnica”, contrapondo aos ideais igualitários das esquerdas, defendendo o que ele considerava uma cultura não apenas luso-brasileira, mas luso tropical. Passando a tratar a negritude como mito racial ou mística. (GUIMARÃES, 2002 )

Os acontecimentos políticos e a vitória das forças conservadoras em 1964, convergem nos círculos de poder a idéia freyreana de “democracia racial” enquanto padrão cultural de interação inter-racial e não a consigna negra de luta pela igualdade social entre brancos e negros. Prevalecerá o lado hierárquico e não o lado igualitário da fábula das três raças (GUIMARÃES apud DA MATTA 1981).

Essa fábula é resultante da história que foi contada de geração a geração de que o povo brasileiro é resultante da mistura das três raças: europeus, índios e negros. Essa idéia traz implícita a idéia de que o Brasil é resultante dessa mistura racial e que as relações se dão através de uma convivência harmônica e pacífica, ou seja, que o Brasil é o paraíso racial.

A partir de 1964 a esquerda tinha clareza que a idéia da “democracia racial” mais que um ideal era um mito: um mito racial questionado por Florestan Fernandes que através do contraste entre “aristocracia” e “democracia” e do mesmo conceito de “mito” empregado por Freyre ele explicita:

Portanto, as circunstâncias histórico-sociais apontadas fizeram com que o mito da 'democracia racial' surgisse e fosse manipulado como conexão dinâmica dos mecanismos societários de defesa dissimulada de atitudes, comportamentos e ideais 'aristocráticos' da 'raça dominante'. Para que sucedesse o inverso, seria preciso que ele caísse nas mãos dos negros e dos mulatos; e que estes desfrutassem de autonomia social equivalente para explorá-lo na direção contrária, em vista de seus próprios fins, como um fator de democratização da riqueza, da cultura e do poder".(FERNANDES 1965: 205)

O mito da democracia racial fez com que se propagasse no Brasil uma das formas mais perversas de racismo. O racismo velado mascarado pelo status liberal e democrático. Isto fez com que o racismo fosse se efetivando de forma eficiente. A imagem do Brasil desde o final do Século passado era a de um país onde existia a harmonia racial. Essa imagem lhe trouxe prestígio interno e externo. A idéia transmitida era a de que a sociedade brasileira, fruto de uma mistura de raças, que aqui viviam harmonicamente. Essa idéia foi incutida na população brasileira e contribuiu para a construção da “auto-imagem do Brasil como país homogêneo e indiferenciado” (HERINGER, 2003)

Segundo a professora Zélia Amador de Deus este conceito foi criado pelas elites brancas e foi laboriosamente inscrito e arraigado no imaginário social, inclusive com a colaboração de eminentes cientistas sociais. O mito que se supõe existir no Brasil uma democracia racial foi, provavelmente, um dos mais poderosos mecanismos de dominação ideológica já produzidos no mundo.

Pois, apesar de toda crítica que a ele foi feita, até então, permanece bastante atual. Por meio desse mito ressalta-se o caráter miscigenador da sociedade brasileira um povo mestiço, misturado, tolerante, aberto aos contatos inter-raciais. Para Florestan Fernandes os mitos surgem para tentar esconder uma realidade e acabam revelando a realidade intima de uma sociedade, que insistia em afirmar que a escravidão no Brasil colônia ou no Brasil imperial teria sido mais humana, menos drástica que em outras partes do mundo por conta da nossa "índole crista”.

Este mito se propagou em pleno século IXX período em que o partido republicano deixou de lado a ideologia e a utopia republicanas em detrimento dos interesses dos fazendeiros. A abolição pode ser considerada na situação que ocorreu como um drama humano, largando a massa de ex-escravos libertos a própria sorte, tratando-os como bagaços do antigo sistema de produção. Os escravos preparava-se para trair simultaneamente, No entanto, mesmo neste contexto tão adverso, a idéia da democracia racial propagou, arraizando-se. Tendo sido considerada por alguns sociólogos como algo intocável, ou seja, a pedra de toque da contribuição brasileira ao processo civilizatório da Humanidade (FERNANDES, 1980)

III - O Movimento Negro: movimento social mais antigo do Brasil

Os avanços conquistados em beneficio da população negra no Brasil são resultantes das lutas travadas pelo Movimento Negro, que se constitui o movimento social mais antigo no Brasil, existente desde meados do século XVI. Esse movimento tem como bandeira de luta romper com a inércia existente, reverter o estigma, recuperar a auto-estima, afirmar a igualdade dos direitos e agir para que a lei garanta as mesmas oportunidades a todos. (JACCOUD, 2002, p. 15).

Apesar dos esforços o movimento enfrentou vários entraves. Pois, não contou com espaço de atuação no âmbito do Estado, que historicamente fez vistas grossas a toda e qualquer ação voltada para a desmistificação ideológica da democracia racial brasileira que insistia em colocar que a mestiçagem era vocação peculiar brasileira, que não existiam conflitos raciais, que a escravidão teria sido benigna e que o desenvolvimento econômico do país seria capaz de colocar fim ao preconceito a ao racismo e daria conta de promover a inclusão social.

Apesar de inicialmente o movimento negro ter utilizado e até propagado o conceito da democracia racial sendo assumido como bandeira de luta por algumas de suas lideranças, em pouco tempo o movimento percebeu o caráter ideológico implícito neste conceito e passou a denunciar veementemente o mito da democracia racial, buscando demonstrar através de dados estatísticos a discriminação racial existente no Brasil.

De 1930 a 1964 ocorreu no Brasil o “pacto populista” ou “pacto nacional-desenvolvimentista”. Pelo qual os negros, foram integrados à nação brasileira, em termos simbólicos, com a adoção de uma cultura nacional mestiça ou sincrética, e em termos materiais através da regulamentação do mercado de trabalho e da seguridade social urbanos, este pacto buscou reverter o quadro de exclusão e descompromisso provocado pela Primeira República. O movimento negro, neste período, travou uma luta contra o preconceito racial, através de uma política eminentemente universalista de integração do negro à sociedade moderna. A democracia racial sempre foi tida como um ideal a ser atingido.

O golpe militar de 1964 pôs fim ao pacto populista e fez estremecer os elos de ligação do protesto negro com o sistema político que se escrevia com o nacionalismo de esquerda. Neste período o movimento negro lutava pela negritude e pela valorização das raízes africanas. A discussão sobre a democracia racial no Brasil ou voltava-se para um caráter cultural como pregava Freyre ou para um ideal político como queria o movimento negro e os progressistas. Porém o golpe radicalizou as duas posições. (GUIMARÃES, 2002)

Apesar das denuncias veementes, do Movimento Negro, contra o mito da democracia racial durante décadas o governo buscou ignorar a problemática existente. Somente a partir dos anos 80 com a redemocratização do país houve as primeiras respostas do poder público acerca das questões raciais sendo criado em São Paulo o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra, com a implementação de políticas de valorização voltadas para facilitar a inserção qualificada da população negra. Este conselho representou um marco importante a partir dele o poder público reconhece que existe discriminação racial na sociedade e que cabe ao setor público o desenvolvimento de ação retificadora. Essa experiência impulsionou a criação de vários conselhos estaduais e a implementação de coordenadorias e assessorias afro-brasileiras em sua maioria de cunho cultural.

Ocorre, também, nesta década uma valorização da cultura negra com a tomada pelo patrimônio histórico de dois símbolos dessa cultura . O dia 20 de novembro passa a ser considerado o Dia Nacional da Consciência Negra, tendo sido criado o Memorial Zumbi – organização nacional que reúne representantes do Movimento Negro, da academia e de setores do governo ligados ao Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphnan). No governo Sarnei e criado o Programa Nacional do Centenário da Abolição da Escravatura este programa atrai a atenção para o negro e a questão racial, possibilitando um espaço favorável ao debate das relações raciais.

Nos primeiros anos de 1980 o IBGE publica estudo que possibilita visualizar as desigualdades existentes entre brancos e negros no mercado de trabalho. Dados até então omitidos pela esfera governamental.

Em 1988 é aprovada a Constituição Federal que traz em seu bojo, pelo menos no plano formal, avanços indiscutíveis no que se refere à questão racial. Fundada no respeito da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) tem como um de seus objetivos fundamentais "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (art. 3º, IV). Com este artigo o Estado reconhece que não basta somente declarar que todos são iguais perante a lei. Ao contrário, são reconhecidas as desigualdades e a Nação se dispõe a promover o bem de todos, cujo significado implica em medidas efetivas e objetivas para que sejam eliminadas as diferenças raciais. Ao criminalizar o racismo ( art. 5º, inciso XLII) reconheceu também sua existência e, conseqüentemente, a existência de desigualdades raciais.

Em 1989 ocorre no país uma campanha maciça de visibilização do negro nos dados estatísticos com o tema: “Não Deixe Sua Cor Passar em Branco”. A campanha objetivava incentivar os negros a identificar-se como tal diante do Censo.

Nos anos 90 acerca da atuação do governo federal pode-se destacar a realização do Seminário Internacional sobre Multiculturalismo e Racismo ocorrido em 1996 promovido pelo Ministério da Justiça com intuito de debater políticas do tipo de ação afirmativa. A partir deste Seminário o então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso criou o Programa Nacional de Direitos Humanos –PNDH, que recomendava objetivos de curto, médio e longo prazo para mulheres, pessoas com deficiências físicas, povos indígenas e pessoas negras.

Embora tenha ocorrido o debate governamental acerca do tema, não houve a implementação de políticas afirmativas por parte do Governo Federal. Contudo neste período ocorre uma mobilização do movimento negro nacional que consegue fazer com que a sociedade civil se organize através de ONGs, igrejas, organização de bairros, universidades e prefeituras e passem a desenvolver ações, voltadas para a população negra, tais como: cursos preparatórios para vestibular, cursos profissionalizantes, cursos de informática e alfabetização. Isto aconteceu mediante o desempenho e a mobilização do Movimento Negro Nacional.

A participação da sociedade civil configurou-se no descortinamento da invisibilidade da questão racial no país. O momento representou a reconfiguração social e política, através de ação afirmativa como política social e também como redefinição da estratégia de ação na sociedade.

A manifestação da sociedade de certa forma buscou interferir na consolidação de um sistema democrático e igualitário demonstrando a necessidade da consolidação de políticas afirmativas, voltadas para um padrão de bem-estar social, assim como para a participação política, uma vez que, a idéia de democracia vai além do direito ao voto ela perpassa pela igualdade e liberdade.

O dados apresentados por diversos estudos deixa claro que há uma grande divida social com a população negra. É preciso que as políticas de ação afirmativa sejam incluídas no rol das políticas necessárias para rever o quadro de desigualdades, exclusão e injustiça que foram submetidos os negros em nosso país. Segundo Jaccoud e Beghin:

[...] o combate às desigualdades raciais no país requer que, simultaneamente ao enfrentamento do racismo e da discriminação racial, estejam atuando políticas universais de saúde, educação, previdência social e assistência social, entre outras. A sociedade democrática caracteriza-se como aquela em que as oportunidades básicas oferecidas aos indivíduos não os diferenciam em função de sua origem social ou racial. Essas oportunidades básicas são o alicerce permanente sobre o qual se ergue a igualdade de oportunidades e as políticas específicas que pretendem garantir a eficácia de tal equidade.( JACCOUD e BEGHIN 2002, p. 55)

O histórico brasileiro foi marcado pela negação das desigualdades raciais, mesmo apresentando profundo distanciamento entre brancos e negros. o Estado sempre demonstrou competência para sufocar os modelos de resistência coletiva que pudesse ameaçar o poder hegemônico estabelecido. As relações raciais estiveram, por muitos anos, influenciadas pela idéia de “democracia racial”. Essa imagem dificultou a visão crítica da realidade vivenciada pelo país acerca das relações raciais. Somente nos últimos anos o Estado brasileiro começa a reconhecer as desigualdades existentes entre os negros e brancos e a necessidade de implementação de medidas de combate ao racismo e à desigualdades racial.

Durante anos o movimento negro lutou para que o governo federal reconhecesse e declarasse que a sociedade brasileira era uma sociedade marcada pelo preconceito étnicos e a discriminação racial, ou seja que a sociedade é também racista. Durante anos o governo federal manteve-se em silêncio acerca desta questão, somente a pouco tempo a voz oficial em atendimento aos clamores dos movimentos negros, reconhece a desigualdade existente e a necessidade de desenvolver medidas reparatórias as vítimas de racismo e da discriminação. Essa preocupação fica expressa no relatório do Comitê Nacional para a Reparação da Participação Brasileira na III Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada em Durban, África do Sul, de 31 de agosto a 7 de setembro de 2001.

[...] a adoção de medidas reparatórias às vítimas do racismo, da discriminação racial e de formas conexas de intolerância, por meio de políticas publicas específicas para a superação da desigualdade. Tais medidas reparatórias, fundamentadas nas regras de discriminação positiva prescrita na Constituição de 1988, deverão contemplar medidas legislativas e administrativas destinadas a garantir a regulamentação dos direitos de igualdade racial previstos nessa mesma Constituição, com especial ênfase nas áreas de educação, trabalho, titulação de terras e estabelecimento de uma política agrícola e de desenvolvimento das comunidades remanescentes dos quilombos [...] adoção de cotas ou outras medidas afirmativas que promovam o acesso de negros às universidades públicas” (Ministério da Justiça, 2001, p. 28-30).

IV - O Mito da Democracia Racial e as Ações Afirmativas

O mito da democracia racial é facilmente confirmado pelas cifras apresentadas pelo próprio Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) o maior número de desempregados são negros; o mercado de trabalho é maciçamente ocupado por brancos; a população negra tem o menor nível de escolaridade; os brancos são os que têm mais possibilidade de acesso as universidades.

O preconceito e a discriminação racial existente no Brasil afetam todos os negros independentes serem pobres ou de pertencerem a uma classe mais elevada. Neste sentido as políticas de ação afirmativa votadas para populações negras é uma forma legítima de reconhecimento das desigualdades e da exclusão, que não é apenas relacionada ao aspecto material, ao qual o negro brasileiro historicamente foi submetido.

Apesar do que estabelece a legislação há muito ainda que se fazer para garantir a igualdade propagada “os instrumentos legais e as evidência cotidianas demonstram a insuficiência da legislação criminal para enfrentar a reprodução das práticas discriminatória essa dificuldade é resultante de vários fatores tais como: as resistências do poder judiciário em implementar a legislação sobre a matéria; a imprecisão e a ambigüidade da linguagem legal, que dificultam as interpretações; e o enfoque excessivamente centrado no direito penal. As medidas de enfrentamento da discriminação busca atacar o resultado da discriminação e não as suas causas (preconceito, o estereótipo, a intolerância e o racismo.) (JACCOUD, 2002, p. 17,18).

As ações afirmativas se caracterizam em políticas públicas ou privadas e são definidas por seu caráter reparador, destinada a promover a igualdade material de grupos que historicamente foram discriminados como define Joaquim B. Barbosa Gomes: “ Consistem em políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e a neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física”. (Gomes, 2001, p. 20)

Porém, apesar dos dados alarmantes que comprovam as desigualdades existentes no Brasil as ações afirmativas são fortemente criticadas tanto por parte da academia como também pelas classes sociais mais privilegiadas. Vários são os argumentos utilizados contra essas ações, reiterando que esta é uma forma de ressaltar o preconceito existente. Uma das ações afirmativas que sofre inúmeras críticas estão relacionadas a reserva de vagas para população negra nas universidades dentre os argumentos contrário a essas ações Jaccoud e Beghin (2003) apontam quatro argumentos básicos:

O primeiro é de Isonomia no qual os opositores afirmam que a política de ação afirmativa fere o princípio da isonomia que pede tratamento igual a todos.

O segundo é do Mérito, onde se argumenta que as sociedades contemporâneas não podem abrir mão da excelência, assim num mundo de tanta competitividade, essa capacidade pessoal revela-se fundamental.

O terceiro seria, o argumento da Pobreza, sugere que a verdadeira questão a ser enfrentada é a econômica; devem-se desenvolver políticas voltadas para os pobres, esquecendo o aspecto racial.

O quarto é o da Miscigenação, na qual se aponta que o processo de miscigenação que marcou a história do país torna muito difícil definir quem é negro e quem não é negro, o que impediria a adoção de critérios objetivos de demarcação dos beneficiados pela política.

Estes argumentos demonstram que ainda existem pessoas com uma visão da sociedade a partir do ideal da democracia racial, não reconhecendo a existência do preconceito racial e da discriminação tanto de classe quanto de cor da qual a população negra é vítima. Neste sentido se esquece que somente se tratando diferentemente os desiguais pode-se alcançar a maior igualdade. (JACCOUD e BEGHIN, 2002).

As pessoas esquecem que em relação ao mérito este só poderá ser alcançado pela população negra se ela tiver a mesma oportundiade de acesso educacional que a população branca teve. Portanto numa sociedade marcada pela desigualdade não se pode partir de uma análise meritocrática.

É importante ressaltar que no caso das cotas em universidades públicas. Elas não serão distribuídas ou sorteadas. Os alunos que pleitearem tais vagas serão submetidos às mesmas provas de vestibular que os outros candidatos e serão avaliados como qualquer outro, ou seja de acordo com a nota de aprovação prevista. A única diferença está no fato de que os candidatos que se identificaram como negros ou afro-descendentes no ato da inscrição. Após serem corrigidas suas provas, eles serão classificados de acordo com as vagas previstas, respeitando-se assim os méritos e a excelência no seio de um universo específico (MUNANGA, 2004, p 58,59)

Em relação ao argumento da pobreza e importante ressaltar que o negro além de enfrentar as dificuldades econômicas conta ainda com a discriminação racial, a qual se expressa muitas vezes pelo quesito “boa aparência” nos anúncios de oportunidades de emprego (GUIMARÃES, 2002).

Em relação ao argumento que aponta a dificuldade de se saber quem é negro no Brasil, percebe-se que essa é uma estratégia que vem sendo utilizado há muito tempo para mascarar a discriminação e o preconceito. Porém é preciso questionar será que no Brasil a pessoa se auto declararia negra somente para usufruir uma vaga em uma universidade pública? Num país onde o ideal do branqueamento ainda atua no imaginário coletivo. Será que a pessoa trocaria de campo com tanta facilidade? Mesmo porque a discriminação no Brasil não está marcada pela origem, mas é denominada de "marca", ou seja, pelo fenótipo. São os traços que a pessoa traz consigo que a torna sujeita a discriminação. Portanto a miscigenação não pode ser utilizada como desculpa para não se estabelecer políticas que venha beneficiar a população negra.

Para Munanga as críticas em relação a cota de negros nas universidades públicas na verdade não são em relação a cota, mas sim, ao ingresso e permanência do negro nas universidades públicas. Mesmo porque a cota é um instrumento, uma medida emergencial para tentar reverter um histórico de injustiças:

[...] dizer simplesmente que implantar cotas é uma injustiça, sem propor alternativas a curto, médio e longo prazo, é uma maneira de fugir de uma questão vital para mais de 70 milhões de brasileiros de ascendência africana e para o próprio futuro do Brasil. É uma maneira de reiterar o mito de democracia racial, embora este esteja desmistificado. (2004, p 58)

No desenvolvimento de ações afirmativas, a Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), desde o ano de 2005 adotou o sistema de cotas para estudantes negros. Sendo que 25% do total das vagas oferecidas pela Instituição em cursos regulares, turmas especiais e projetos de formação de professores são destinados a estudantes negros que indicarem a opção pelas cotas. Esta ação tem possibilitado o acesso de vários jovens na instituição que, certamente, em outras situações teriam poucas ou nenhuma chance de ingressar em uma universidade.

Essa iniciativa sofreu e ainda sofre várias críticas no meio acadêmico. Porém, percebemos que mais que oportunizar a vaga para negros a UNEMAT está promovendo a democratização do ensino superior, uma vez que, entrar em uma universidade pública, não deve ser reduzido a uma questão de mérito e sim ser tratado como uma questão de direito.

Assim, abrir espaço para a população negra, pobre e oriunda de escola pública não quer dizer que teremos uma universidade de menor qualidade e alunos com menor mérito. Afinal o mérito como sabemos é uma construção social e acadêmica. Não pode e nem deve ser confundida com a idéia de capacidade inata, de capacidade intelectual. O que não se pode é em nome do “mérito” nos distanciarmos do direito à educação para todos os segmentos étnicos raciais (GOMES, 2004, p. 41).

Ao concluímos este texto temos a certeza que o enfrentamento das desigualdades raciais exige a consolidação de um projeto nacional votado para o respeito à diversidade e o desenvolvimento humano integral. A concretização de um projeto desta natureza perpassa pela inclusão de uma nova cultura. A da inclusão... Para isto é preciso por fim na crença que a discriminação e as desigualdades vivenciadas pela população negra do Brasil são frutos do passado escravista e tratar essa desigualdade como um resultado natural deste passado. A superação dessa problemática exige a implementação de políticas voltadas para a erradicação das desigualdades raciais e no fortalecimento de espaços de diálogo e de parcerias entre o Estado e a sociedade civil.

A questão racial precisa ser reconhecida como uma questão relevante em nível nacional e ser compreendida como de responsabilidade de todos aqueles que lutam pela construção de uma sociedade justa, igualitária e fraterna. Para isso é preciso romper com o histórico de silêncio que existiu em nosso país por tantos anos. É preciso por fim ao conformismo que insiste em fazer parecer natural as desigualdades raciais existentes e lutar pela consolidação de políticas afirmativas que favoreçam a igualdade e a equidade social.

REFERÊNCIAS

FERNANDES, Florestan, O Mito Revelado, art. Publicado em Folhetim de São Paulo1980 reeditado na Revista Espaço Acadêmico Ano II nº 26 – 2003.

GUIMARÃES, Antonio Sérgio. Classes, raças e democracia. São Paulo: Editora 34, 2002.

HASENBALG, Carlos. 1996. Entre o mito e os fatos: racismo e relações raciais no Brasil, In Marcos C. Maio e Ricardo V. Santos (org.) Raça, Ciência e Sociedade, Rio de Janeiro, ed. Fiocruz/Centro Cultural Banco do Brasil.

MUNANGA, Kabengele. Políticas de Ação Afirmativa em benefício da população negra no Brasil – Um ponto de vista em defesa de cotas. IN Gomes, Nilma Lino e Aracy Alves Martins Org. Afirmando direitos: acesso e permanência de Jovens negros na Universidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. 296p.

SOUZA, Jessé. 2000. Democracia racial e multiculturalismo: a ambivalente singularidade

cultural brasileira, Revista Estudos Afro-Asiáticos, n. 38, dezembro de 2000.

Cleuza Regina
Enviado por Cleuza Regina em 28/04/2009
Reeditado em 04/05/2009
Código do texto: T1563843
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.