Possessão e Libertação

POSSESSÃO E LIBERTAÇÃO

Prof. Dr. Antônio Mesquita Galvão

“Espírito mau, saia desse homem!”

(Mc 5,8)

Marcos escreveu o segundo evangelho, provavelmente, para responder à pergunta das novas comunidades: “Quem é Jesus Cristo?”. Narrando os milagres e discursos de Jesus, ele responde que é aquele que vem realizar o projeto messiânico, conforme o plano salvífico do Pai. Da riqueza profético-teológica desses escritos, fomos buscar, para este trabalho, a história de um exorcismo, quando Jesus vai à terra dos gerasenos e lá liberta um homem da possessão de espíritos maus, tão numerosos que diziam se chamar “Legião”.

A missão do exegeta é atualizar a mensagem bíblica, adequando-a ao momento presente, em uma interpretação simples, acessível ao uso em homilias, reflexões, encontros e retiros. Trata-se de traduzir o fato passado, ajustando-o à aplicabilidade presente. A história do possesso geraseno envolve pecado e graça, amor e libertação. É sobre essa narrativa que vai girar nosso presente estudo.

A narrativa Bíblica

1 Jesus e seus discípulos chegaram à outra margem do mar, na região dos gerasenos. 2 Logo que Jesus saiu da barca, um homem possuído por um espírito mau saiu de um cemitério e foi ao seu encontro. 3 Esse homem morava no meio dos túmulos e ninguém conseguia amarrá-lo, nem mesmo com correntes. 4 Muitas vezes tinha sido amarrado com algemas e correntes, mas ele arrebentava as correntes e quebrava as algemas. E ninguém era capaz de dominá-lo. 5 Dia e noite ele vagava entre túmulos e pelos montes, gritando e ferindo-se com pedras. 6 Vendo Jesus de longe, o endemoniado correu, caiu de joelhos diante dele 7 e gritou bem alto: “Que há entre mim e ti, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Eu te peço, por Deus, não me atormentes!” 8 O homem falou assim porque Jesus tinha dito: “Espírito mau, saia desse homem!” 9 Então Jesus perguntou: “Qual é o seu nome?” O homem respondeu: “Meu nome é Legião, porque somos muitos!” 10 pedia com insistência para que Jesus não o expulsasse da região. 11 havia aí perto uma grande manada de porcos, pastando na montanha. 12 os espíritos maus suplicaram: “Manda-nos para os porcos, para que entremos neles”. 13 Jesus deixou. Os espíritos maus saíram do homem e entraram nos porcos. E a manada - mais ou menos uns dois mil porcos - atirou-se monte abaixo para dentro do mar, onde se afogou. 14 Os homens que guardavam os porcos saíram correndo e espalharam a notícia nos campos e cidades. E as pessoas foram ver o que tinha acontecido. 15 Foram até Jesus, viram o endemoniado sentado, vestido e no seu perfeito juízo, ele que antes estava possuído pela Legião. E ficaram com medo. 16 Os que tinham presenciado o fato explicaram para as pessoas o que tinha acontecido com o endemoniado e com os porcos. 17 Então começaram a suplicar que Jesus fosse embora da região deles. 18 Enquanto Jesus entrava de novo na barca, o homem que tinha sido endemoniado pediu que o deixasse ficar com ele. 19 Jesus, porém, não deixou. E, em troca, lhe disse: “Vá para casa, para junto dos seus, e anuncie para eles tudo o que o Senhor, em sua misericórdia, fez por você”. 20 Então o homem foi embora e começou a pregar pela Decápole tudo o que Jesus tinha feito por ele. E todos ficavam admirados.(Mc 5, 1 - 20)

Do outro lado

Jesus e seus discípulos chegaram à outra margem do mar,

na região dos gerasenos (v. 1)

A narrativa dessa atividade de Jesus começa dizendo que ele e seus discípulos atravessaram o lago Tiberíades, o mar da Galiléia, e foram para o outro lado, a Gerasa, na região da Decápole. Essa ida de Jesus àquelas terras distantes também aparece contada nos outros sinóticos (Mt 8, 28-34; Lc 8, 26-39). A primeira reflexão que se nos suscita na abertura desse episódio é que Jesus foi para o outro lado... Às vezes nossa vida precisa ser analisada e atacada “pelo outro lado”. Sim, pois todos nós temos dois lados: a arena, a fachada, que é aquilo que queremos que os outros vejam e saibam de nós, e o ponto cego, a incógnita, o interior, aquele outro lado que quase ninguém conhece, do qual só Deus tem conhecimento.

Há pessoas que têm demasiado zelo, exagerado rigorismo para com os erros dos outros, mas sempre colocam uma desculpa, um atenuante para os seus. Para os pecados capitais, por exemplo, graves em ação e conseqüências, sempre temos uma justificativa, e até inventamos, em algumas oportunidades, um nome mais suave, como que para mascarar suas características. E neste primeiro momento cabe uma questão importante: Como está o “outro lado” da minha vida?

O homem ou mulher de hoje é levado a confrontar sua vida: eu conheço a mim mesmo? As outras pessoas me conhecem? Ou só lhes é revelada aquela minha personalidade filtrada através de uma máscara? Revelo o que sou, ou só mostro o que quero que pensem que sou? E se amigos, parentes, companheiros, confrades ou superiores fossem, como Jesus, e entrassem “pelo outro lado” de nossas vidas? Será que seria uma incursão sem maiores sobressaltos, ou se surpreenderiam com alguma descoberta? Como é esse “outro lado” de nossa vida?

Enquanto nossa fachada às vezes (ou muitas vezes) é irreal, nosso interior, obscuro e irrevelado para muitos, só pode ser penetrado por Deus. E aqui cabe, entendermos, outra questão: Quem sabe Deus quer começar uma reforma em nós, justamente pelo lado em que somos pagãos, ou por onde criamos porcos?

O endemoniado

Logo que Jesus saiu da barca, um homem, possuído por um

espírito mau saiu de um cemitério e foi ao seu encontro (v. 2)

No Novo Testamento os demônios aparecem como seres espirituais, maus, subordinados ao diábolos (caluniador, desordeiro). Há referências sobre “o diabo e seus anjos...” (cf. Mt 25, 41). Depois da ressurreição de Jesus há farta doutrina alusiva ao culto aos demônios, que é classificada como idolatria (cf. 1Cor 10, 20s; Ap 9, 20). A demonologia da literatura cristã coloca as expressões demônio, diabo, satã e satanás num mesmo nível. Seres espirituais, poderosos, impuros, inimigos de Deus e do homem e que, “nos últimos tempos irão redobrar sua fúria”(cf. 1Tm 4, 1). Hoje, algumas correntes psicologistas negam os demônios...

Ora, não é por alguém afirmar que algo não existe que essa coisa deixa de existir. Há quem levante a hipótese que na teologia judaica, demônio fosse tanto os seres inimigos, seguidores de Lúcifer, adversários (shaitan, satã, satanás) como espíritos humanos, cheios de maldade. Na verdade, o diabo existe, é o pai da mentira, mentiroso desde o princípio e criador de todo o mal (cf. Jo 8, 44). Isso é justamente o que o diabo quer: que pensemos que ele não existe, que pessoas até com autoridade religiosa preguem que demônio é alucinação, que não é capaz de dominar pessoas nem afetar comportamentos.

Então, temos duas práticas. De um lado pessoas que em tudo vêem manifestações do demônio. O que é um erro. De outro, o pensamento psicologista, cientificista e materialista a dizer que nada do mal que existe é oriundo dos espíritos do mal. E então como fica ? Neste caso cabe um equilíbrio. Nem tudo como afirmam uns, nem nada como objetam outros. É preciso discernir com a unção do Espírito de Deus, o que é doença, o que é carência e o que é manifestação do demônio, mesmo. Diabólicos, seus métodos são de confusão.

Ele mescla verdade com mentira para poder agir sutilmente, no engano e na dúvida. Embora a Igreja não torne público, mas a verdade é que tem havido nos últimos anos, em todo o mundo, um bom número de exorcismos.

Algumas teorias exegéticas modernas tentam dar às possessões uma conotação de coisa natural, como histeria, epilepsia, desvio de conduta, etc. As narrativas, em especial as do NT tem um caráter soteriológico: Jesus pratica os exorcismos, a) porque tem poder divino; b) porque quer o bem dos homens; c) porque para isso ele veio: libertar e salvar o homem do império do pecado;

Como os espíritos do mal não têm poder algum contra Deus, voltam-se contra suas criaturas, em geral descuidadas, munidas de pouca vigilância. Ao agir vigorosa e prontamente contra as forças do mal, Jesus põe fim ao domínio, até então imperturbado, do maligno. As expulsões de demônios como que inauguram, portanto, o triunfo de Jesus sobre o “Príncipe deste mundo” (cf. Jo 16, 11).

A atividade de Jesus significa uma crise para o reino de Satanás. Um dos sinais da chegada do Messias é justamente a expulsão de espíritos impuros. O geraseno de nossa história estava possuído por um espírito mau, que o degradava a ponto de excluí-lo do convívio de seus semelhantes.

E hoje? Ainda existem possessos? Acreditamos que sim. Não do modo espalhafatoso, como já dissemos, mas sutil. O que é estar possuído pelo demônio? É comprometer-se com suas obras. Jesus, ao repreender os fariseus ensina:

O pai de vocês é o diabo, e vocês querem realizar o desejo

do pai de vocês... (cf. Jo 8, 44a).

O demônio hoje, ao possuir um ser, para confundir e passar o mais despercebido possível, não o faria perder sua identidade, como fez com o possesso em Gerasa, ou como faz nos filmes. Ao contrário, deixa-o agir normalmente em alguns momentos, e em outros, nas sombras, fazendo-o executar seus projetos malignos, seja na sociedade, na política, nos governos.

Como poderíamos identificar um endemoniado hoje? Se alguém de nós pudesse pensar como o diabo, como agiria: Aberta ou sutilmente? O possesso hoje pode usar gravata ou jeans, saia curta ou vestido toalete, cursar universidade e não deixar de ser externamente aquilo que é. Em seu comportamento, porém, surgem constantes as características malignas do demônio, como o egoísmo, a ambição, a luxúria, o ódio e a violência, nítidos e declarados antivalores, contrários ao projeto de Deus.

Sem que se queira ser maniqueísta, mas o possesso de hoje pode esconder-se – e bem – atrás de um político corrupto, de um administrador desonesto, de um magistrado injusto, atravessadores inescrupulosos, traficantes de drogas, pessoas que enriquecem com fraudes, desviando recursos vitais das merendas escolares, dos programas de apoio à infância, melhorias na Previdência, implemento nas construções de habitações populares, ensejando com isso a marginalidade, a insalubridade, a revolta e a morte de muitos, ocasionada pela fome, pelas filas de desesperançados e pela geração de crianças abandonadas à própria sorte. O indivíduo pode estar agindo por si mesmo, usando mal sua liberdade, mas, convenhamos, trabalhando “como o diabo gosta”

A manifestação do demônio pode estar localizada no discurso de determinados grupos que tornam-se apologistas do amor livre, das uniões experimentais, e de todos os pactos sinistros com a morte, como a eutanásia, o genocídio, a esterilização e o aborto. Só quem é partidário da vida tem em Deus sua inspiração. O Pai não tem projetos de morte... Por isso, quem sabe, para descobrir esses atos das pessoas, comprometidas com o poder das trevas, Jesus pegue sua barca-Igreja e vá, pelo “outro lado”, justamente onde as defesas e as argumentações não o esperam.

Entre túmulos

Esse homem morava no meio de túmulos... (v. 3a).

Quem está sob a posse do demônio, vive, pelo menos simbolicamente, entre túmulos, como a caracterizar o estado de morte espiritual que experimenta. A possessão diabólica hoje é mais sutil. O que é o pecado, senão uma ruptura deliberada com Deus inspirada pelo demônio Na possessão moderna, a pessoa afetada pela influência de Satanás não perde sua identidade nem sua consciência, freqüentando os mesmos lugares, tendo mais ou menos os mesmos círculos de amizades, só que trabalhando contra Cristo e criando obstáculos à instauração do Reino dos céus entre os homens.

Há pessoas, hoje, cuja vida é um sepulcro. Como o mal corroeu suas consciências e empederniu seus corações, elas não têm mais estrutura, objetivos, ideais. O ser humano sob o domínio do pecado perde todos seus referenciais, distanciando-se do verdadeiro sentido de sua vida. Os sepulcros, segundo antigas crenças semitas, eram esconderijos de espíritos maus e demônios. Ninguém passava à noite perto de sepulcros, e mesmo de dia, evitavam fazê-lo sozinhos. Os sepulcros na Palestina eram feitos em cavernas ou escavações laterais nas colinas mais íngremes.

Na linguagem bíblica, viver entre sepulcros equivale a dizer que uma pessoa está afastada de Deus e também das demais criaturas. Esse afastamento (a palavra pecado, no alemão, é sünde, afastamento) ocasiona a perda do sentido do mal, e assim naufragado em sua iniqüidade, o homem descrê, como Judas o fez, da misericórdia e do perdão de Deus.

O demônio tem atitudes desconcertantes. Em nossa narrativa, tentando enganar a Jesus, ele cai de joelhos frente ao Mestre (cf. v. 7). Nos originais vamos encontrar um sentido mais profundo a esse cair de joelhos: prostrar-se em adoração. Essa prostração de joelhos tem dois significados:

 o demônio quis confundir Jesus;

 mesmo inimigo, o espírito maligno não pode deixar de,

ajoelhando-se, reconhecer o poder do Cristo. Sobre isto

falou Javé pela boca do profeta e do apóstolo:

Diante dele se dobrará todo o joelho e por ele jurará toda

língua (Fl 2, 10; cf. Is 45, 23).

Depois de se ajoelhar, na ambigüidade de suas atitudes, trocando a adoração por hostilidade, o espírito impuro gritou bem alto:

Que há entre mim e ti, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Eu te

peço, por Deus, não me atormentes! (v. 7).

Igualmente hoje, os ímpios também reconhecem Jesus como o salvador do mundo, outros se referem ao Pai apenas como um “grande arquiteto” ou uma mera “energia”. Muitos levam uma cruz ao peito, ou penduram-na nas paredes dos tribunais, consultórios, parlamentos ou bancos. Eles sabem que Jesus é o Senhor - como o demônio também sabe - só que sabem mas não praticam o que é lícito. Desejam o bem e até a libertação, com os lábios, mas rejeitam-na com atitudes, amando o pecado e com ele se comprometendo desastradamente.

Incontrolável

...ninguém conseguia amarrá-lo, nem mesmo com correntes.

Muitas vezes tinha sido amarrado com correntes e algemas,

mas ele arrebentava as correntes e quebrava as algemas

(vv. 3-4).

O homem cuja atividade maléfica é orientada pelo demônio, torna-se incontrolável, assim como incontroláveis são seus apetites, seja para a riqueza, para a violência, para a luxúria e para os demais pecados que o afastam, cada vez mais, do caminho do bem. As antigas Escrituras referem-se ao descontrole provocado pelo pecado na vida humana como um buraco sem fundo:

A morte e o abismo são insaciáveis, da mesma forma que a

ambição humana (Pv 27, 20).

Deste modo, incontrolável são as práticas de um homem cujo coração está cheio de pecado, só preocupado com sua satisfação e o atingimento de seus objetivos egoístas. Egoísta, ele só busca prazeres e interesses humanos, inspirado por sentimentos inferiores que, se Jesus não penetrar em sua vida, até o outro lado, vão levá-lo à perdição.

Ao exorcizar o homem de todos seus pecados e dominações, Jesus liberta-o do domínio dos poderes do mal, reintegrando a pessoa ao grupo social a que faz parte, de onde, pela prática reiterada e obstinada no pecado, estava alijado, vivendo, por assim dizer, entre túmulos ou na região da morte. A narrativa nos mostra que o endemoniado feria-se com pedras (v. 5), gritando e blasfemando.

Quem pratica o pecado de forma deliberada e pertinaz, fere seu coração e sua mente, destrói em si a imagem de Deus, profana o templo do Espírito Santo e, se não detido a tempo, chega a destruir-se fisicamente e perder irreversivelmente sua alma.

Os gritos de desespero do possesso tinham dois significados paralelos e, de certa forma, convergentes. O primeiro deles é aquele resquício de consciência que fica no ser humano, e que mesmo sob a pressão de tão odiosa dominação, brada por socorro e por libertação. O outro brado é das forças do mal, que reconhecendo a presença e o poder de Jesus, sabem que seu domínio sobre aquela criatura vai chegar ao fim. É sua forma de protestar contra a ação de Deus. O homem que grita de desespero, depois de exorcizado, ficará em paz. Naquela paz e naquela calma que só Jesus é capaz de dar.

Na presente história, o possesso era incontrolável. Quebrava algemas e rompia correntes. Não só os loucos são dotados de força hercúlea, mas também os possessos. Despido de quaisquer freios, o homem perde o respeito por qualquer regra, e passa a agir de uma forma animalesca. Hoje, essa força incontrolável é encontrada nos poderes do mundo. O corrupto, o violento, o adúltero, o pérfido, eles sabem que suas atitudes vão levá-los à perdição, mas não conseguem deter-se, não têm força para retornar, o mal enraizado neles é incontrolavelmente destrutivo.

Assim como o homem possesso perde o controle de seus atos, também o ímpio empedernido, seja na empresa, na escola, no tribunal, no congresso ou no governo, perde a noção de certo e errado, só dando voz à sua cobiça, que como um coro infernal sempre pede mais e mais. Ora, todos sabemos o que aconteceu quando o homem quis ser igual a Deus... Nesse vácuo de soberba, infidelidade e ignorância, penetrou Lúcifer, o anjo que caiu também por soberba e desobediência.

O poder de Deus, que é infinitamente superior a todos esses males; e está acima de todas essas conjunções, manifesta-se mais forte que todas as forças dos demônios. Entretanto, o Deus Trinitário age por nosso intermédio. Se nos convertermos, se lutarmos por libertar as estruturas de tanto pecado e tanta impiedade, se cumprirmos o nosso papel e instarmos os demais para que também o façam, é possível começar a transformação. O poder de Jesus está acima de todas as forças do mal. Tanto na narrativa do possesso de Gerasa como na conturbada história do homem moderno, Jesus é que liberta. Basta buscá-lo.

Meu nome é Legião

Então Jesus perguntou: “Qual é o seu nome?” O homem

respondeu: ‘Meu nome é Legião, porque somos muitos!

(v. 9).

Uma legião romana era gente que não acabava mais! Eram seis mil infantes, duzentos cavaleiros, trezentos homens de tropa especial e uma unidade de apoio. Beirava uns oito mil combatentes. A menção de uma legião romana servia para caracterizar um poder irresistível. A referência feita pelo evangelista, usando a expressão legião (leguión, no grego) visa demonstrar uma múltipla possessão. No Novo Testamento, o termo legião aparece (em Mc e Lc) para exprimir um grande número de espíritos maus. Qual o seu nome? Pergunta Jesus. Meu nome é legião. Porque somos muitos, responde o endemoniado.

A antiga tradição semita, passada à medieval, preceituava que, saber o nome do demônio, dava, ao exorcista, um poder maior sobre ele. Meu nome é legião! Esperto, o demônio faz alusão ao número de seus envolvidos naquela possessão, nem revela seu nome. Tenta intimidar, mas não revela detalhes. Os demônios têm em Lúcifer (ou Satanás) seu chefe. São organizados, igualmente numerosos (por isso o possesso revelou o nome legião, não como um nome próprio, mas para referir-se à quantidade de espíritos maus que o atormentavam. E o objetivo?

O objetivo diabólico é afastar o homem de Deus, pois assim sucedendo, o espírito maligno quer demonstrar que Deus fracassou em sua criação, e que suas criaturas (a exemplo dele, Lúcifer) o rejeitaram. Como desconhece o amor, as atividades diabólicas giram em torno do ódio, da infidelidade e do engano. O relato da possessão do geraseno é tão dramático a ponto de levar algumas pessoas, estudiosos da Bíblia até, imaginar tratar-se de alegoria, dado ao que classificam de certo exagero retórico do texto.

O pano de fundo da narrativa é, sem dúvida, o perigo que corre o homem, longe do amparo de Deus, em relação às investidas do maligno. O poder maléfico do demônio sobre o ser indefeso só pode ser combatido com a presença libertadora de Deus.

Todavia, há um importante argumento teológico que precisa ser mais bem refletido. O coração do homem é, e sempre será, um templo de Deus, uma “morada do Espírito Santo”. Lá, só Deus pode penetrar. O demônio tem capacidade de influir no comportamento das pessoas, motivar certas atitudes, tentá-las a fazer certas coisas, mas jamais penetrar no inviolável santuário do coração humano. Ali está a essência do ser-cristão, onde podemos reagrupar nossas forças para revidar os ataques. Os pensamentos da consciência humana, só Deus conhece...

Em nossos dias o mal é igualmente pertinaz, numeroso e organizado. Há cadeias da mídia mundial que mais parecem divulgadoras dos projetos satânicos do que meios de comunicação social de massa. Os conglomerados, não só na área das comunicações, mas da economia, da tecnologia, da informática e de tantas atividades, parece que têm o poder de manipular a opinião pública, tentando transformar valores sociais em coisas ultrapassadas e “caretas” e, não raro, juntando lixo para vendê-lo como valor de livre trânsito, à juventude, à família e a alguns segmentos desavisados da sociedade.

Nesse particular, podemos afirmar que o mal se converte em legião que investe, contra Deus, contra o Evangelho, contra a Igreja de Cristo, e contra almas e consciências daqueles que buscam a salvação. É preciso estar vigilante com relação a esses avanços.

Meu nome é Legião, porque somos muitos! E nós, quantas vezes participamos dessa “legião”? Em quantas oportunidades aplaudimos seus feitos ou azeitamos a máquina da opressão e da violência que divide e exclui? Quantas vezes, covardes, calamos diante de seus ataques? A situação de ruptura, atrelada a tantos pecados, é como que a ação de uma legião militar; é como uma possessão múltipla que torna distante, cada dia mais, a imagem do Reino de Deus acontecendo no meio dos homens e plenificando-se para a eternidade.

Os porcos

Os espíritos maus saíram do homem e entraram nos porcos.

E a manada, de mais ou menos dois mil porcos, atirou-se

monte abaixo, para dentro do mar, onde afogou-se (v. 13)

O judaísmo, desde a legislação sinaítica condenou o uso da carne de porco, por razões sanitárias e consequentemente religiosas, classificando o suíno como um animal impuro (cf. Lc 11, 7 e Dt 14, 8). A maioria dos antigos palestinenses, era contrária ao consumo dessa carne. Consta que igualmente entre os povos da Mesopotâmia corria um preconceito a respeito de porcos, não só da impureza de seus hábitos, mas algo também relativo a certa superstição de suas origens. Hoje, judeus e muçulmanos se abstêm do uso dessa carne.

Na chamada parábola do “Pai misericordioso” (cf. Lc 15, 11-32) vemos que, decaído pelo pecado (o evangelista usa a figura da fome), o filho vai trabalhar numa terra distante, onde é mandado cuidar de porcos, e nem a comida destes podia apanhar para sua alimentação. Os dois personagens desse ato são o filho que rejeitou a segurança da casa paterna (símbolo do homem que rejeita a amizade de Deus) e o patrão (que é o demônio que quer rebaixar sempre mais o homem, imagem e semelhança de seu Criador), que o manda, com fome, cuidar dos porcos, sem poder comer de sua comida.

No aspecto sociológico e histórico é interessante notar a humilhação: um judeu cuidando de porcos, inferiorizado em relação a eles, pois nem suas vagens podia comer (v. 16). Isso evidencia que, o ser humano, afastado de Deus, quando rejeita deliberadamente sua amizade, desce ao nível dos porcos. Valemo-nos dessa outra parábola para explicar que o fato dos demônios como que preferirem uma encarnação na vara de porcos, não é um fato isolado, existindo na literatura judaica uma certa relação do demonismo com a criação de porcos.

Perfilado a esses aspectos culturais é que, em nossa narrativa, o evangelista Marcos afirma que Jesus permitiu que a legião de demônios entrasse nos porcos, porque há uma semelhança, sob a ótica judaica, entre ambos. A presente narrativa, objeto de nosso estudo, nos diz que os porcos precipitaram-se morro abaixo, perecendo afogados no mar. Encontramos aí outro aspecto da cultura judaica, que imaginava ser o fundo das águas a morada dos maus espíritos.

Nesse particular a impureza do porco é associada ao estilo pecaminoso de vida do povo. Criavam os animais, talvez para venda, mas por certo também comiam de sua carne. Algumas correntes afirmam que o povo da Decápole criava porcos para os romanos. Historiadores daquela época dão conta que a carne de porco era um dos pratos preferidos pelos conquistadores romanos.

Nesse caso, o estudo antropológico da rejeição aos porcos alia o político ao religioso. Um pouco antes de saírem do homem, os demônios rogaram, a Jesus que não os expulsasse da região (v. 10). E por que queriam ficar ali? Seria aquela uma região amada pelos demônios? Conclui-se que sim.

Falamos da preferência dos demônios em permanecer ali, por tratar-se de uma terra de pagãos. Entendemos que cabe uma pergunta: e nossas grandes cidades, hoje, não são terras de pagãos? O que diferencia um indivíduo pagão de um crente? Apenas o batismo, ou o fato de freqüentar uma igreja? Por certo que não! O crente ama e adora a Deus-Pai, a Jesus Cristo, seu Filho, tem lugar para o Espírito Santo em seu coração, e pratica, pela fé, toda a riqueza de gestos preconizada pelo Evangelho. Conhece a Palavra e a coloca em prática em sua vida. Isto é ser crente, cristão, fiel a Jesus.

Ser cristão, já diziam os antigos catecismos, é crer e professar a doutrina de Jesus Cristo. E como é ser pagão? Primeiro, é ter “outros deuses”, como o dinheiro, o poder, a tecnologia, as coisas materiais, os prazeres desordenados, o status, a sensualidade e a notoriedade. Depois, desprezar ao Deus da vida, desrespeitando o homem e não preservando a natureza. Teoricamente este é o perfil do pagão.

De repente, poderemos sem querer, e sem muito esforço até, constatar que Gerasa ou a província da Decápole é nosso estado, nossa cidade, nossa vida. Aprofundando um pouco mais, podemos descobrir que, por nosso orgulho, vaidade, egoísmo ou intolerância, criamos também alguns porcos da impiedade bem lá no fundo do quintal de nosso coração. Se na tradição semita os porcos eram o lar adequado para a morada dos espíritos impuros, temos que convir que, para muitos de nós, hoje, essa morada é o próprio coração. Só Jesus pode fazer esse exorcismo em nossa vida.

Expulsaram Jesus...

Então começaram a suplicar que Jesus fosse embora da

região deles (v. 17)

O título deste tópico, no contexto da narrativa, mereceria um subtítulo, ou uma continuação, extremamente reveladora: “Por causa dos porcos”. Aquelas pessoas, mesmo vendo os sinais, expulsaram Jesus, pedindo-lhe que se afastasse daquela região, por causa dos porcos. Por causa do prejuízo que tiveram. Por que expulsaram a Jesus? Pelos mesmos motivos que os anticristos modernos o têm expulsado dos lares, dos mais variados ambientes, e até dos corações: porque ele é perigoso; ele dá prejuízo a alguns projetos humanos (principalmente o de “criar porcos”).

Ora, uma sociedade sem Deus, que não reconheça em Cristo o salvador, mais um estorvo do que uma ajuda, uma sociedade cuja obstinação pelos caminhos do mal se reflete na alegoria do ato de criar porcos, é uma via aberta para que o demônio nela fazer morada. Na narrativa do possesso geraseno vemos que para aquela gente era muito mais fácil rejeitar a Jesus do que se deixarem transformar por ele. Sabendo da dureza do coração daquela gente, Jesus foi ao outro lado deles, e, mesmo vendo seus sinais libertadores, eles o expulsaram.

Aquela gente, inspirada por Legião, viu em Jesus uma ameaça, uma força destruidora. Em nossa vida, muitas vezes, há porcos contaminados que precisam ser destruídos, e nós, afeitos a eles, resistimos. Não se trata de uma situação simples de pecado, pois pecadores todos somos, mas é quando se revela um estado como que crônico de pecado, de compromisso com a inspiração maligna, quando rejeitamos Jesus em nossa vida, é aí que se manifesta a ação do demônio agindo em nós e por nós.

A partir da consciência do valor da pessoa humana em oposição às coisas, começa o exorcismo libertador em nossos corações, para o qual Jesus foi ungido (cf. Lc 4, 18s). Sobre essa libertação, São Paulo afirmou, e já foi mencionado aqui, que é preciso perder tudo para obter Cristo. Esse tudo se situa na linha das coisas materiais, axiologicamente inúteis e, muitas vezes, obstáculos sérios à salvação. Nós, muitas vezes despimos a revelação divina do mistério transcendente e, flagrantemente, expulsamos Jesus.

Quem expulsa Deus de sua vida, ergue altares e queima incenso às entidades pagãs e, não raro, diabólicas e cruéis. Essa idolatria, grande característica de nosso século, adora a coisa, reverencia a máquina, ergue hosanas à técnica e, no entanto, deixa morrer o ser humano, pela fome, pela falta de saúde pública, pelas guerras ideológicas e absurdas, e pelo aborto. A Bíblia está cheia de críticas à idolatria: a) o dinheiro (Mt 6, 24); b) o vinho (Tt 2, 3); c) o poder (Ap 13, 3); d) o prazer, a inveja e o ódio (Rm 6, 19); e) a ambição (Lc 12, 15).

Embora algumas traduções da narrativa digam que os gerasenos pediram para Jesus ir embora, a verdade clara do fato é que eles o expulsaram. Para o ímpio a perda dos porcos, uma ruptura radical com o pecado, tem mais valor, está acima da mudança interior, do exorcismo do mal que o domina, da libertação que o reintegra. Para eles, para seus corações mesquinhos e materialistas, os porcos valiam mais que o homem que foi resgatado.

Não que se vá afirmar que o povo de Gerasa, em sua totalidade fosse ímpio e idólatra. No entanto, é de se ver a figura dos gerasenos como tipo bíblico de alguém que, desprezando os valores de Deus, se volta para as coisas do mundo (algumas delas motivadas pelo Maligno). Há gerasenos em todos os lados...

No caso presente, tivemos um julgamento conforme padrões materiais, nítida atitude de pessoas incrédulas, comprometidas com outro tipo de valores. Na verdade, sentimo-nos mais à vontade com nossos pecados (representados pela criação de porcos) do que com o compromisso com a libertação. O homem sem fé, ou contaminado cronicamente pelo pecado, teme a libertação com a mesma intensidade que a deseja.

Expulsar a Jesus, nos dias de hoje, é rejeitar a salvação que ele veio trazer, é descrer do amor do Pai e fechar os ouvidos à inspiração do Espírito Santo. Expulsamos Jesus de nosso meio, quando mais odiamos que amamos, mais alimentamos vinganças que harmonia. Jesus não pode habitar em corações pesados por esses pecados. É mais fácil expulsar Jesus do que rever posições e transformar-se. O hábito, como segunda natureza, em muitos casos faz o jogo do mal, e nos embala no imobilismo dos acomodados que não querem mudar.

Leva-me contigo! (Conclusão)

Enquanto Jesus entrava de novo na barca, o homem que

tinha sido endemoniado pediu-lhe que o deixasse ficar com

ele ( v. 18).

Libertado e reintegrado, o geraseno sucumbe ao encantamento e pede que Jesus o leve com ele na barca. O exorcismo, temível e destrutivo para uns, foi um meio de atrair aquele homem a Cristo. Renunciando ao valor dos porcos, o homem, depois de fazer a experiência do poder curador de Deus, passa seguir a Cristo.

As estruturas de pecado e sistemas injustos, valorizam as coisas acima das pessoas, o lucro superior ao direito à vida, à terra e ao salário digno. Embora algumas pessoas, nos dias de hoje, queiram negar a participação do demônio na execução de projetos excludentes e desumanos, não podemos perder de vista essa realidade bíblica, lógica e teo-lógica.

Em muitas situações, retiros, cursos ou círculos bíblicos, volta-e-meia surge a pergunta: O diabo existe mesmo? Ou é invenção dos padres para assustar as pessoas? Existe sim! Trata-se de uma inegável realidade bíblica. Além disso, sua maior vitória é fazer com que as pessoas pensem e afirmem que ele não existe. Sobre sua atuação nefasta São Pedro aconselha a buscarmos a força em Deus:

Sejam sóbrios e fiquem de prontidão! Pois o diabo, que é o

inimigo de vocês, os rodeia como um leão que ruge,

procurando a quem devorar. esistam ao diabo, permanecendo

sempre firmes na fé (1Pd 5,8s).

uando Jesus nos toca, sentimos logo o desejo de caminhar com ele, segui-lo, proclamar a Boa-Notícia da salvação que ele veio trazer. Quando a pessoa efetivamente conhece a Jesus e toma consciência do poder de Deus, logo surge o ímpeto, como uma vocação, de ir atrás dele. No entanto, é salutar a gente observar que esses encontros com Jesus têm dois eixos.

No primeiro ele - porque nos ama - nos chama e transforma. No segundo movimento, ele nos envia – porque precisa de nós – não onde nós queremos ir, mas onde é necessária a nossa ação. Na história do geraseno, além de não concordar com o pleito do homem, a resposta do Senhor dá novos rumos a seu desejo, mostrando-lhe que seus planos eram outros:

Vá para casa, junto dos seus, e anuncie para eles tudo o que o Senhor, em sua misericórdia, fez por você (v. 19b).

Conosco, muitas vezes não acontece assim? Entusiasmados, queremos atender nossa vontade e não à vontade de Deus. Muitos preferem instalar-se em suas igrejinhas particulares, do que assumir a missão, de contradição e de lutas. Muitas vezes de cruz. A ilusão de seguir a Jesus pela emoção deveria ser substituída pela consciência de um trabalho, ali mesmo, naquela região, através de um testemunho forte, de um serviço útil e de uma ação, convincente e transformadora. Serve para nós também, o modelo.

Libertado, encantado pelo poder de Deus, fortalecido na fé e com definidos propósitos de transformação, o ser humano renuncia às idolatrias e passa a testemunhar a chegada do Reino de Deus em todos os seus segmentos de atuação: família, sociedade, política, trabalho e lazer. É quando agimos assim que o Reino começa a acontecer, atendendo nosso pedido de:

Venha o teu reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu (Mt 6, 10).

No terreno das práticas discernidas de uma crença, a emoção religiosa, por si só, não basta. A ação deve ser dirigida ao serviço útil, onde é efetivamente necessária, segundo o plano de Deus e as providências do Reino. O evangelista conclui a narrativa dizendo que

Então o homem foi embora e começou a pregar pela Decápole tudo o que Jesus tinha feito por ele. E todos ficavam admirados (v. 20).

Na conclusão, ocorre-nos, como idéia central da reflexão, uma mensagem do amor de Deus, que mandou Jesus libertar e salvar o homem (cf. Jo 3, 16), desfigurado e rebaixado pelo pecado. Por maior que seja a força do pecado, a graça de Deus é sempre maior, e Jesus tem poder para livrar o homem de qualquer servidão.

A nossa luta de fato, não é contra homens de carne e osso, mas contra os principados e as autoridades, contra os dominadores deste mundo de trevas, contra os espíritos do mal, que habitam nas regiões celestes. Por isso, vistam a armadura de Deus para que no dia mau possam resistir e permanecer firmes, superando todas as provas. Estejam portanto, bem firmes: cingidos com o cinturão da verdade, vestidos com a couraça da justiça, os pés calçados com o zelo de propagar o evangelho da paz; tenham sempre na mão o escudo da fé, e assim poderão apagar as flechas inflamadas do Maligno. Coloquem o capacete da salvação e peguem a espada do Espírito, que é a Palavra de Deus (Ef 6, 12-17).

Mesmo, às vezes, quando um pecador empedernido não tem mais força para reconhecer sua degradação, a oração da comunidade move Jesus no sentido de intervir eficazmente na vida da pessoa, retirando-a do convívio simbólico de túmulos para reintegrá-la à comunidade do povo de Deus. O poder de Deus, e talvez seja esta a conclusão mais clara do presente estudo, está acima de quaisquer ameaças do mal. Com o Deus Trinitário, Pai, Filho e Espírito Santo, em nosso coração, nada temos a temer. Ele é a luz que dissipa as trevas.

Vocês tem erteza dessa verdade?

Doutor em Teologia Moral, Escritor e Biblista com especialização em Exegese. Autor do livro “O possesso geraseno”, em fase de edição.