O TEMPO AFRICANO

Ernani Maller

A sobrevivência da cultura africana no Brasil está fundamentada na constituição do terreiro, foi ali que os afro-descendentes deram vazão às suas particularidades culturais, como sua visão tão peculiar do tempo, que é um dos exemplos das grandes diferenças culturais, como diz Prandi. (Reginaldo)

A idéia de história como a conhecemos no Ocidente não existe; a idéia de fazer planos para o futuro, de planejar acontecimentos vindouros, é completamente estaparfúdia. Se o futuro é aquilo que não foi experimentado, ele não faz sentido nem pode ser controlado, pois o tempo é o tempo vivido, o tempo acumulado, o tempo acontecido. Mais que isso, o futuro é o simples retorno do passado ao presente, logo, não existe.

Essa forma africana de tratar o tempo, que aos olhos ocidentais pós era - industrial, pode parecer uma total falta de compromisso com os afazeres do dia-a-dia. Em algumas ocasiões esse aspecto pode ser observado nos terreiros, onde não há um horário rígido para que os eventos ocorram, em muitos casos frustrando a expectativa de pessoas que não estão habituadas aos costumes das religiões de matriz africana.

Aliás, candomblé também não tem hora certa para começar. Começa quando tudo estiver “pronto”. Os convidados e simpatizantes vão chegando num horário mais ou menos previsto, mas podem esperar horas sentados. [...] Não adianta reclamar, pois logo alguém dirá “candomblé não tem hora”. (PRANDI, 2005, p. 175).

É importante atentarmos para essas particularidades culturais das civilizações africanas, pois só observando-as com a devida atenção podemos nos dar conta da grandiosidade do choque cultural produzido pela escravidão do negro africano nas Américas. E é justamente baseada nessas particularidades da cultura e estética africanas, que surgiu na década de 1930 o movimento literário Negritude, que se iniciou na França, através dos escritores ali exilados.

O Tema central na Negritude é a idéia de divisão antitética entre as civilizações européia e africana, a primeira materialista, fundamentada no intelecto e na racionalidade, a segunda plantada na emoção, na intuição e na natureza. (ROHMANN, 2000, p.288).

O fato de os africanos não entenderem que há um futuro, no pensamento ocidental, causou muitos choques culturais no contato com o europeu, pois não compartilhar da noção européia era uma forma de “atraso”, pelo ponto de vista do branco europeu.

Não há na cultura ioruba, ainda no século XVIII (pois ainda não havia sido imposto o calendário europeu), a noção de futuro, “o tempo é circular e se acredita que a vida é uma eterna repetição do que já aconteceu num passado remoto narrado pelo mito”, (Prandi, 2005. p.176), portanto, é natural a imprevidência, não há, por exemplo, a noção de se acumular bens, não há formas de escrita, a maior parte dos conhecimentos se perde. Imaginemos: para que a escrita? Se não se precisa guarda informações para o futuro, já que o futuro não existe? Esse fato (da ausência de escrita) levou Hegel a dizer: “a África é um continente não histórico”, ou seja, sem história, já que no tempo de Hegel considerava-se que só havia história quando houvesse escrita, não se levava em conta, por exemplo, evidências arqueológicas. Quantos feitos históricos? Quantas lendas? e contos não chegaram até os nossos dias por falta de uma noção de futuro? Será que a grande arte musical européia teria se desenvolvido sem a noção de futuro? Com certeza não, pois a notação musical permitiu o desenvolvimento da música, permitiu o entendimento da polifonia, da organização da “linguagem” de cada instrumento e consequentemente os experimentos foram ocorrendo por gerações, o que não seria possível se as criações musicais fossem se perdendo através dos tempos, se modificando sem serem registradas, como no caso africano.

O futuro, que na verdade é uma invenção ocidental, muitas vezes não se realiza, por exemplo: um plano que por algum motivo é frustrado, é um “futuro” que foi projetado e não aconteceu.

“O homem africano não é escravo do tempo, mas, em vez disso, ele faz tanto tempo quanto queira” (Mbiti, apud, Prandi, p.2), na frase do pensador africano John Mbiti, fica bem claro que nós ocidentais somos escravos de uma forma de pensar definida na revolução industrial, onde “o tempo pode ser concebido como algo a ser consumido, podendo ser vendido e comprado como mercadoria...” (PRANDI, p.2). Mas na verdade o trato com o tempo é apenas uma das muitas noções africanas incompreendidas pelos europeus, suas habilidades para música e dança, tanto sagradas como profanas, tão díspares da noção ocidental, também não podiam ser compreendidas, o que levaria a uma generalização de todas as manifestações sonoras dos escravos sob um mesmo nome: batuque.