A CHACINA DE PARIS E A CRISE NA ATRIBUIÇÃO DE VALORES PRODUZIDA PELA GLOBALIZAÇÃO
 
 
A chacina de Paris, de diversas formas, põe em cheque a capacidade das sociedades hodiernas, interconectadas e relativamente globalizadas, de atribuir valores a fatos e objetos.
 
O primeiro de todos os problemas envolvidos nesse eixo e trazidos à baila pelo atentado à redação da revista Charlie Hebdo é o seguinte, à primeira vista, quiçá, muito simples.
 
Até que ponto seria realmente absurdo o reagir-se com violência à profanação de objetos sagrados e meramente simbólicos nos dias de hoje? E, em complemento: tal atitude espelharia, deveras, irracionalidade extrema e extremista, fanatismo, fundamentalismo e até fascismo?
 
O simples fato de alguém se fazer tal pergunta, sobretudo, neste momento, de estarrecimento geral e dor, soa como uma profanação; não?... Mas eu fui além.
 
Fiz uma confissão que admito extrema, outro dia, embalado pelo chamamento íntimo a abordar tal questão. Disse que eu próprio, ao assistir, pela TV, a incinerações da bandeira nacional, em alguns momentos, pensei que, se estivesse passando de carro por aqueles locais, durante um de tais atos, poderia cometer um desatino que chegasse a ganhar as manchetes internacionais mundo afora...
 
A resposta mais corriqueira a tal confissão é, sem dúvida, a de clamar-se, incontinênti: você é um louco; a bandeira do Brasil é um simples pedaço de pano, e chegar a pensar em tirar vidas por um pedaço de pano só expõe estado de absoluto desequilíbrio mental!
 
Fosse a Bandeira um pedaço de pano, ninguém pensaria em incinerá-lo num ato político: o que se procurava atingir pelas chamas em tais atos era, com efeito — um símbolo, e não, obviamente, o tecido sobre que se estampa. E isso ocorria num contexto de ameaça real à soberania nacional tão recentemente conquistada durante as manifestações orquestradas de inspiração anarcocapitalista, ou, noutros termos, anti-anarquista, de 2013 e 2014.
 
Vale lembrar que a destruição dos símbolos nacionais, inclusive, a bandeira constitui — crime, conquanto não venha sendo denunciado pelo Ministério Publico no País, sequer quando cometido através de um dos canais de televisão do povo brasileiro arrendado a grupo privado, sob regime de concessão, fato a que se assistiu, recentemente. E o teor satírico — subjetivo ou objetivo — do fato não ameniza a sua punibilidade em nenhuma medida.
 
Passemos, porém, a outro fato simbólico, antes de discutir mais a fundo esses dois primeiros: a destruição da Bandeira e a profanação da imagem do Profeta.
 
Como reagiria o leitor ao ato de um indivíduo adulto qualquer que passasse uma das mãos pela região lombar da sua filha, da sua esposa, da sua sobrinha, ou da sobrinha do seu vizinho? Qual a natureza do seu impulso imediato em relação a esse fato — eventualmente típico — e ao seu autor? Digamos, para tornar mais concreta a hipótese, que a paciente da alisadura seja uma menor de idade, tenha por volta dos seus doze anos de vida, e não tenha consentido na carícia em questão. O seu impulso, no caso desse ato simbólico, seria, por acaso, de violência, ou de que outra natureza?
 
Alguém poderia advogar que o ato em questão é mais que simbólico: nele estaria envolvido o sentimento da adolescente em relação à abordagem inesperada. Para isolarmos essa parte da questão, então, suponhamos que a mocinha estivesse adormecida, ou privada de sentidos, desmaiada, por exemplo, de sorte que nada sentisse, ela mesma, em relação ao ato imediato. Neste caso, estaria perdoado o burilador? Ou o impulso do caro leitor em relação a ele ainda seria de violência?
 
Se a adolescente nada sentiu, o que foi tocado — e profanado — de fato? Um simples órgão do aparelho excretor humano que outros mamíferos, nossos vizinhos próximos na selva de pedra, como cães, costumam cheirar de perto e mesmo lamber uns aos outros; um simples órgão do aparelho excretor humano que, assim como outros mamíferos, sabemos usar, de modo muito feliz, em preliminares sexuais — inclusive, o dito coito anal —; foi isso, deveras, o que foi tocado, ou algo de mais... sutil? Algo como a honra da moça, dos pais e parentes, e da própria sociedade?
 
E o que relaciona a honra ao aparelho excretor? O que, senão uma lei ou convenção social? Ou seja, está embutida nessa alisadura — um legissigno, lançando mão de termos peirceanos, ou, para facilitar: um símbolo: o ato em exame é um signo que se associa a seu objeto exclusivamente por força de uma lei ou convenção.
 
O sutil, seja a honra, seja a virgindade, a pureza..., não pode, certamente, ser tocado, diretamente, com a mão. Para tanger-se o sutil, é patente: tem-se de recorrer a um ato de valor simbólico.
 
Um jornalista, que, por corporativismo puro e inconfundível, discute a questão do atentado contra colegas seus de profissão de forma um tanto apaixonada, propôs, estes dias: “se alguém não gosta de uma charge que eu tenha feito, me dê um soco, mas não um tiro”...
 
Socos e tiros com armas de fogo são atos de violência, i.e, da mesma natureza, e ambos virtualmente letais. Porém, cabe consentir em que, na média, os socos tenham menor letalidade que os tiros com armas de fogo. Afinal, uma boa parte daqueles, quando desferidos por leigos, não se compara, em eficiência, ao guarda-chuva da vovó. Assim, a proposta do jornalista não chega a tangenciar a esfera de uma possível modificação da natureza da reação que se deva ter diante de atos simbólicos: ele tão-só discute um valor curioso: quantidade de violência...
 
Bem, para quem tiver de reagir contra o (tarado pedófilo) autor da apalpadela na adolescente adormecida com violência, mas, por ser um bom cristão, repudiar os tiroteios, tal receita parece perfeita: cabe dar um soco no molestador. Ou dois! Mas não tiros. E cabe chamar a fazer o mesmo os amigos, os parentes, os vizinhos, os transeuntes, para não se estar só diante da responsabilidade de punir um profanador do — sagrado, da pureza. Socos, chutes. Eventuais pauladas. É, destarte, que se produz um linchamento. E, como cada envolvido desferiu apenas um ou dois socos, um chute, uma cotovelada, — i.e, uma pequena quantidade de violência, ora: nenhum dos linchadores cometeu grande violência, ou crime maior. Exceto, talvez, por aquela senhora que atirou gasolina sobre o corpo agonizante e ateou fogo. Ou pelos rapazes que decidiram enforcá-lo na árvore do terreno baldio: o miserável tinha mais vidas que um gato, com os diabos!...
 
Você vai franzir os sobrolhos para mim, ao me perguntar se o que estou a fazer é tentar, de algum modo, justificar o atentado de Paris. Não, não é essa a minha pretensão, senão a de entender, para além da superfície, o que me parece ser, já adiantei, uma crise de valores concernente à avaliação do fato. E, quanto ao tom levemente satírico com que conduzo esta perscrutação, se lhe incomodar... peço que me perdoe. Mas ouvi dizer que os fãs da Charlie são pessoas dotadas de senso de humor. E de gosto especial para o humor pesado e negro, inclusive.
 
O que pode levar pessoas comuns, pouco afeitas à violência, ao linchamento do profanador da pureza virginal, senão todo um tecido — cultural de natureza estritamente simbólica? Falamos de convenções sociais, relacionadas à esfera do sutil, as quais estão solidamente arraigadas entre nós por conta da imensa dívida que temos, ateus, agnósticos ou religiosos, para com a tradição judaico-cristã.
 
A base da nossa educação moral é — jesuítica, cristã, desde o nascedouro da nossa identidade como povo, e nós simplesmente não sabemos fugir às injunções desse contexto.
 
Não há nada na essência dos aparelhos excretores que, de per si, determine se eles devem ser — respeitados, quando se interage com outros indivíduos, ou imediata e sociavelmente cheirados e lambidos, à maneira do que fazem outros mamíferos. Foi a cultura que caminhou para o lado, sem dúvida, mais exótico, inusitado — e, aos olhos de um extraterrestre simbiônico hipotético três por cento orgânico que nos observasse, provavelmente, mais grotesco — apenas isso.
 
Bem assim, não há nenhuma escala de valor inerente, ou universal entre pedaços de pano com bandeiras estampadas, tinta impressa sobre o papel de uma revista e órgãos do aparelho excretor humano.
 
O profanador da bandeira do Brasil, o profanador da imagem do profeta Maomé e o profanador da pureza virginal são, ao cabo, todos eles, indivíduos que atentam contra — o sagrado. E fazem isso da única maneira possível: agredindo símbolos.
 
Não há verdades flutuando, com asas de vitral, em qualquer parte, para além dos mundos, i.e, das culturas nacionais, com as suas tessituras simbólicas particulares e os seus sagrados.
 
E, ao afirmar isso, não estou negando a instância inegável do absoluto, nem me dando o direito de presumir que este não seja Alguém, ao invés de apenas algo; o que estou a considerar é que cada povo constitui ou apreende o absoluto de forma peculiar, e — tal forma é a verdade. A verdade a ser respeitada. Em que pese ser um essencialista, não perco de vista que a verdade é a representação da essência, e não, em qualquer hipótese, a essência mesma. A verdade está na ordem da linguagem, — i.e, das línguas, das culturas, dos simbolismos.
 
Direitos humanos (“human rights”) são uma mentira e uma doutrina racista e totalitária de extrema direita, afirmo, outrossim, há vários anos.
 
O fato de um conjunto de etnias historicamente interligadas julgar que seus patriarcas do passado, os seus pensadores e fundadores da “Lei Absoluta” desvendaram a verdade inquestionável sobre o que quer que seja, de sexualidade a modelos político-econômicos, constitui mero — fundamentalismo de sua parte.
 
A democracia, por exemplo, não é inerentemente melhor que a teocracia, nem mais legítima. Quanto mais a democracia liberal e parlamentar, altamente questionável e questionada, mesmo entre os herdeiros das culturas que a impõem pela força das armas contra as tentativas de mudança do regime que marcaram o XX.
 
Não se pode matar povos, destruir Estados para impor a democracia, ou a liberdade: tal é um contra-senso evidente, inclusive.
 
Nós fomos confessamente teocráticos até ontem e, ainda hoje, a grande maior parte do nosso direito e da nossa estrutura política é fundamentada teologicamente.
 
O liberalismo mesmo é urdido por João Locke como — uma teologia leiga (e um tanto tosca), que preceitua como “sacrossanto” o direito de propriedade. E este persiste sendo o único argumento sobre que se sustenta tal direito entre nós. Jamais sequer se tentou alicerçar a propriedade em outras bases que não estas: de algo, a só um tempo, santo e sagrado, conforme a vontade de Deus... E, quando se ouviu dizer que Deus estava morto, quiçá, porque não gostava de ricos mais do que de camelos e não tolerava a usura, concluiu-se que isso era uma boa nova e se a difundiu; entanto o que era sacrossanto pela vontade de Jeová sacrossanto permaneceu, pétreo e inquestionável, emanando dos profetas leigos do Ocidente, dos fundadores dos fundamentos absolutos... O liberalismo, de modo dantesco, se sustenta sobre o cadáver de um absoluto morto. E, como bom fundamentalismo teocrático (zumbi) que é, pretende detectar e perseguir outros modos de teocracia e fundamentalismo, sobrepondo-se a estes.
 
A Charlie Hebdo pensava ser — ou tinha interesse comercial em se declarar — de esquerda. Entanto o seu modo de ser de esquerda se afinava com o da “esquerda” estadunidense. I.e, baseava-se em “human rights”, uma doutrina, como já dito: racista, totalitária e de extrema direita, afim do nazismo, do sionismo, da White Power, e etc..
 
Segundo tal doutrina, o casamento de um jovem de vinte e cinco anos com uma mocinha de doze, por exemplo, é uma profanação, uma agressão ao sagrado, à verdade absoluta revelada aos indo-europeus por um Deus que, morto, não pode mais sequer ser interpretado de outro modo pelos teólogos mais avançados. Eis, pois, o fundamentalismo mais conservador que já se urdiu: o fundamentalismo dos fundamentalismos. Profanações desse direito “natural”, inerentemente humano, conforme uma interpretação racista e mágica do que seja o humano, devem ser tratadas com violência que vai do linchamento aos drones. E assim caminha a desumanidade do racismo que a Charlie Hebdo se especializara em catalisar e vender com mais-valia.
 
Eu tenho uma novidade importante a lhe dizer — a você que gastou algum tempo me acompanhando até aqui (se é que já não disse): as etnias indo-européias não desvendaram a verdade absoluta. Verdade absoluta é um contra-senso completo: toda verdade é cultural; i.e, toda verdade é — nacional. Ainda que possa ser compartilhada por várias nações, que foram se desdobrando, historicamente, de culturas, mais ou menos, comuns.
 
Toda verdade, para ser uma boa verdade, deve estar, ademais, — em evolução, assim como as nações. O conservadorismo e o fundamentalismo inibem o processo de evolução que, se perpassa todas as espécies, entre os humanos é sobremodo revelador da sua identidade e galopante em relação aos demais viventes. Entanto nenhum povo pode interferir sobre os processos evolutivos de outro ou outros povos, sob pena de provocar grandes estragos e retrocessos. A ecologia — enquanto ramo da biologia — nos ensinou muito sobre isso. Há consenso, hoje, sobre não-interferência num simples ato de predação, malgrado os impulsos de muitos no sentido de “defender a presa” e repelir o predador. Há consenso quanto à não-aculturação dos povos aborígenes remanescentes. Mas, paradoxalmente, não há consenso quanto à não-interferência sobre as culturas dos povos árabes, dos chineses, dos norte-coreanos e etc..
 
O mal consiste sempre na tentativa de alguns de impor a outros o que lhes parece ser o bem, já o disse antes, várias vezes. Ou, noutros termos: o mal se externa sempre como — intervenção.
 
Cumpre evoluirmos e deixarmos evoluir.
 
A crise de valores que se conhece, nestes dias, decorre, claramente, da confusão babélica de culturas que, a partir do Ocidente, procuram se sobrepor, umas às outras, ao invés de conviverem e dialogarem, a fim de melhor conhecerem as diferenças entre si, e, eventualmente, a partir disso, se definirem, mutuamente, por oposição, de forma mais clara.
 
Diga-se, agora, apenas de passagem, ao modo dos franceses, algo que também já dissemos antes, inúmeras vezes: que a limagem das diferenças é essencialmente antievolutiva, conduzindo, inexoravelmente, à indiferenciação, i.e: ao nada.
 
Outras contradições sobre atribuição de valores trazidas à baila pelo massacre de Paris giram em torno, por exemplo, da repercussão dada a este episódio e sua desproporção em relação a tantos outros fatos violentos, tais como a morte de jornalistas, inclusive europeus, pelos israelenses nos territórios palestinos invadidos. O professor da UFRJ e pesquisador Pedro Marinho, historiador, fez a seguinte observação, no dia nove de janeiro:
 
E por falar em "liberdade de expressão", em 2014, na Faixa de Gaza (região que corresponde a um fragmento do território destinado à população árabe residente na Palestina ocupada), 17 jornalistas foram massacrados pelo governo terrorista de Israel. Alguém sabe dizer seus nomes? Não ouviram falar? Aproveitando a onda do "Je suis", quem se habilita a ser estes jornalistas? #CharlieHebdo (sic).
 
Aqui o que está em questão tem imbricações mais evidentes. A sociedade da informação, que tenderia a preceder a do conhecimento, mostra-se terrivelmente manipulável em função do bombardeio implacável da própria informação.
 
E isso, somado aos abusos cometidos pela Charlie Hebdo e suas terríveis conseqüências, — sobretudo, para o mundo árabe muçulmano, colaboram para pôr na ordem do dia o debate urgente sobre regulação das mídias e simples cumprimento, no Brasil, do que já dispõem nesse campo a Constituição Federal de 1988 e a Lei.
 
 
Igor Buys
12 de janeiro de 2015