ENGENHARIA EM XEQUE

Acidentes e tragédias, decorrentes de problemas estruturais e falta de segurança em obras de grande porte, colocam em xeque a qualidade dos profissionais da engenharia brasileira, bem como as atribuições inerentes aos conselhos de profissão

Logo após o desabamento de parte da estrutura nas obras do futuro estádio do Palmeiras no mês de abril, em São Paulo, o delegado Marco Aurélio Batista concentrou as investigações nas empresas responsáveis pelo empreendimento – a WTorre Engenharia e Construção S/A e a TLMix Construções –, no sentido de apurar as causas do acidente. “Nosso primeiro passo é identificar o maior número de trabalhadores e responsáveis por aquele local, entre engenheiros, mestre de obra e operários, para colher os dados”, justificou, na época, à imprensa. Enquanto a empresa emitia nota oficial comunicando o ocorrido e a Defesa Civil de São Paulo interditava parcialmente as obras sob alegação de falta de segurança, companheiros de trabalho, amigos e familiares choravam a morte do operário Carlos de Jesus, de 38 anos. Um mês antes, em Niterói (RJ), dois prédios tiveram que ser demolidos por apresentarem problemas estruturais – as rachaduras eram visíveis –, contabilizando um prejuízo de R$ 4 milhões. O condomínio Zilda Arns, que está sendo construído num antigo lixão desativado, deverá abrigar as famílias do Morro do Bumba, comunidade praticamente destruída pelas chuvas há três anos, que matou 47 pessoas e deixou mais de 3 mil moradores desabrigados. Em tempo, a Imperial Serviços Ltda divulgou que os engenheiros estavam avaliando se havia risco nos demais edifícios, sem apontar novo prazo para a entrega das obras. Ainda, no Rio de Janeiro, há pouco mais de um ano três prédios desabaram na Cinelândia, mais especificamente na Avenida Treze de Maio, deixando 22 mortos – cinco deles, não encontrados. De acordo com a revista VEJA Rio, foi a maior tragédia da história da construção civil do Rio de Janeiro, comparável somente com o desabamento do Elevado Paulo de Frontin, na década de 1970, e do Edifício Palace II, em 1998 na Barra da Tijuca. Evidente que toda tragédia é lamentável, mas nenhuma das citadas anteriormente teve tão grande repercussão como a ocorrida na Boate Kiss, em Santa Maria (RS). Dificilmente os brasileiros, em especial os gaúchos, irão esquecer da madrugada de sábado, 25 de janeiro de 2013, quando um incêndio generalizado vitimou 241 pessoas – a maioria, jovens – que ali simplesmente se divertiam. Esses são apenas alguns dos inúmeros exemplos de acontecimentos – quase todos, com vítimas fatais – que têm marcado tão negativamente a sociedade brasileira, causando enormes prejuízos aos cofres públicos e colocando em xeque até mesmo a capacidade dos profissionais da engenharia e segurança, responsáveis pelo planejamento, execução e funcionamento das obras; teoricamente, são eles que deveriam evitar a ocorrência de acidentes dessas magnitudes.

Em todos os casos os discursos são similares e procuram apontar, primeiramente, as causas para depois estabelecer medidas preventivas; no entanto, esses mesmos discursos se tornam evasivos quando, volta e meia, a população é surpreendida com novas tragédias. No caso de Santa Maria, uma comissão de especialistas em segurança formada pelo CREA-RS – Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio Grande do Sul apontou alguns fatores que contribuíram para a tragédia: falta de saídas de emergência; falha nos extintores; uso inadequado de espuma no teto da casa, material altamente inflamável; além, é claro, da imprudência pelo uso de sinalizadores pirotécnicos num ambiente fechado e totalmente inapropriado para essa finalidade. Para Luiz Carlos Pinto da Silva Filho, integrante da comissão e coordenador do CREA-RS, uma tragédia só acontece em função de muitas falhas. “Infelizmente, foi o que aconteceu nesse caso, como as condutas de risco que não deveriam ter sido adotadas porque contrariam a lei e os nossos decretos”, disse em coletiva de imprensa, fazendo uma espécie de mea culpa.

Por sua vez, o presidente da entidade, Luiz Alcides Capoani, destacou que o acidente deve servir para que se evoluam as regras e legislações que garantam a segurança da população. “Propomos um trabalho em conjunto com os bombeiros, governos estaduais e municipais, judiciário, legislativo, universidades, entre outros, que resultem em maior rigor na fiscalização, na especificação de materiais, na manutenção e inspeção das edificações, e nas situações de incêndio e pânico”, afirmou, na mesma coletiva.

Política do bom senso – Com pouco mais de cinco anos de uso e construído para os Jogos Pan-Americanos de 2007, recentemente o Estádio Olímpico João Havelange foi interditado pelo prefeito Eduardo Paes depois que um laudo realizado por uma empresa alemã apontou problemas de ferrugem e rachaduras na estrutura. Com capacidade para 45 mil torcedores, o Engenhão – como é conhecido o estádio, por se situar no bairro de Engenho de Dentro, zona norte do Rio de Janeiro – só deve ser reaberto em 2014, pois seu problema estrutural é bem mais complicado do que parece, tanto que há risco de desabamento da cobertura com ventos de velocidade superior a 63 km/h. “Posso falar em 30, 45, 60 dias para identificar o problema e começar a executar uma solução”, afirmou, na ocasião, Armando Queiroga, presidente da RioURBE – Empresa Municipal de Urbanização, em matéria publicada no portal VEJA. “Engenheiros ainda não sabem como consertar o Engenhão”, diz a reportagem, enfatizando que a causa do problema e até que ponto a cobertura resiste é um mistério que só será solucionado com o tempo.

Para Antônio Eulálio, registrado no CREA-RJ – Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio de Janeiro, um aço de melhor qualidade poderia ter sido usado na estrutura que cobre as arquibancadas. “É prematuro dizer que a causa é o material, apesar da oxidação. Agora, deveria ter sido usado um aço resistente à corrosão”, afirmou ao GloboEsporte.com. Segundo o engenheiro, se houvesse um estudo confirmando sua qualidade, provavelmente o estádio não teria sido interditado. “Outro problema é que não foi certificado. Uma obra com estrutura especial, de grande porte, com um grande vão, deveria ter sido certificada por uma empresa certificadora e, então, segurada”, complementa.

Se por um lado comerciantes no entorno do estádio, dirigentes cariocas e clubes, especialmente o Botafogo que é o atual arrendatário, contestam a interdição do Engenhão, por outro Eduardo Paes prefere trabalhar a política pública com bom senso; afinal, é apenas o início do segundo mandato como prefeito e, segundo as pesquisas de opinião, sua popularidade está em alta.

Ainda em relação aos estádios, no final de maio três engenheiros foram indiciados pela polícia civil riograndense pelo acidente ocorrido na Arena do Grêmio em Porto Alegre, quando parte do alambrado desabou durante uma partida válida pela Libertadores da América. Se condenados por lesão corporal culposa e exposição de vidas ao perigo iminente, a pena será leve segundo o delegado responsável pelo caso. No entanto, é mais um fato que aponta os perigos a que os torcedores brasileiros estão expostos em dias de jogos.

Responsabilidades – Doze importantes capitais brasileiras se preparam para receber jogos da Copa do Mundo 2014: Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Brasília, Porto Alegre, Curitiba, Recife, Salvador, Fortaleza, Natal, Cuiabá e Manaus. Em todas as cidades, a mobilização é grande dentro e fora das praças esportivas, ou seja, em obras de mobilidade urbana como vias públicas, estações de trens e metrô, aeroportos, hotéis, enfim. Com o mercado de trabalho aquecido, profissionais da engenharia, área técnica e tecnológica devem estar completamente comprometidos com o trabalho e as responsabilidades inerentes às suas respectivas modalidades.

Pela regulamentação profissional garantida pelo Decreto nº 90.922/1985, os Técnicos Industriais têm, entre suas atribuições: conduzir a execução técnica dos trabalhos de sua especialidade, prestar assistência, orientar e coordenar a execução dos serviços, entre outras. Também, pelo mesmo documento, os Técnicos em Edificações só podem projetar e executar projetos até 80 m² de área construída, que não constituam conjuntos residenciais. E uma vez que o CONFEA – Conselho Federal de Engenharia e Agronomia determina em seu site que “é fundamental que a sociedade entenda que aquele que estudou por vários anos está apto para atender as demandas existentes; e contratar um profissional é, portanto, necessário para ter um bom projeto e para executá-lo com qualidade e economia, prevendo problemas futuros”, resta uma pergunta: já que os técnicos não podem ser cobrados pelas irregularidades estruturais recorrentes em obras como as citadas na matéria, de quem então é a responsabilidade? Onde está a engenharia civil brasileira que, teoricamente, deveria se responsabilizar pelo contrato firmado entre as partes na execução de um trabalho, pela solidez e segurança da construção, pela escolha dos materiais a serem empregados na obra, e pelos dados eventualmente ocasionados a terceiros? São perguntas, por enquanto, sem respostas.

Cratera no metrô, em São Paulo

Janeiro de 2007. Um desmoronamento gigantesco durante as obras de construção do metrô, em Pinheiros, zona oeste da capital paulista, deixou a céu aberto uma cratera de 80 metros de diâmetro. Engenheiros do Consórcio Via Amarela, formado por um pool de empresas liderado pela Odebrecht, afirmaram que pouco antes do acidente o solo por onde passariam os trilhos estavam sendo rebaixados; especialistas ouvidos posteriormente pela VEJA São Paulo acreditam que isso pode ter sido o “gatilho” da tragédia. Um ano e cinco meses depois, o IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas entregou ao MPE-SP – Ministério Público Estadual e ao METRÔ-SP – Companhia do Metropolitano de São Paulo um documento apontando as causas, entre as quais constam falhas no projeto e na execução da obra, e aceleração no ritmo dos trabalhos. E mais: reportagem publicada pela Folha de S.Paulo indica que o desmoronamento não foi resultado de uma fatalidade, mas de uma série de fatores, como a abertura do túnel em solo de “rocha podre”, falta de reforço nas paredes antes do aparecimento de sinais de instabilidade, e a não conclusão da instalação de estruturas de sustentação – tirantes. Na ocasião, sete pessoas morreram e dezenas de imóveis foram interditados; alguns, até demolidos. E em 2012, o Consórcio Via Amarela e o METRÔ-SP foram condenados a ressarcir o INSS – Instituto Nacional de Seguridade Social pelo dinheiro pago aos familiares das vítimas.

Fonte: Revista da FENTEC - Edição 37

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José Donizetti Morbidelli
Enviado por José Donizetti Morbidelli em 19/07/2013
Reeditado em 08/01/2014
Código do texto: T4394830
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