Dasluxo

Não, não criticarei a Daslu. Não farei discurso para deixar o espírito de Karl Marx em estado de júbilo. Dessa vez, meu silêncio falará por mim. Apenas comentarei o que li na revista Carta Capital desta semana: entrevista com Eliana Tranchesi, dona da Daslu.

Outros periódicos poderiam ter publicado o texto em seção dedicada a atualidades, mas a Carta Capital o publicou em “Seu País”. O título da reportagem (“A sociologia de Eliana”) tem duplo sentido: refere-se à ciência humana que ela quis cursar na juventude, mas também ao “fenômeno sociológico” do empreendimento.

O texto começa com a saudação do átrio principal da loja: “Louvor a Deus, sempre”. No mesmo parágrafo, a revista utiliza o termo “deuses no mundo do consumo”, referindo-se a outras grifes que compõem o olimpo (Gucci, Prada, Cartier, Dior etc.). Fina ironia.

A entrevista começa com a empresária exaltando os números indecentes que amparam o império: 20 mil metros quadrados de área construída, sendo 17 mil de lojas; 740 funcionários; e cadastro de 40 mil pessoas com poder aquisitivo mais alto do Brasil (com a nova Daslu, esse número subirá para 70 mil).

Uma das coisas que mais me chamou atenção foi a falta de edição do texto. Acredito que foi proposital. As respostas de Eliana foram publicadas em português falado, e não escrito. Foram evidenciadas suas gafes, preconceitos e falta de profundidade em questões humanitárias. Ela confundiu o jornal Clarín com o La Nación; não disfarçou preconceito em relação à moda que não é européia; e, o mais estarrecedor, referiu-se à sua clientela (40 mil pessoas da elite) como “a maioria das paulistanas”. Nessa passagem, lembrei-me do famoso episódio histórico em que Maria Antonieta, às vésperas da deflagração da Revolução Francesa, recebeu uma notícia: “majestade, o povo não tem pão!”. E ela: “que comam brioches!”. Típica manifestação de quem enxerga apenas o que gravita no raio de meio metro em volta do próprio umbigo.

Toda a entrevista foi marcada por contradições e falta de profundidade de Eliana. Num momento dizia que não pode mudar a realidade do país porque não é o governo; em outro, que os amigos milionários (1% que detém a mesma parcela de renda dos 50% mais pobres) têm que ser mais responsáveis e não adianta culpar o governo. Em um momento diz saber despertar e apoiar, por meio do consumo, a busca de emoção de suas clientes. Para corroborar, até demonstrou satisfação em provocar anseios na clientela feminina que se torna mais obsessiva por consumo quando são tratadas com indiferença pelo marido. Para a empresária, esse querer- estar-mais-bonita-para-ser-notada explica porque a elite da elite não sofre com a crise.

Em outra passagem, Eliana afirma que as pessoas devem ter noção do que estão comprando e que não podem comprar por comprar. Disse ainda que não se sente culpada por vender luxo e que acha muito legal ela (a Daslu) ter acabado com a mania dos brasileiros de comprar no exterior porque, segundo ela, isso dava vergonha. Nem vou comentar o que me dá vergonha...

A empresária também demonstrou muito orgulho ao declarar que o Brasil é o único país (entre os que estão em situação precária) que tem uma experiência como a Daslu. Segundo ela, o sucesso acontece por causa do atendimento caloroso das vendedoras (que têm nível social bem próximo ao de suas clientes). Também não mencionarei meu palpite sobre o que causa o sucesso da Daslu.

O novo alvo da empresária será a elite masculina. Pensando nisso, o empreendimento já está abastecido com um "playground" para homens: lancha, charutaria, aeromodelismo,... "tudo coisa que homem adora". Muito interessante também é uma crença da empresária: ela, insistentemente, sempre se referia à sua creche (com 200 crianças) como uma iniciativa cristã que deve ser copiada. Isso porque, acredita ela, se a Daslu dita a moda, "mostrando tanta coisa bacana como o jeito de vestir, o sapato que é bacana, o cabelo... por que não mostrar que isso também [uma creche] como sendo uma coisa bacana?". Isso é que chamo de consciência aliviada. Não ficou claro se a creche, que pode ser vista da janela de seu escritório, é para os filhos de funcionários ou para atender crianças carentes. De qualquer forma, o investimento em luxo faz sombra a qualquer prática humanitária. É até pior para a imagem dela porque aponta maior contradição e falta de sintonia com a realidade.

Outros pontos altos da entrevista são: na loja há um helicóptero exclusivo para transportar uma cliente que mora no Rio de Janeiro; a empresária diz que se todas as pessoas fossem econômicas como seu filho, não haveria Daslu; a observação da empresária mencionando que a elite interiorana de São Paulo provavelmente não compra tanto em sua loja porque não deve ter tantas ocasiões para usar as roupas. Creio que nem por um instante lhe ocorreu que há pessoas que priorizam outras coisas na vida.

Eliana conseguiu dar todas as respostas às perguntas não-feitas e também conseguiu não entender as perguntas mais articuladas, que já traziam resposta embutida. Um belo exemplo de complexidade: pergunta que já responde e resposta com pergunta nas entrelinhas.

Embora a empresária já tenha dado conta do recado sendo vítima de uma entrevista bem conduzida, a revista não deixou por menos e, sutilmente, evidenciou que o império Daslu destoa de nossa realidade: foram mencionados o estrangeirismo, totalmente desnecessário, que faz parte do universo Daslu e o luxo da loja em contraste com o fétido rio Pinheiros. Para finalizar, na página que segue a entrevista há um artigo sobre o consumo imoderado segundo as teorias de Veblen e Marcuse. Os teóricos acreditavam que o fator decisivo para o “progresso” das sociedades modernas é o consumo dos ricos porque “obriga” famílias de renda média e baixa a comprometer sua renda com endividamento no afã de acompanhar novos padrões.

Lendo tudo isso, foi muito difícil não me deixar levar por uma onda de desesperança e pessimismo. O discurso capitalista é divergente do democrático; o apelo ao consumo é destoante da idéia impregnada em nosso inconsciente coletivo sobre igualdade entre as pessoas. Quando poucos têm muito e muitos têm pouco, os que têm pouco vão querer um pouco do muito que poucos têm. O resultado disso é um índice ainda maior de violência. Se tivesse cursado sociologia, Eliana Tranchesi teria lucrado menos; o Brasil, mais.

Carmem Lúcia
Enviado por Carmem Lúcia em 08/06/2005
Reeditado em 08/03/2006
Código do texto: T22906