Michel e eu


   “Estou me contradizendo?
    Pois bem, eu me contradigo,
    (“Sou grande, contenho multidões)”
                           Walt Whitman.




 
 
 
Como viver?

Uma boa pergunta que Sarah Bakewell tenta responder em vinte tentativas, esmiuçando a vida e a obra de Montaigne, escritor filósofo francês que nasceu e viveu no século XVI.

Autor de Os Ensaios obra que teve a primeira edição lançada em 1580 e na qual o autor trabalhou todo o restante de sua vida (1592) ampliando-a e modificando-a sempre.

Como viver?

Uma pergunta que fazemos diariamente nos quatro cantos do mundo, embora o mundo não seja quadrado, mas sim uma bola. Uma única pergunta e zilhões de respostas inconclusivas porque a única resposta verdadeira só a teremos depois que a vida cessar. Ou nunca a teremos.Mesmo assim as palavras são ajuntadas aqui e ali formulando respostas na vã tentativa de aprender e ensinar o caminho para uma boa vida enquanto ela existir. E tem gente que ganha rios de dinheiro com isso o que só comprova a grande necessidade que temos de viver bem, embora o conceito de viver bem seja quase individual.


Depois de passar pelos vinte capítulos do livro de Bakewell só nos resta aceitar que o melhor caminho é aprender com a própria vida, que deveria ser o objetivo em si mesmo, sem nenhum outro que a justifique. Seres comuns e imperfeitos, queremos ser mais que isso buscando o caminho da perfeição que nunca será alcançada. Mas a vida é isso, o caminho, e é ele quem conta e mais o usufruiremos se abrirmos mão do controle aceitando o que vier.

Qualquer coisa vale o pensamento, a reflexão, mesmo que as bifurcações sejam muitas e complexas. É disso que é feito o ceticismo de Montaigne, não da negação, mas das inúmeras possibilidades. Uma resenha, uma crônica ou um ensaio? Que denominação darei ao que escrevo? Será que isso importa, colocar cercas no texto ou censuras? Ou vale o desnudamento da criatura em seu ambiente? Vale observar, vale mudar o foco da observação, vale mudar de ideia quantas vezes se fizer necessário, vale conhecer o mundo e suas inúmeras variações, seja no tempo ou no espaço.

No capítulo treze a resposta é: Faça algo que ninguém nunca tenha feito e isso me pegou de jeito porque nem dá para imaginar algo que ninguém tenha feito – mas Montaigne fez: ele escreveu como ninguém tinha escrito antes – uma tagarelice inconseqüente que conferia realismo aos seus personagens permitindo que os leitores se identificassem com ele. E foi isso que me encantou quando o conheci, o parecer que estava falando de mim ou o sentimento de que era eu quem escrevia. Montaigne era fascinado por seu mundo interior. Escreveu “estou constantemente a me observar, avalio-me, experimento-me (...) rolo dentro de mim mesmo”.

Seguindo alguns de seus passos procuro não me preocupar-me com a morte, pois sendo ela certa é preferível dedicar toda a atenção à vida que é sempre incerta. E assim como ele, procuro estar atenta a todas as experimentações pois o que vale é viver o que está sendo vivido (Quando eu danço, danço; quando eu durmo, durmo).Está certo, muitas vezes não consigo, mas bem que tento.

Montaigne lia muito. Aprendeu desde cedo a ler por prazer.Ler tinha que ser uma alegria. Não valia a pena ler livros chatos. Era fácil deixar de lado uma leitura que não o agradasse. Conheceu Ovídio por volta dos oito anos. E foi influenciado por sua escrita. Eu nunca li Ovídio. Mas agora fico sabendo que foi com ele que Montaigne aprendeu a passar de um tema a outro sem qualquer introdução nem ordem aparente. Outros autores que lhe deram prazer em ler foram Virgílio, Tácito e Plutarco, Lendo-os tinha a sensação de ter feito contato direto com alguém através do tempo e do espaço. Como muitos sentem em relação a ele. Eu, por exemplo. Parece que o conheço. Cada vez mais. E juro que tenho inveja de sua amizade com La Boètie. Nós nos teríamos dado muito bem se vivêssemos no mesmo tempo e no mesmo espaço.

Temos características comuns que fariam com que nos déssemos boas gargalhadas. Problemas com a memória. Lerdeza. Ele dizia que era cheio de rachaduras vazando por todos os lados. Não conseguia decorar nada. Também dava uma grande importância à honestidade. Não podia mentir porque sendo lento e esquecido se mentisse esqueceria o que tinha falado. Era mais fácil então contar a verdade. Como esquecia tudo esquecia também as afrontas. Conseguia ainda sobreviver ao amor e às perdas. E é aqui que entra La Boètie. Seu grande amigo. Uma amizade que dava inveja. Dá inveja. Sobre essa amizade Montaigne escreveu: “Se me obrigarem a dizer por que o amava, sinto que é algo que não pode ser expresso, exceto pela resposta: Porque era ele, porque era eu.” Já usei essa frase. Ele não se importaria. Porque fui eu quem usei e somos amigos. Ah, é bom lembrar. Eles eram amigos. Nada mais que isso, embora isso possa ser tudo.

Montaigne esteve presente no leito de morte do amigo. A morte naquele tempo era muito interessante. Se não ocorresse de repente,      era cheia de ritos, dos quais muitos participavam ativamente. Inclusive o pré falecido.


Ah, e os truques? Para isso ele usava as filosofias, não as clássicas, mas as pragmáticas, as que se ocupavam em ensinar a viver melhor, como por exemplo, sobreviver à morte de um amigo – epicurismo, estoicismo e ceticismo. Se vivesse hoje seria um grande leitor de auto-ajuda. Ou escritor. Ficaria rico e iria morar na França. Ops...me esqueci. Ele já morava na França...

Mas, como eu ia escrevendo, ele se utilizava dessas filosofias para usar pequenos truques de imaginação que faria a vida melhor. Quando decidi acreditar que há vida após a morte eu fiz como ele. Usei um truque de imaginação para viver melhor porque agüentar certas coisas nesta vida sem acreditar que a Vida continua depois da morte é merda pura.


Escrever sobre alguém a quem se ama faz com que a gente perca o rumo e comece a espichar o que não precisa ser espichado. Falar sobre Michel de Montaigne é uma atividade altamente prazerosa, que só traz alegria. Mas preciso ser justa e dar a todos que me lêem a oportunidade de também ler Os Ensaios e o livro de Sarah Bakewell : Como viver – ou Uma biografia de Montaigne em uma pergunta e vinte tentativas de resposta. Acho que vai valer à pena. Mas, pode ser que não. Se achar o (s) livro (s) chato(s) faça como ele – feche e vá fazer outra coisa. Nada vale a pena se não for feito com alegria. Mas eu duvi d o do.