CECÍLIA MEIRELES E A POÉTICA DA MORTE: UMA LEITURA HINDUÍSTA

Artigo publicado no II Fórum Internacional de Pedagogia ocorrido em Campina Grande em 2009.

Cyelle Carmem Vasconcelos PEREIRA

RESUMO

Um dos aspectos essenciais para se entender a poesia de Cecília Benevides de Carvalho Meireles (1901-1964) é considerar sua relação com o Hinduísmo. Como um sistema de idéias filosóficas, o Hinduísmo inspirou Cecília Meireles, fazendo-a criar o seu próprio sistema poético de representação. Um dos temas essenciais de sua poesia é o tema lírico da morte. A poetisa ampliou seu conhecimento sobre a Índia, especialmente depois de sua visita ao país em 1953, onde ela recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Nova Délhi. Os pressupostos básicos de nossa pesquisa situam-se no entendimento de alguns entre vários aspectos instigantes de sua produção poética, elaborados sob a contribuição do Hinduísmo.

Palavras-chave: Literatura Brasileira, Filosofia, Hinduísmo.

ABSTRACT

One of the essential aspects to understand Cecília Benevides de Carvalho Meireles (1901-1964) poetry is to consider its relationship towards Hinduism. Like a philosophical system of ideas, Hinduism inspired Cecília Meireles, created her own poetical system of representation. One of the essential themes in her poetry is the lyric theme of Death. Enlarged her knowledge about India, especially after her visit to the country in 1953. In India, she received the title of Doctor Honoris Causa granted by the University of New Delhi. The basic anumptions of my work lies in understanding some of the instigating aspects of her poetry production, elaborated under the contribution of Hinduism.

Kaywords: Literatury Brasilian, Philosophy, Hinduism.

A morte sempre foi um tema intrigante para qualquer cultura, embora tenha interpretações diferentes para cada uma. No Ocidente, há a recusa da idéia da própria morte e certa dificuldade de aceitação da morte do outro; para a sabedoria budista, ela é aceita como parte integrante da vida; já os índios da América têm a consciência de estarem de passagem nesta terra, transportando a morte como uma ave invisível no ombro esquerdo. No caso específico de Cecília Meireles, a morte sempre foi uma companheira desde a sua tenra idade, portanto, na grande maioria dos estudos feitos sobre sua poesia, o tema da morte se destaca na sua obra poética, embora existam poucos estudos críticos a esse respeito.

Dessa forma, percebemos a freqüência dessa temática em três livros importantes, que destacamos devido a sua disposição cronológica de produção: Viagem (1939, p. 223-324), Poemas escritos na Índia (1953, p. 974-1042) e Metal Rosicler (1960, p.1205-1257). O primeiro livro colocou-a em destaque na literatura brasileira; o segundo, marca sua ida à Índia e o terceiro, demonstra sua maturidade com o tema proposto para nosso estudo.

Para tanto, neste ensaio, destacamos aspectos relacionados ao discurso literário, o filosófico e o religioso: os três juntos justificam a plurifocalidade de Cecília Meireles como poetisa comprometida com uma visão de mundo literário e filosófico. Tomando por base o estudo feito dos conceitos básicos do Hinduísmo, traçamos um roteiro da morte, a começar pelo livro Viagem (1939), passando por Poemas Escritos na Índia (1953) e finalizando com Metal Rosicler (1960). Através desse roteiro, é possível percebermos a evolução com que o tema da morte vai se desenvolvendo nas poesias, nas quais o eu lírico leva o leitor a refletir sobre a vida e a morte e o caráter temporário da permanência do ser humano na terra.

Em Viagem, observamos que as imagens de “mar”, “oceano”, “sol”, “lua” são mais freqüentes. Em Poemas Escritos na Índia, os símbolos mudam para “poeira”, “pedras”, “cinzas”, “aromas”, os quais demonstram afinidade entre Cecília Meireles e a Índia, pois os acontecimentos, personagens e objetos são muito nítidos e “reais” nos versos. Por fim, em Metal Rosicler, a idéia da morte e os conceitos hinduístas aparecem mais amadurecidos no que se referem ao conhecimento sobre o assunto. A consciência de que tudo é cíclico e que não tem início ou fim, fica mais aparente na última obra citada, demonstrando a aceitação de que a vida continua no plano transcendente, livre das amarras do tempo e da matéria.

Certamente, a metáfora mais enriquecedora sobre a morte é a partir do tema da viagem. Ela não se restringe ao deslocamento no espaço, confirmado por viagens feitas pela poetisa a países como Itália, Portugal, Jerusalém, Roma, Índia, entre outros. A viagem pode ser entendida também como o deslocamento do homem rumo ao distante, ao transcendente, mas ao mesmo tempo em busca de si mesmo, numa viagem interior.

As viagens por vários países, ou seja, a viagem espacial, especialmente à Índia, permitiu que Cecília Meireles fosse amadurecendo intimamente aspectos universalizantes, os quais já continha, tanto no que se refere à quebra de fronteiras espaciais, e principalmente religiosas, estas últimas tão enfatizadas pelo Hinduísmo, como afirma Sanches Neto (2001, p. xxxiv), com relação a Cecília Meireles, “o seu território é um não-lugar, uma fronteira imprecisa.”

A viagem à Índia incentivou Cecília Meireles a escrever Poemas Escritos na Índia (1953), sobre a natureza do homem indiano, sua simplicidade e a comunhão com a natureza. De acordo com Sanches Neto (2001, p. liv), no livro, “a poeta (ipsis litteris) vai anexando novas paisagens e novos personagens à sua obra, intensificando o tom universalista de sua poesia, sempre voltada para a conjunção de tempos e espaços.” Esse desenvolvimento pode ser melhor verificado em Metal Rosicler (1960), onde o tema da morte é identificado de maneira mais amadurecida, trabalhando os conceitos hinduístas de forma mais consciente, pois como conviveu com a cultura e os costumes que tanto admirou e tanto a fascinaram, ela pôde falar sobre eles de forma pragmática.

Esta consciência de que o homem é um eterno “viajante” é encontrada no verso do poema “Êxtase”: “Nós somos um tênue pólen dos mundos” (1939, p.255). Enquanto a imagem predominante do viajante moderno é a imagem do explorador de espaços geográficos, o viajante de Cecília Meireles é um explorador de sensações íntimas da alma, como podemos verificar no livro Viagem.

As viagens vão aprimorando, no viajante, consciências de passagem, reflexões sobre sua vida e buscas de respostas para inquietações dentro de si mesmo. Isto porque o viajante procura se reencontrar nos lugares visitados ou busca uma paz interior perdida. Daí depreende-se que o viajante é sempre um estranho em terra estranha, ou seja, a terra é apenas um lugar de nossa passagem e de nossa impermanência.

Dentre todas as viagens que fez, Cecília Meireles certamente considerou uma mais especial. Sua viagem à Índia em 1953 foi determinante para que ela escrevesse diversas crônicas, inclusive o livro Poemas Escritos na Índia.

Cecília Meireles era grande admiradora da cultura hinduísta, o que justifica, em parte, o fato de ela incluir, em sua produção literária, poemas dedicados a Gandhi e a Tagore, um poeta indiano. No auge de sua contemplação sobre a Índia, Cecília Meireles volta-se para a imagem de um homem que representou melhor o exercício da vida espiritual sobre sua vida social e dedicou uma das suas poesias ao Mestre, intitulada “Mahatma Gandhi” (MEIRELES, 1953, p. 986-987).

Depois dessa breve explanação sobre os três livros escolhidos para análise, partiremos para as poesias onde poderemos estudar mais a fundo as características do Hinduísmo. Comecemos com o livro Viagem.

No poema “Êxtase” (p. 255), o eu lírico se desprende do plano material e passa para outro mais elevado, transcendente. Ele se mostra contemplativo, coloca-se de braços abertos como se buscasse a união com Deus ou até mesmo colocando-se numa posição divina. Vejamos:

(...)

em redor do horizonte, vigiam meus braços abertos,

e por cima do céu estão pregados meus olhos, guardando-te.

(...)

O eu lírico encara os paradoxos da temporalidade, pois está em constante conflito entre os dois planos: o terreno e o transcendente. Mas esse conflito não causa indecisão, ao contrário, quando passa a conhecer a condição do Ser, busca e almeja o plano superior para, enfim, ser completo, pleno, integrando seu Eu interior ao Absoluto. Nos versos abaixo, encontramos essa intermediação:

Deixa-te estar embalado no mar noturno

Onde se apaga e acende a salvação.

(...)

Deixa-te balançar entre a vida e a morte, sem nenhuma saudade.

(...)

Juntamente com a “terra”, o “mar” é um símbolo freqüente nas poesias de Cecília Meireles. Simbolicamente, ele é o lugar das mortes e dos renascimentos, onde a vida se renova. O eu lírico tem consciência de que é preciso partir do mundo físico para depois retornar a ele, ou seja, que é preciso morrer para nascer novamente. Nos versos, ele aconselha alguém a aceitar a morte como renovação e a desprender-se da vida terrestre “sem nenhuma saudade”. O desapego é uma das vias de salvação pregadas pelo Hinduísmo.

Os versos revelam um eu lírico sem perspectiva do surgimento de outra pessoa que renove sua esperança na vida. A “Aceitação” (1939, p. 241) da ausência física desse alguém provoca um abandono do seu Eu na infinitude do oceano. Desta forma, o eu lírico projeta sua esperança na continuidade da vida que se renova no mar.

É mais fácil, também, debruçar os olhos no oceano

e assistir, lá no fundo, ao nascimento mudo das formas,

que desejar que apareças, criando com teu simples gesto

o sinal de uma eterna esperança.

Nos versos seguintes, percebemos que o eu lírico não teme a morte, pois ela está associada ao feliz canto da cigarra. A cigarra irá morrer, mas continua cantando, aproveitando a vida, que é curta, porém intensa. O eu lírico aceita a morte, como o próprio título do poema sugere:

(...)

Desenrolei de dentro do tempo a minha canção:

Não tenho inveja às cigarras: também vou morrer de cantar.

Associada à imagem do mar, encontramos, também, a dialética “noite” e “dia”. Há uma permanente oposição entre pólos distintos para enfatizar a preferência da noite sobre o dia / sol, uma vez que o dia esconde e disfarça a essência transcendente do Ser, possivelmente alcançada com a noite. Essa é uma outra metáfora da morte, encontrada no poema “Distância” (1939, p. 257)

Todo esse contraste entre dia e noite foi bastante explorado pelo Romantismo, muito embora a morte em Cecília Meireles não possua o mesmo significado atribuído pelos românticos e decadentistas, exceto a herança da melancolia romântica.

No poema “Distância”, percebemos que o eu lírico lamenta a distância de alguém, que é levado pela morte. Ela causa saudade do ente querido, e, por conseguinte, a secura interior: “só de noite esteve seco / meu rosto sem alegria”, demonstrando rendição à inevitabilidade da morte. A distância é a morte da presença, retrata a perda, portanto o “sol” simboliza a destruição da vida, momento em que surgem as “lágrimas”. Observemos nos versos abaixo:

(...)

(Talvez o sol que acabara

e as águas que se perdiam

transportassem minha sombra

para sua companhia...)

Oh!

mas nem no sol nem nas águas

os teus olhos a veriam...

- que andam longe, irmãos da lua,

muito clara e muito fria...

A ilusão de que é possível interagir com o mundo dos mortos é intermediada pelo sol, que nada mais é do que a representação ilusória de tudo luminoso que a vida representa. Como a realidade transcendental não é vista em termos maniqueístas, o mesmo sol que representa a ilusão da vida, culminada com a morte, representa também o seu renascimento cíclico. No entanto, a distância não permite uma comunicação, ou seja, o morto está num plano superior de onde não é possível ver ou ter contato com os vivos.

Para tanto, o eu lírico ainda sofre no poema “Rimance” (1939, p. 259-260), pois ainda não consegue entender o sentido da morte. Dessa forma, lamenta sua dor, à espera da morte, pressentindo sua breve chegada:

Onde é que dói na minha vida,

para que eu me sinta tão mal?

Quem foi que me deixou ferida

de ferimento tão mortal?

(...)

“Rimance” significa, segundo o Dicionário Aurélio, uma “narrativa popular em versos, ou seja, romance popular alegre em que se narram trechos de viola airada” (HOLANDA, 1999). A canção popular é submetida por um processo de erudição e assume uma conotação contrária a sua versão popular. Ao invés de representar uma canção alegre, ela representa tristeza. Ao longo do poema, esse lamento é demonstrado, de forma persistente, pela repetição de alguns versos. A insatisfação e o sofrimento terreno incitam a busca por respostas. Dessa forma, o eu lírico quer encontrar na morte, o alívio de sua dor e conquistar a libertação do sofrimento da vida pela morte.

A utilização de termos como “flor”, “paisagem”, “vale”, “serras” e “rio” sugere a contemplação da natureza e o desejo de integrar-se a ela, como fuga para lugares distantes e afastados das outras pessoas. Tal afirmação é confirmada pelos versos “Estou caída num vale aberto / nunca ninguém passará perto, / nem terá notícias de mim”, expressando-nos o distanciamento do mundo e seus objetos.

Nos últimos versos, o eu lírico ouve o “rio” passar ao longe e se entristece porque não está sendo levado por ele.

(...)

E sofro mais ouvindo um rio

que ao longe canta pelo chão,

que deve ser límpido e frio,

mas sem dó nem recordação,

como a voz cujo murmúrio

morrerá como o meu coração...

O verso “mas sem dó nem recordação” sugere que o rio, à medida que leva o morto para o outro lado do leito, vai apagando sua memória, onde possivelmente possa vivenciar uma nova experiência. O ato de recordar é um fator importantíssimo nas poesias de Cecília Meireles: ora a memória assume um caráter positivo, como uma lembrança que vale a pena recordar, ou ela equivale ao esforço de esquecer-se, como uma tentativa de purgar as lembranças indesejáveis. No poema, a memória representa, segundo a mitologia grega, o rio Letes, o rio do esquecimento.

A importância do poema “Rimance” estabelece um elo analógico de transição do Eu do livro Viagem e o Eu do Poemas Escritos na Índia. Ambos viajam procurando compreender o sentido de vida e de morte, mas este último, ao contrário do primeiro, é um Eu que parece compreender melhor que a morte e a vida são processos cíclicos, como veremos a seguir.

Após a leitura de Poemas Escritos na Índia, percebemos que a temática da morte mudou com relação ao que acabamos de ver nos poemas de Viagem. Os Poemas Escritos na Índia, de 1953, são mais conscientes da idéia de morte, ou seja, estão mais afinados com os conceitos de morte como um fator que transcende a vontade humana e é comum a todos os seres. Na Índia, Cecília Meireles encontra um povo preocupado com a disciplina da alma, através da mansidão, paciência e trabalho, como meio para alcançar a felicidade, virtudes essas que dão consistência à espiritualidade. Os poemas expressam uma visão mais realista do cotidiano do país. Eles se referem à simplicidade dos seres, enfim, a cotidianidade dos fatos.

A poetisa assume uma postura contemplativa da manifestação da natureza e sua interação com os homens, percebendo uma essência única em todas as formas de vida. Verificamos, enfim, que sua poética vence a finitude das coisas ao crer na imortalidade da alma, vencendo as barreiras do tempo e dos espaços e, por que não dizer, a memória. A morte é uma aliada de Cecília Meireles, porque permite a continuação da vida em outro plano, mais completo e real, longe da dor e próxima da verdadeira felicidade.

As imagens apresentadas pelos poemas variam entre espaços geográficos, pessoas e animais, como seres anônimos. Uma outra referência preponderante do Hinduísmo como imagem textualizada é representada pelo poeta Rabindranath Tagore, a quem ela dedica um poema. Não sabemos até que ponto o poeta indiano influenciou a poetisa, entretanto, podemos assegurar que, como ele, Cecília Meireles acreditava na imanência do divino sobre todas as coisas. No poema “Cançãozinha para Tagore” (1953, p. 1023), a voz poética chega a acreditar na irmandade espiritual e fraternal entre os poetas, com quem ela espera reencontrar um dia. Observemos os versos:

(...)

Chegaremos de mãos dadas,

Tagore, ao divino mundo

em que o amor eterno mora

e onde a alma é o sonho profundo

da rosa dentro da aurora.

(...)

Aqui a noção de temporalidade aparece como crença no amor eterno. Essa idéia é representada pela ausência de advérbios de tempo e pela presença de uma ação futura, numa tentativa de geografar a transcendência como um espaço que permitirá o encontro dos amigos mortos. Como não há distinções, ou delimitações, o passado e o futuro fazem-se presentes, simultaneamente. O tempo terrestre serve apenas como um “momento” necessário à contemplação dos objetos com tranqüilidade e imergir-se neles, através de uma identidade espiritual comum entre o Eu e as coisas.

Enquanto os primeiros poemas que destacamos referem-se à morte sujeita como processo de causa e efeito, no poema “Cançãozinha para Tagore”, o eu lírico imagina um espaço pós-morte concebido a partir de um ato de pura imaginação onde ele espera encontrar o poeta:

Àquele lado do tempo

Onde abre a rosa da aurora,

chegaremos de mãos dadas,

cantando canções de roda

com palavras encantadas.

(...)

O verso “cantando canções de roda”, que aparece na primeira e na quarta estrofes, remete à infância como um espaço primordial, idealizando um estado de pureza, onde se vivia um estado de inocência infantilizada.

O poema expressa a necessidade de alcançar o plano superior, onde possam encontrar a “ventura”, a felicidade plena, inclusive se esta plenitude for conquistada ao lado de quem se tem apreço, como Tagore. “Àquele lado do tempo” é o verso que dá início às duas primeiras estrofes, onde o tempo não é mais medido, demarcando os limites dos dois planos, o terrestre e o astral.

O verso “chegaremos de mãos dadas” é repetido em todas as estrofes, pois o eu lírico acredita que os bons sentimentos, como amizade, carinho e admiração permanecem nas próximas vidas e são cultivados no “divino mundo”. O sofrimento da vida terrestre, recorrente nos poemas anteriores, é substituído pela esperança de ter uma vida feliz, eterna, onde será possível viver das “coisas amadas”.

No poema “Pedras” (1953, p. 1013), o símbolo de mesmo nome é usado para se referir ao homem. Provavelmente, o Hinduísmo é uma das religiões que possui uma infinidade de imagens para designar sua concepção do Divino. Enquanto no Cristianismo, ele possui uma representação mais objetiva, como, por exemplo, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, o Hinduísmo representa Deus através de uma concepção panteísta. Em vez de representar Deus como elemento distante do homem, sua concepção encontra-se inserida dentro do próprio homem e também presente em todas as coisas da terra.

Uma das imagens primordiais da relação entre Deus, o homem e todas as coisas é representada pela imagem da pedra. De acordo com Chevalier e Cheerbrant (1990, p. 697), “a pedra e o homem apresentam um movimento duplo de subida e de descida. O homem nasce de Deus e retorna a Deus. A pedra simboliza, assim como a água, a origem dos seres em diversas culturas.” Observemos os versos abaixo:

Eu vi as pedras nascerem,

do fundo chão descobertas.

Eram brancas, eram róseas

– tênues, suaves pareciam,

mas não eram.

Eram pesadas e densas,

carregadas de destino,

para casas, para templos,

para escadas e colunas,

casas, plintos.

(...)

As pedras nascem expostas, desprotegidas e vulneráveis à ação do mundo. Parecem suaves, mas vêm “carregadas de destino”, tornando-as “pesadas”, ou seja, voltam ao mundo para cumprir seu karma. Nesse poema, o eu lírico considera a pedra como elemento fundante da essência humana no processo de evolução espiritual. O Hinduísmo profetiza a crença de que, antes de nos tornarmos humanos, passamos por todos os reinos da criação: o mineral, o vegetal e o animal, essa idéia está presente no verbo “pareciam” (verso 4). O eu lírico indaga-se sobre a origem sobrenatural das pedras, já que estão sozinhas e sem defesa.

Após cumprir o período predeterminado no mundo, as pedras, como possivelmente as pessoas, retornam ao plano superior transmutadas em “nuvens”, ou seja, leves e mais próximas do céu. A oposição entre pedras/nuvens sugere o espaço físico de cada uma: uma em seu estado primordial, nascida da terra; e a outra no seu mais elevado estado espiritual, surgindo no céu, indicando a união com o Ser Supremo, retornando à origem de todo Ser. Dessa forma, após sucessivas evoluções espirituais (reencarnação), o Ser tornar-se-á salvo do sofrimento e do condicionamento humano.

Retomando a idéia do viajante, o primeiro poema do livro Viagem, “Lei do Passante” (1953, p. 974), pressupõe noções básicas do Hinduísmo como a existência do karma. A “Lei”, citada no título, sugere ser a lei do karma, condicionada pelo ciclo do Samsara. De acordo com esta Lei, todas as ações do homem em sua trajetória de vida sofrerão suas conseqüências, provocadas pelo próprio homem, sejam elas positivas ou negativas. O poema tem três interrogações que se alternam nas estrofes: “Chega?”, “Passa?”, “Volta?”. As respostas a essas perguntas dependem do comportamento do indivíduo em vida, segundo o Hinduísmo.

O eu lírico nem se sente livre, porque possui ligações kármicas, nem é prisioneiro, porque pode ser libertado por suas ações. Para tanto, a “lei” é retornar à vida terrestre:

(...)

a escutar o chamado,

o apelo do mundo inteiro,

nos contrastes de cada lado...

(...)

De um lado, há o chamado do plano terrestre para que o indivíduo cumpra seu karma; de outro lado, há o chamado do plano transcendente para que retorne às suas origens. Os “contrastes de cada lado” também sugerem os dois lados do rio do Hades : morte, vida ou a cessação do ciclo de reencarnações.

A viagem, então, acaba inserindo no Eu uma identidade de passagem, que se deixa levar: “constantemente arrebatado”. O “passante” não viaja nem para fugir nem para buscar, simplesmente cumpre os desígnios cósmicos que lhe foram atribuídos.

Nesse poema, observamos um dos mais gerais pressupostos da metafísica hinduísta, ou seja, a crença de que a permanência do ser humano na terra é apenas uma passagem, uma viagem, com a temporalidade definida. Veja-se, por exemplo, que o termo “passante” é substituído pelo termo “viajante”. O “passante”, ao contrário do “viajante”, aceita, sem questionar, o seu destino e a sua estadia passageira na terra. Conseqüentemente, ele se enamora de todos os fatos da vida, sejam alegres ou tristes, pois o equilíbrio espiritual lhe proporciona quietude.

Os “campos do inverdadeiro” sugerem o mundo em que vivemos, o mundo das sensações, das ilusões (maya), onde até o tempo é irreal. O verso “-Lúcido, calmo, satisfeito” demonstra o estado em que o “passante” se encontra no plano terrestre, ou seja, tranqüilo, aparentemente preparado para sua vida transcendente e desprendido dos desejos terrestres. No entanto, esse estado não é tão confiável, devido às perguntas seguintes: “fiel? saudoso? amante? alheio?”.

Como fator conclusivo dessa análise, é importante ressaltar que a vida do eu lírico e a do passante, de quem ele fala, são experiências diferentes. Enquanto o passante é um amante enamorado das coisas, o eu lírico finaliza o poema com uma indagação, como marca de dúvida sobre os sentidos de vida, de morte e seus caracteres cíclicos: ”Volta?”

Um provável questionamento condicionado pela experiência e conhecimento da metafísica cristã, que embora reconheça vida após a morte, é prenunciada pela crença no dia do juízo final. Certamente, tal questionamento representa os limites culturais que definem a experiência de Cecília Meireles como ocidental e com formação cristã. Tal característica é longe de ser um defeito de uma apreensão de um Hinduísmo pleno, representa os condicionamentos inevitáveis e inerentes de sua formação ocidental.

O tom universalista das poesias de Cecília Meireles, herdado da tolerância religiosa adotada pelo Hinduísmo, permite uma flexibilidade na definição do que realmente representa a essência divina, representada pelo panteísmo. Assim, entendemos que Cecília Meireles não particulariza nenhum dogma religioso específico, propagando através dos seus poemas uma idéia hinduísta de que Deus está presente em todas as religiões. A utilização do vocábulo “Deus” não restringe seu significado a uma determinada crença. Ao contrário, no sentido mais amplo da palavra, nos dá a nítida compreensão de unidade divina, de Totalidade, ou de um Ser de onde tudo provém e para onde tudo voltará. Verifiquemos os últimos versos de “Família Hindu” (1953, p. 1032-1033):

(...)

Deus consente que os homens venham

a esta intimidade de amigos,

somente por mostrar que se amam,

que estão no mundo, que estão vivos.

Depois, a música se apaga,

diz-se adeus com lábios tranqüilos,

deixa-se a luz, o aroma, a sala,

com os serenos perfis divinos,

sobe-se ao carro dos regressos,

na noite, de negros caminhos...

No presente poema, o caminho dos “homens”, que podemos associar à trajetória simbólica do viajante, é marcadamente definido: nascemos, fazemos amigos, nos amamos, mas, em seguida, há a despedida desse mundo terreno, do silêncio dos lábios, para ingressar no “carro dos regressos”, ou seja, entrar no ciclo de Samsara, na “noite de negros caminhos”.

O eu lírico deixa claro que o sentido da palavra “família” refere-se basicamente a uma comunidade espiritual e harmônica caracterizada, por exemplo, pelas palavras “rito”, “alma”, “corpo”, e pelo verso “abandonar seu paraíso”.

O poema “Poeira” (1953, p. 993), complementarmente a “Família Hindu”, retrata o povo indiano de uma forma mais realista, representado por imagens de penúria. Aqui, o eu lírico é o observador da paisagem decadente da cidade, sente o clima seco e denuncia a pobreza e a miséria dos mendigos, como demonstram as expressões “poeira dos mendigos, em cinza e trapos”; “jardins mortos de sede”; “bazares tristes”; “muros despidos de ornatos / saqueados num tempo vil”; “ruas tumultuosas”; “rios extintos”; “poços vazios”; “janelas despedaçadas”; “varandas em ruína”; “a poeira das asas dos corvos / nutridos da poeira dos mortos”. O corvo, por exemplo, é a essência simbólica mais relacionada ao tema central do poema, ou seja, a relação cíclica entre a vida e a morte. Segundo o Dicionário dos Símbolos (CHEVALIER; CHEERBRANT, 1990, p. 293), na Índia, os corvos são os mensageiros da morte, eles vivem da matéria findável do homem.

O eu lírico não só narra, da perspectiva dos necessitados, como também lhes empresta um caráter de uma inquestionável dignidade que não foi obstruída pelo processo de colonização. A imagem que é conferida ao leitor sobre essa falta de posses é expressa pelo sentido espiritual que predomina sobre o material. Segundo a Bíblia Sagrada (ECLESIASTES 3:20, 1969, p. 714), “Todos vão para um lugar; todos são pó, e todos ao pó tornarão”:

Por mais que sacuda os cabelos,

por mais que sacuda os vestidos,

a poeira dos caminhos jaz em mim.

(...)

Este último verso também nos dá a nítida compreensão de que o espírito vem de caminhos remotos e traz consigo as marcas de outras vidas, assim como sugere o verbo “jaz”. No poema, a realidade da vida presente transcende uma visão de morte como fim, apontando para um conceito cíclico de vida e morte presente no Hinduísmo.

A viagem à Índia e o seu retorno ao Brasil foram definitivos para uma melhor organização estrutural sobre a temática da morte expressa em Metal Rosicler (1960). Segundo Sanches Neto (2001, p. lv), Cecília Meireles dá continuidade à idéia de infinito, concebendo o tempo ciclicamente, reafirmando o caráter inteiriço da alma, ou seja, a imortalidade. Verificamos nos poemas selecionados que a impressão da morte como sinônimo de sofrimento torna-se praticamente ausente, sendo substituída por uma aceitação “menos emocional” e distanciada do problema.

No poema número “5” (1960, p. 1213), por exemplo, o eu lírico nomeia a morte como um objeto de estudo iniciado pela expressão “estudo a morte”, demonstrando intimidade e, ao mesmo tempo, mantendo um distanciamento quase racional. A morte, agora, é tratada com mais familiaridade, enquanto a vida é entendida, definitivamente, como uma ilusão, uma vez que “a vida não se vive” plenamente.

Estudo a morte, agora

– que a vida não se vive,

pois é simples declive

para uma única hora.

(...)

Na segunda e na terceira estrofes do respectivo poema, todos se encontram homogeneizados pelo acontecimento da morte. Tal idéia é reforçada pelos substantivos “crianças” e “adultos”, e os adjetivos “tristes”, “ignorantes” e “cultos”, que não só apenas reiteram a inevitabilidade da morte, como também tornam comum a experiência de todos, independentemente de idade ou cultura.

Na segunda estrofe, o eu lírico, ao contrário dos outros, permanece consciente da ignorância que acomete o homem. Este acredita que este mundo é real, mas, na verdade, ele não passa de uma ilusão. Percebemos um eu lírico consciente do sofrimento que é viver, e da ignorância que acomete o homem por acreditar na ilusão (maya) da vida.

Na terceira estrofe, o eu lírico refere-se ao mistério que acompanha o homem, fazendo-o voltar ao mundo material, recomeçar em outro corpo e reforça a idéia na possível existência da reencarnação expressa pelos versos “voltamos deste mundo / como recém-nascidos.”

As antíteses do poema mostram o constante ciclo de nascimento e morte. Os “sítios extremos” atribuem significado para as antíteses: “a vida não se vive”; “crianças e adultos”; “vamos como viemos”; “traz e leva”; “Inferno ao Paraíso”, dando a nítida confirmação que passamos de um estado a outro, das trevas à luz.

Os versos “quem nos traz e leva / sabe por que é preciso”, demonstram que os homens precisam reencarnar para que cumpram seu destino e busquem a felicidade plena através do amadurecimento espiritual. Enquanto esse amadurecimento não acontece, “andar de treva em treva”, claramente faz a alusão à cadeia cíclica de nascimento e morte, denominada Samsara.

Já o poema “15” (1960, p. 1221) de Metal Rosicler, é um dos mais enfáticos que expressam a personificação da morte e a sua onipresença, representada pelos “olhos”, que tudo vê e tudo sabe.

Pelos vales de teus olhos

de claras águas antigas

meus sonhos passando vão.

(...)

O eu lírico, que também é um viajante solitário, contempla com estoicismo sua própria existência, nesse momento, em equilíbrio, “livre de toda esperança” e “isento de qualquer dor”. Para ele, o plano físico tem uma temporalidade definida, para que todas as coisas cumpram seu destino, que deve ser aceito com serenidade. A felicidade, portanto, surge dessa aceitação, que combate as intempestivas da paixão, do desejo, o que torna mais fácil a trajetória a ser percorrida. Apesar de vir de outras vidas, o eu lírico sabe que a falta de memória é uma das condições para o renascimento físico, advindo da reencarnação.

O poema “48” (1960, p. 1252) do livro Metal Rosicler é semelhante ao poema “Poeira” de Poemas Escritos na Índia, no que se referem à relação entre vida, morte e renascimento. Ambos falam do pó de onde nascemos e para o qual retornamos. O poema retoma o símbolo da “poeira”, agora como “cinza”, referindo-se ao que restou da matéria:

(...)

Cinza.

Parados desejos incompletos:

interrompidos projetos

Cinza pisamos.

(...)

Mesmo a matéria acabada serve de vida para a terra como matéria orgânica. Em outro sentido, nada sobrevive como aliado da morte, nem as cidades nem os seres humanos. Tudo se transforma em “cinza”. Na Índia, é costume cremar os mortos. As cinzas de Gandhi, por exemplo, foram jogadas ao mar.

Dos aspectos acima relacionados, podemos entrever um fator conclusivo: um dos temas fundantes da obra de Cecília Meireles é uma permanente interrogação sobre o sentido da existência humana e sua relação com o mundo. Nesse caso, podemos perceber que há uma completa consonância de pensamento entre o eu lírico e a poetisa. Juntos expressam seus conhecimentos sobre a vida, a morte, o destino espiritual e o significado da existência humana.

O conhecimento sobre o Hinduísmo é essencial no desenvolvimento da temática, de onde os conceitos como imortalidade da alma, karma, a passagem da alma pelo mundo físico, panteísmo, reencarnação, a intemporalidade do plano transcendente, são constantes em seu fazer poético, muito embora Cecília Meireles não consiga desvencilhar-se dos condicionamentos ocidentais, considerando a morte um fator propício à perpetuação de sentimentos como amor eterno pelos entes queridos.

Para tanto, percebemos que a idéia de morte nos três livros selecionados para a análise adquiriu um caráter mais profundo através dos ensinamentos do Hinduísmo. Na obra Viagem, o eu lírico aceita a morte, porém a melancolia e o sofrimento diante do afastamento dos entes queridos, ainda sejam perceptíveis. A partir da viagem à Índia em 1953, os livros Poemas Escritos na Índia e Metal Rosicler demonstram que esse fator foi superado por uma aceitação menos conflituosa sobre a realidade da morte e da condição humana.

O encontro com a Índia e com o Hinduísmo foi definitivo, uma vez que a Índia é considerada como um lugar onde a espiritualidade é profundamente enfatizada através do Hinduísmo, o Budismo, suas várias seitas e as demais religiões. A poesia de Cecília Meireles baseia a temática da morte nos princípios do Hinduísmo, em que a morte é uma passagem da condição material e efêmera para a condição plenamente espiritual.

REFERÊNCIAS

A BÍBLIA SAGRADA. Brasília: Sociedade bíblica do Brasil, 1969

CHEVALIER, Jean; CHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Trad. Vera da Costa e Silva. [et al] 3.ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1990

HOLANDA, Aurélio Buarque de. Dicionário Aurélio Eletrônico Século XXI. Editora Nova Fronteira, 1999.

MEIRELES, Cecília. Poesia Completa. Vol. I e II. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

NETO, Miguel Sanches. Cecília Meireles e o tempo inteiriço. In: MEIRELES, Cecília. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. xxii-lix.

RÜCKER, Joseane. O universo imaginário em Viagem. In: MELLO, Ana Maria Lisboa de (org). Cecília Meireles e Murilo Mendes. [et al] Porto Alegre: Uniprom, 2002, p. 139-143.