Homoafetividade e judaísmo

Sem Tremer Perante DEUS

Publicação G Magazine

Primeiro Rabino Ortodoxo do mundo a revelar a sua homossexualidade, em 1999, o norte americano Steve Greenberg lutou durante anos contra o conservadorismo exacerbado dos judeus ortodoxos, que são radicalmente contra a homossexualidade e repudiam a existência de rabinos gays. Após uma busca incessante por respostas na Tora – Bíblia dos judeus – ele decidiu assumir a sua homossexualidade e fez disso uma vocação. Hoje Greenberg vive em Nova Iorque com um companheiro, ortodoxo também, e é respeitado na sinagoga que freqüenta. Também leciona no Center for Learning and Leadership para judeus e é autor do livro Wrestling With God and Men (Lutando com Deus e Homens). O Rabino ganhou notoriedade mundial ao mostrar a sua história no documentário Trembling Before God (Tremendo Perante Deus/2002), que aborda a fé e a homossexualidade na vida de homens e mulheres.

O filme relata a trajetória de dez judeus homossexuais (seis gays e quatro lésbicas) e a opinião de rabinos judeus a favor e contra a homossexualidade. No documentário, Greenberg é o único Rabino Ortodoxo que não largou a ortodoxia por causa de sua orientação sexual.

Nesta entrevista exclusiva para G Magazine, ele nos fala de suas lutas, angústias e dilemas em sua trajetória vitoriosa para se aceitar e ser aceito como um Rabino Ortodoxo homossexual.

Desde que idade você suspeitou da sua orientação sexual?

Quando eu tinha 10 anos, sentia que era diferente dos outros. Com 11 anos, comecei a me sentir “ameaçado” por grupos de garotos. Com 12, lembro que fiquei hipnotizado pelo filho adolescente, lindo, de meus primos distantes. Senti uma excitação secreta quando meu pai me levou junto com ele ao Clube Masculino do Centro Judaico. Eu sentia uma sensação assustadora e excitante ao mesmo tempo, ao ver jovens andando sem roupa. Mais tarde, no início da adolescência, eu lembro de ficar excitado no vestiário do colegial, na frente de um rapaz atlético, que cursava o terceiro colegial (eu estava no primeiro). Naquela hora, eu percebi o movimento involuntário do meu corpo, mas eu não sabia o que era.

Como você lidou com a sua sexualidade nessa época?

Eu não tinha idéia do que significava ser homossexual. “gay” e “homo” eram palavras reservadas para os garotos que eram muito quietinhos e sem corpo atlético. Nenhum destes termos tinham a ver com atração sexual. Não havia uma forma de explicar o meu estado físico, a sensação quente no meu rosto, ou o palpitar no meu peito. Alguns anos depois, a chegada do furacão hormonal deixou-me completamente atônito. Minhas reações aos garotos não eram uma resposta consciente e, apesar das grandes expectativas, eu também não tinha nenhuma reação física a garotas.

E como era sua vida espiritual e religiosa na adolescência?

Nesta época, eu já mantinha obediência aos preceitos religiosos ortodoxos e a minha salvação foi o Negiah, que é o preceito me proibia de abraçar, beijar, e inclusive tocar garotas antes do casamento. Essa restrição sexual pré-nupcial religiosa foi uma mascará perfeita, não somente para o mundo, como também para mim mesmo. Era o álibi perfeito para me afastar das experiências sexuais e amorosas típica dos adolescentes e, mais importante ainda, me impedir de tomar conhecimento de coisas a meu respeito que, no fundo eu já sabia.

Que tipo de conflitos você viveu, até se conformar em ter uma atração homossexual?

Conforme o tempo passava, enquanto a minha repressão sexual ficando cada vez mais fraca, o contato com rapazes transformou-se numa frustração estranha e não deu mais para negar os desejos que brotavam de dentro de mim.

Em uma certa ocasião, quando estava em Israel, eu fiquei tão desesperado por perceber que a minha atração por um certo colega estudante aumentava cada vez mais, que fui visitar um sábio, Rav Yosef Shalom Eliashuv, que vive em uma das mais isoladas comunidades ortodoxas de direita em Jerusalém. Falando em hebraico, eu disse a ele o que, na época, era a minha verdade: “mestre, eu sinto atração tanto por homens quanto por mulheres. O que devo fazer?”. Ele respondeu, “Meu caro, você tem duas vezes o poder do amor. Use-o com cuidado.” Eu fiquei perplexo, e como ele ficou em silêncio, perguntei: “E o que mais?”. Ele sorriu e respondeu: “Isso é tudo. Não há mais nada a dizer.”

As palavras dele me acalmaram, permitindo que eu, temporariamente, esquecesse as terríveis tensões que me atacavam. Claro que eu não estava pedindo permissão para agir a partir dos meus sentimentos e ele também não estava permitindo isso. Mas eu, tinha que entender o que é que significava o meu desejo por homens. Por suas palavras, eu compreendi que não era para eu encarar esse desejo com medo, mas sim como a prova de que eu tinha um grande potencial para amar. O mais engraçado é que eu até achei que essa minha característica poderia me fazer um Rabino melhor, porque como bissexual eu teria uma vida emocional mais ampla e mais rica e – quem sabe – uma vida mais espiritual mais profunda, a ainda me casar e ter uma família.

Voltei de Israel para Nova Iorque em 1978, para terminar meus estudos e me casar. Com 22 de idade, metade dos meus colegas estavam noivos, ou já casados, e eu estava entusiasmado para entrar nesse grupo. Namorei com mulheres nesse período, mas confesso que não sabia exatamente o que deveria sentir. Como eu estava me tornando um rabino ortodoxo, elas sabiam que não podiam esperar nada sexual da minha parte. Cheguei a “me apaixonar” umas três vezes, e em cada vez cheguei à triste conclusão de que aquelas mulheres não me atraíam o suficiente... O que mais poderia explicar o meu total desinteresse sexual por elas?

E quando você teve certeza de que era homossexual?

Um novo amigo me convidou para jantar e o assunto “homossexualidade” veio à tona. Ele me perguntou diretamente se eu alguma vez já havia sentido desejo por homem. De alguma forma, ele “sacou” a minha situação. Surpreso, balancei a cabeça, sim, já havia sentido. Fiquei remoendo essa conversa na volta para casa de trem, quando olhei para o outro lado da cabine e vi um jovem muito bonito olhando para mim. Naquele momento eu me deixei sentir a reação física que eu nunca tinha me permitido antes. E o mundo despencou na minha cabeça, eu quase desmaiei e teria caído se não tivesse me segurado bem. Desviei meu olhar do jovem para poder recuperar o fôlego. Depois de um mês, os sentimentos que eu já tinha liberado tomaram seu curso e eu comecei a minha primeira relação homossexual com aquele novo amigo que me fez “sair do armário”.

E você aceitou ser gay?

Os sonhos de uma vida não se esquecem assim, com essa facilidade. Apesar da descoberta dramática, eu não conseguia ainda desistir da esperança de casar e ter uma família. Portanto, durante os cinco anos seguintes, ao mesmo tempo em que mantinha o meu primeiro relacionamento com um homem, tentava desesperadamente namorar com mulheres, numa tentativa louca de me casar.

Um dia, uma mulher extremamente amorosa e religiosa disse que se eu pedisse, ela aceitaria. Da noite para o dia decidi fechar os olhos e me jogar de cabeça. Comprei uma garrafa de um vinho bem caro e, no meio do Central Park, em uma carruagem. sob um céu enluarado numa noite de abril, propus casamento e ela – que eu mal conhecia – aceitou. Depois, pegamos o telefone e ligamos, excitados, para toda a família e amigos, fizemos um brinde à nossa futura vida juntos, dissemos boa noite e cada um foi dormir na sua casa, castamente...Mais um mês, e tudo caiu sobre o peso da verdade: eu simplesmente não queria me casar com ela.

O absurdo da esperança às vezes vai além do exagero. Mesmo depois deste episódio humilhante eu ainda estava determinado a me casar. Continuei namorando com mulheres e fiquei ainda duas vezes metido em relacionamentos muito sérios, mas fui incapaz de me comprometer. Na última vez, decidi ser honesto com a jovem sobre minha luta. Enquanto essa minha abertura ajudou a construir uma confiança e uma intimidade bem mais profunda do que eu já tinha conquistado antes, a ausência de um desejo mútuo foi impossível de suportar.

Enfim, somente depois de muitos anos de uma negação persistente, e me debatendo sem parar contra a dura verdade, é que fui capaz de aceitar que eu realmente era um homossexual.

No que a sua orientação sexual se chocava com os princípios religiosos do judaísmo?

Para a maioria dos judeus ortodoxos, o fato de ser homossexual rompe, de uma vez por todas com a sua identificação com a Ortodoxia. Ser um Rabino Ortodoxo fez com que essa opção fosse muito mais difícil para mim, mas eu não queria ser um Rabino Liberal. Eu havia me tornado ortodoxo na adolescência por razões que, apesar do meu conflito particular, ainda eram válidas. independente da mistura que havia de covardia, arrogância, teimosia ou fé, eu simplesmente não agüentaria largar tudo. Entretanto, se eu não ia largar o mundo ortodoxo que eu amava, teria que explicar a minha escolha de ser ortodoxo e homossexual. Será que era possível essa justaposição de vidas? Comecei a escrever a esse respeito e no outono de 1993 a revista judaica Tikkun concordou em publicar o meu artigo “homossexualidade e Deus”, sob o pseudônimo Yaakov Levado.

Em que momento, e por quê razão você passou a aceitar a homossexualidade com um dom de Deus?

Com a publicação do artigo na Tikkun, eu virei um endereço para pessoas ortodoxas homossexuais de ambos sexos que procuravam apoio. Ao responder as cartas, meu mundo expandiu-se. Ao me abrir para outras pessoas homossexuais, eu senti o início de uma comunidade e um senso crescente de responsabilidade por ela. Eu sabia que teria que transformar os sentimentos expressos no meu artigo de jornal em um argumento muito mais sustentável, defendendo a inclusão de judeus homossexuais e lésbicas dentro da comunidade ortodoxa.

A partir da sua aceitação, o que mudou na sua vida pessoal? E na sua relação com Deus?

Por anos orei a Deus pedindo que Ele afastasse o flagelo da perversidade para longe de mim. Por vezes, senti que Deus era meu torturador. Quando comecei meu primeiro relacionamento homossexual, voltei a orar. Eu fiquei entre celebração e culpa, ou seja, algumas manhãs, depois de ter passado a noite dormindo nos braços do meu amante, eu nem conseguia me paramentar para as orações, de tanta culpa que sentia; outras manhãs, eu me paramentava e ia rezar com um enorme prazer, agradecendo a Deus por estar vivo depois de ficar tantos anos como um semimorto. Eu demorei muito para entender que “O Deus que me criou em conformidade com a Sua vontade não ia me rejeitar depois”.

Quando e por quê você pensou em fazer o outing?

Quando voltei a morar em Nova Iorque, depois de outra temporada em Israel, percebi que, acontecesse o que fosse, eu não ia mais me sentir íntegro se continuasse no armário. Escrevi um artigo no jornal israelita Maariv, na sexta-feira, cinco de março de 1999, com o título “Em nome da parceiria”. Uma semana depois, o seminário judeu norte- americano The Forward pegou a história do Maariv e publicou um artigo onde me descreveu como o “O primeiro Rabino Ortoxo homossexual do mundo”.

Qual foi a reação na comunidade judaica ao seu artigo?

Esperei por uma chuva de ataques verbais e escritos, mas para minha surpresa, nada disso aconteceu. Os amigos deram um apoio maravilhoso e diversos colegas meus me ligaram para oferecer oração e encorajamento, embora pedissem para não serem citados... E quem não concordou comigo, não ligou para dizer nada.

Na verdade, a minha revelação foi amplamente ignorada pela comunidade ortodoxa organizada. O pior comentário escrito veio de um Rabino da Universidade Yeshiva. Ele me respondeu que um Rabino Ortodoxo homossexual era uma coisa tão absurda e inconcebível como seria um Rabino Ortodoxo comer um xis-burguer no dia do Yom Kippur, que é o Dia da Expiação, quando os judeus fazem jejum absoluto o dia todo. Ou seja, uma inobservância flagrante aos mandamentos.

O mesmo jornal The Foward pediu que eu respondesse ao comentário do Rabino. Eu escrevi que, enquanto o comprometimento às normas é um ponto central para a definição da Ortodoxia, a comparação dele tinha sido absurda. A sexualidade humana não é uma extravagância gastronômica, e a intimidade de uma vida não é um xis-burguer. Ninguém se joga de uma ponte por não poder comer um xis-burguer. Ninguém entra em depressão clínica ou se deixa submeter à terapia de choques elétricos pelo amor de um xis-burguer. O mal-entendido grosseiro que mais me chocou, neste caso, foi colocar a expressão sexual humana como uma simples gratificação corporal, porque a pessoa que fez a comparação entre sexualidade e xis-burguer, além de Rabino, era também médico.

Qual a sua intenção, ao participar do documentário Trembling Before God (http://www.tremblingbeforeg-d.com)?

Quando eu ainda estava em Israel, Sandi Simcha Dubowski (diretor do documentário) me procurou. Decidi que já era tempo de falar a verdade e eu sabia que era somente uma questão de tempo antes que eu ficasse totalmente fora do armário.

Nos Estados Unidos, o filme foi apresentado em sinagogas ortodoxas e, em Israel, para mais de 1000 diretores, professores e conselheiros estudantis do sistema escolar religioso nacional, que assistiram ao filme em pequenos grupos e discutiram sobre ele. O filme foi colocado na agenda do Ministério da Educação de Israel. Recebemos algum protesto, mas pouquíssimos. Em Baltimore (EUA) diversos Judeus Ortodoxos e Cristãos Evangélicos protestaram do lado de fora do cinema onde o filme estava em cartaz. O protesto foi coberto pela estação local de televisão, e trouxe centenas de Judeus Ortodoxos curiosos e a favor do filme nas sessões seguintes.

Como você avalia a ação desse documentário junto aos judeus em conflito com a sua orientação homossexual?

Para lidar com esse conflito, os Rabinos têm adotado amplamente a posição de muitos líderes religiosos cristãos, de “Amar o pecador e odiar o pecado”.

Quando alguém é incapaz de ser curado do flagelo do desejo homossexual através de esforço espiritual, de força de vontade moral ou da terapia, o Rabinato Ortodoxo, por vezes com um reconhecimento doloroso, ordena o celibato para toda a vida. Uma vez que o caráter de uma pessoa é comumente moldado pela restrição do desejo pessoal em prol de objetivos sublimes, é nos dito que a escolha é nossa: opte pela Ortodoxia e resista à expressão homossexual; ou opte por ser homossexual e saia da comunidade.

Mas eu recebo diariamente e-mails e cartas sobre o impacto positivo que o filme teve nas vidas das pessoas. Famílias foram refeitas e jovens tiveram sua conexão ao Judaísmo restaurada pela esperança que foi transmitida no filme. Para alguns judeus não-ortodoxos, o filme aumentou sua raiva contra a ortodoxia, pela forma como trata os homossexuais. Entretanto, normalmente ouvimos de Judeus Ortodoxos que o filme foi espiritualmente comovente e que eles foram tocados pela fé e pela persistência de pessoas que têm todas as razões para abandonarem a comunidade ortodoxa, mas permanecem. Como eu.

Steve Greenberg - Ragino ortodoxo (stevegreenberg@rcn.com)

Publicada na edição de junho DE 2003 da REVISTA G magazine (http://www.gmagazine.com.br)

http://www.armariox.com.br/conteudos/religiao/semtremerperantedeus.php