BONDADE, COMPAIXÃO E PERDÃO NO POEMA “ESTAVA LÁ AQUILES” DE MÁRIO FAUSTINO: uma análise linguística, discursiva e literária

BONDADE, COMPAIXÃO E PERDÃO NO POEMA “ESTAVA LÁ AQUILES” DE MÁRIO FAUSTINO: uma análise linguística, discursiva e literária. (1)

Marta Cosmo(2)

RESUMO: Este trabalho expressa-se em uma pequena análise linguística, discursiva e literária do poema “Estava lá Aquiles”, de Mario Faustino. Tal análise apenas sugere um caminho interpretativo a partir de pistas encontradas no percurso da busca pela mensagem poética tecida explicita e implicitamente nos versos do referido poema. E nesse percurso, a hermenêutica foi a luz que clareou e guiou o caminho através das ideias de Paul Ricoeur e Gadamer. Autores como Bossi (2013), Leloup (2002), Prestes (1995) fizeram-se imprescindíveis a este estudo.

Palavras-chave: análise; poema; hermenêutica; Mario Faustino

Abstract: This work is expressed in a small linguistic analysis, discourse and literary poem "was there Achilles" by Mario Faustino. Such analysis only suggests an interpretative path from clues found in the course of the search for the poetic message woven explicit and implicitly in the verses of the poem. And in this way hermeneutics was the light cleared and guided the way through the ideas of Paul Ricoeur and Gadamer. Authors such as Bossi (2013), Leloup (2002), Prestes (1995) made themselves indispensable to this study.

Key-words:analysis; poem; hermeneutics; Mario Faustino

INTRODUÇÃO

Quem já não andou pelas terras secretas e mágicas de Andara e se deparou com uma árvore falante e o lendário serdespanto? Ou quem já não percorreu o território de Pasárgada, montou num burro brabo e deitou na beira do rio para ouvir a mãe-d’água contar histórias?... Ou quem já não conversou com as estrelas e as compreendeu, ao descobrir o coração transbordante de amor...

A poesia é um portal, muitas vezes esdrúxulo, que nos leva por territórios cujos cenários e vivência são tecidos de forma surpreendente!!! Assim,

"em um relance, o que era sombra errante vira gente. O que era espaço opaco transparece varado pela luz da percepção amorosa ou perplexa, mas sempre atenta. Aquele vulto que parecia vazio de sentido começa a ter voz, até mais de uma voz, vozes. Irrompe o fenômeno da expressão. Quem tem ouvidos, ouça! " (3)

E é para ouvir e compreender que adentro os portais de um poema. Quem sabe percorrendo os caminhos de suas palavras eu me depare com o serdespanto de cada poema?! Quem sabe eu descanse à beira do rio da lírica poética e ouça a sua essência?! Sim, “uma palavra é o encontro de uma boca com uma orelha.”.(4)

E é a partir desse percurso de ouvir que se construiu essa pequena análise de poema, que não busca indicar o significado exato do mesmo, pois se “(...) a primeira palavra jamais é nossa (...) há um núcleo do poético que é sagrado, o religioso, a palavra original.”(5) . Mario Faustino também cita o pensamento de Vico “No interior da poesia está a origem das línguas” (6). Quem sabe seja a a palavra primitiva?, o “Fiat Lux”? Sendo assim, como se chegar à completa interpretação e compreensão de uma obra poética se há uma palavra original que não é do poeta e que, portanto, não está explícita? Ora, se falta a palavra original, como apresentar um conceito final? Por isso mesmo, o que se apresenta a seguir é uma análise que sugere um caminho interpretativo a partir de pistas encontradas: um percurso em busca da mensagem poética.

E nesse percurso, a hermenêutica foi a luz que clareou e guiou o caminho através das ideias de Paul Ricoeur e Gadamer que se fizeram imprescindíveis. Segundo Ricoeur, a hermenêutica é “uma interpretação contínua de textos. Os textos poéticos tem certamente um lugar preponderante, um lugar real entre os textos, porque são os textos que produzem sentido”. Para Gadamer, “a hermenêutica é a arte de explicar e de mediar com base num esforço interpretativo o que é dito pelos outros”. (7)

Linguisticamente observou-se o pensamento de Fiorim (1990), nesse sentido, entende-se que a preocupação básica da linguística é a análise das relações internas entre os elementos linguísticos.”(8)

Então apresento um convite; dê-me a mão prezado(a) leitor (a) e adentremos os portais da poesia a seguir, ouçamos suas palavras explícitas e implícitas, e caminhe comigo por onde meu pensamento me levou.

01. ANÁLISE LINGUÍSTICA DISCURSIVA E LITERÁRIA DE POEMA

1.1. Poema “Estava lá Aquiles, que abraçava” de Mário Faustino.

1. Es/ta/va/ lá/ A/qui/les, /que a/bra/ça/va A

2. Em/fim/ Hei/tor,/ se/cre/to/ per/so/na/gem B

3. Do/ so/nho/ que/ na/ ten/da o/ tor/tu/ra/va; A

4. Es/ta/va/ lá/ Sa/ul,/ ten/do/ por/ pa/jem B

5. Da/vi,/ que ao /som/ da/ cí/ta/ra/ can/ta/va; A

6. E/ es/ta/vam/ lá/ se/tei/ros/ que/ pen/sa/vam C

7. Se/bas/ti/ao/ e/ as/ cha/gas/ que o/ ma/ta/ram. D

8. Nes/se/ jar/dim/, quan/tos/ as/ mãos/ dei/xa/vam C

9. Le/var/ aos/ lá/bios/ que os/ a/trai/ço/a/ram! D

10. E/ra a/ ci/da/de e/xa/ta, a/ber/ta, /cla/ra: E

11. Es/ta/va/ lá/ o ar/can/jo in/cen/di/a/do F

12. Sen/ta/do aos/ pés/ de/ quem/ de/sa/fi/a/ra; E

13. E es/ta/va/ lá/ um /deus/ cru/ci/fi/ca/do F

14. Bei/jan/do u/ma/ vez /mais/ o en/for/ca/do. F

Lembro-me ainda o impacto em meu espírito, quando li este poema de Mário Faustino, pela primeira vez... Imersa em emoções, meus olhos e coração se detiveram nos quatro últimos versos: “Estava lá o arcanjo incendiado/ Sentado aos pés de quem desafiara;/E estava lá um deus crucificado/Beijando uma vez mais o enforcado.” ...

Ah!, a compaixão universal!, ... a grandiosidade e generosidade do Bem!!... Pensei, senti, emocionei-me... E houve maré cheia no mar dentro de mim... E as margens dos meus olhos tentaram conter a vazante, numa luta sobre-humana, sem total sucesso, pois algumas lágrimas penderam em meu olhar e pareceram congelar translúcidas em minhas pupilas... Era preciso guardar minha emoção... eu não estava sozinha... Estava em uma aula de mestrado, aprofundando-me nos estudos do poema, que levou-me a construir esse artigo.

Vieram de súbito à minha lembrança as palavras de Jesus, “Pai, perdoai-lhes. Eles não sabem o que fazem.”... Lembrei-me das palavras de Paul Ricoeur, “Por mais radical que seja o mal, não é tão profundo como a bondade.”(9) . E a compaixão está inserida na bondade e ambos são frutos do amor universal. Sobre a compaixão, Dalai-lama, explica que

"as pessoas tem por vezes a impressão de que a compaixão é um sentimento de piedade. Não é o caso. A compaixão é uma espécie de sentimento de proximidade que se experimenta em relação a alguém. (...) essa atitude, podemos até empregá-la em relação a nossos inimigos(10) . Portanto a verdadeira compaixão é “imparcial”. Além do mais, na compaixão autêntica há um compromisso, um respeito pelo outro, e mesmo um sentimento de responsabilidade perante seu bem-estar, sua felicidade, seu desabrochar. " (11)

Mas seria mesmo esse o significado final? Todo o poema expressaria o sentimento de amor e perdão, como os últimos versos expressam, na ação de Jesus ao beijar o enforcado? E Aquiles, Saul, os seteiros e os que atraiçoavam? A princípio não me parece haver uma total homogeneidade de sentimentos. Somente uma análise pode revelar alguma pista que nos leve a uma aproximação da ideia principal que o autor construiu em seu poema, a mensagem do discurso poético. Sendo assim, partirei para a análise do poema em si, primeiramente observando a estrutura externa do poema, para depois partir para uma apreciação interna desta obra.

Quanto à estrutura externa, o soneto de Mário Faustino, que traz como título seu primeiro verso, “Estava lá Aquiles, que abraçava”, abre-nos, por entre seus versos decassílabos, portais de tempos e espaços, ora reais ou mitológicos, ora terrenos, celestiais ou imponderáveis...

Quanto à combinação silábica, o poema de forma geral apresenta rimas alternadas de valor pobre, isto é, a rima é alcançada pela combinação entre palavras de mesma classificação gramatical. Somente os versos 10 e 12 apresentam uma rima rica, construídas pelas palavras: “clara” e “desafiara”, um adjetivo e um verbo, respectivamente.

Quanto à estrutura interna, o poema revela uma amálgama de personagens e pessoas, em sentimentos paradoxais, mas possivelmente convergentes. Paradoxais, porque apresentam aparentemente relações humanas terrenas ou celestiais antagônicas, expressas nos “pares” apresentados: Aquiles e Heitor; Saul e Davi; Sebastião e os seteiros; as vítimas e os que atraiçoavam; supostamente Deus e aquele que a princípio fora um de seus Arcanjos, Lúcifer; Jesus e Judas.

O que se converge, refere-se ao fato de que todos, ao final, parecem se afluírem num único sentimento: a compaixão, que leva ao perdão. Fato que se revela nas ações de “abraçar” e “beijar”.

Tal poema se configura como uma poesia narrativa, visto que conta fragmentos de histórias, apresenta ambientes, “personagens” e seleciona acontecimentos visando exprimir uma significação. Assim, um texto narrativo se configura como tal, quando se conta alguma história, seja fictícia ou imaginária, com seus personagens inseridos em um ou mais fatos, localizados em determinado(s) tempo(s) e espaço(s)(12). O próprio Mário Faustino, em um de seus diálogos apresentados na obra “Poesia e experiência”, afirma que a distinção entre prosa e poesia “só se torna precisa no plano formal”, pois “no nível material, essencial, encontraremos sempre o prosaico na poesia e o poético na prosa”(13).

Os três primeiros versos “Estava lá Aquiles, que abraçava/Enfim Heitor, secreto personagem/Do sonho que na tenda o torturava [...]”, remetem aos personagem da mitologia grega da Ilíada de Homero. Aquiles, o filho de Peleu e da formosa deusa Tétis; e Heitor, “o domador de cavalos. O defensor de muralhas. Um herói sem artifícios.”(14). Aquiles matou Heitor, num ato de vingança, segundo a narrativa- mítica, por Heitor ter matado Prótoclo, seu grande amigo. No entanto, segundo tal obra, este último havia ido ao encontro de Heitor para matá-lo, sendo assim, o filho de Príamo e de Hécuba, agira em legítima defesa própria. Em meio a uma guerra de quase uma década, originada pelo suposto rapto de Helena, princesa de Tróia e esposa de Melenau, Aquiles não satisfeito em matar Heitor, ainda o prende em cavalos para estes arrastarem seu corpo em torno da cidade grega, deixando seu corpo exposto aos abutres. Por fim, ouve o apelo do pai de Heitor e entrega o corpo deste para um sepultamento digno. A narrativa ainda mostra que pai e assassino de Heitor se abraçam diante dos despojos do morto. Pela grandiosidade de Heitor expressa em tal Ilíada, a cena descrita pelo poeta seria possível, e o perdão alcançado: “Estava lá Aquiles que abraçava em fim Heitor”.

Os versos “Estava lá Saul, tendo por pajem/Davi, que ao som da cítara cantava [...]”, remete aos “personagens” bíblicos: o primeiro um rei, e o segundo aquele que a princípio foi seu servo. E de um relacionamento amigável, a relação dos dois passa a ser conflituosa devido às perseguições do rei a Davi, realizando, inclusive, diversas emboscadas para matá-lo. Davi, contudo, demonstra ao rei que tivera varias oportunidades de se vingar e de também tirar a vida do rei, se o quisesse, mas não o fez. Tal fato também indica a capacidade de perdoar de Davi e por isso a possibilidade de Saul poder estar no lugar mencionado pelo poeta, um lugar e reconciliação e amor.

Analisando o discurso dos versos “E estavam lá seteiros que pensavam/ Sebastião e as chagas que o mataram” [...], a partir do conhecimento da vida de São Sebastião, percebe-se que aparentemente tal afirmação não possui sentido, visto que não foram as chagas feitas pelas flechas que o mataram. São Sebastião foi morto a bordoadas (pauladas). Sim, é verdade que ele foi flechado por seteiros que eram seus amigos, forçados a cometer tais atos. No entanto, por serem seus amigos, ainda que cumprindo a ordem para matá-lo, eles não o atingiram em lugares vitais do corpo (como mostram as imagens 1, 2 e 3). São Sebastião foi cuidado por uma viúva e depois voltou a enfrentar o rei que o mandou matar, dessa vez a pauladas e não mais por seus companheiros. Dessa forma, a relação dos seteiros e São Sebastião é de lealdade. O verbo pensar possui vários significados, dentre eles “refletir; formar, combinar ideias. Meditar, raciocinar. Supor, cuidar, imaginar, cogitar, planejar.”(15). Pensar as setas que o mataram, talvez expresse o primeiro momento do fato, a preocupação dos amigos seteiros com o colega de arco que ficara ferido atado a um tronco em um campo aberto. Teria encontrado alguém que o ajudasse? Teria morrido mesmo com o cuidado de não o atingir em pontos vitais? Em fim, é possível perceber que em tais versos não há antagonismo, mas cumplicidade, visto que seus amigos foram obrigados a fazer tal ato sob pena de ter o mesmo fim imposto a Sebastião: a pena de morte. Por isso mesmo o perdão está não somente implícito, mas explícito em tal contexto.

Nos versos “Nesse jardim, quantos as mãos deixavam/ Levar aos lábios que os atraiçoaram”[...] Que jardim poderia ser esse? O trecho bíblico a seguir nos deixa uma pista: “Estiveste no Éden, jardim de Deus (...)” (16)

Para analisar melhor o significado desse enunciado, coloquemos os versos na ordem direta de uma estrutura enunciativa: “Quantos deixavam levar as mãos aos lábios que os atraiçoaram, nesse jardim.” Observemos os dois verbos da primeira oração “deixavam levar”. Sabe-se que uma locução verbal se forma geralmente por um verbo auxiliar e um verbo principal e ambos devem expressar uma única ação. O verbo principal deve possuir uma força semântica maior. Saber qual é o verbo principal numa oração nos ajuda a compreender o sentido desta. Os verbos em questão se expressam como uma locução verbal, no entanto, os dois possuem uma carga semântica equivalente. Tal fato pode causar divergência sobre qual deles é verbo principal ou auxiliar. A posição de ambos indica, porém, que o auxiliar é o verbo “deixar”, mais isso não é uma convenção linguística.(17) O verbo “deixar”, nesse contexto enunciativo, pode funcionar como um verbo auxiliar modal. Enfim, a expressão “deixavam levar a mão à boca” pode significar tanto uma agressão, quanto um pedido de silêncio. E se levarmos em conta o todo significativo do poema, esta última hipótese se configura mais plausível.

O verso “Era a cidade exata, aberta, clara: [...]”, parece figurar sozinho. Remete a uma determinada cidade, representando um lugar, uma pátria. Pesquisando sobre o significado de cada adjetivo que se refere à palavra “cidade”, encontramos os seguintes sinônimos: “exata” (correta, certa, acabada, perfeita, primorosa); “aberta” (que permite entrar, sair ou ver, por não apresentar obstáculos; desobstruído); “clara” (brilhante, fulgente, transparente).

A palavra “aberta” lembrou-me de uma leitura que fiz há alguns anos, numa obra de Jean-Yves Leloup (18). Nela há um pequeno capítulo intitulado “O “aberto”. Segundo o autor: “O contrário do aberto é o inferno, sim: o encerramento em nossos próprios pensamentos, em nossas concepções “formadas” que nos impede de ir em direção ao Outro, e em direção ao Totalmente Outro(19) .”(20). No entanto, continua o autor, “antes de entrar no aberto, na libertação, na liberdade, para “respirar à vontade”(21) , há todas essas memórias que carregamos; ao atravessarmos essa porta(22) , elas são lavadas.”(23) . E essa porta a que se refere o autor é a do perdão, simbolizada por ele pela porta do Perdão construída ao fim de uma longa escadaria no Monte Sinai.

Sendo, assim, a partir das pistas reveladas no texto, acredito que essa “cidade, exata, aberta e certa”, que é um “jardim” (verso 8), é o Éden, o Jardim de Deus, a Pátria Original(24) , para onde todos são chamados a retornar e onde se espera que todos alcancem chegar.

Nos versos onze e doze, “Estava lá o arcanjo incendiado / Sentado aos pés de quem desafiara [...]”, quem seria tal Arcanjo? Segundo o cristianismo, existiram somente quatro Arcanjos, os únicos que chegaram a ver Deus. Foram eles: Miguel, Lúcifer, Rafael e Gabriel. Apenas o segundo foi expulso da presença do Deus Criador. O livro do profeta Ezequiel, no Antigo testamento da Bíblia Sagrada, há um trecho que pode remeter à figura do Arcanjo citado no referido poema. Vejamos:

Assim diz o Senhor DEUS: Tu eras o selo da medida, cheio de sabedoria e perfeito em formosura.

Estivestes no Éden, jardim de Deus; de toda a pedra preciosa era a tua cobertura: sardônia, topázio, diamante, turquesa, ônix, jaspe, safira, carbúnculo, esmeralda e ouro; em ti se faziam os teus tambores e os teus pífaros; no dia em que foste criado foram preparados.

Tu eras o querubim, ungido para cobrir, e te estabeleci; no monte santo de Deus estavas, no meio das pedras afogueadas andavas.

Perfeito eras nos teus caminhos, desde o dia em que foste criado, até que se achou iniquidade em ti.

Na multiplicação do teu comércio encheram o teu interior de violência, e pecaste; por isso te lancei, profanado, do monte de Deus, e te fiz perecer, ó querubim cobridor, do meio das pedras afogueadas.

Elevou-se o teu coração por causa da tua formosura, corrompeste a tua sabedoria por causa do teu resplendor; por terra te lancei, diante dos reis te pus, para que olhem para ti.

Pela multidão das tuas iniquidades, pela injustiça do teu comércio profanaste os teus santuários; eu, pois, fiz sair do meio de ti um fogo, que te consumiu e te tornei em cinza sobre a terra, aos olhos de todos os que te veem.

Todos os que te conhecem entre os povos estão espantados de ti; em grande espanto te tornaste, e nunca mais subsistirá.

Confesso que jamais imaginei tal fato. E depois de exaustivas buscas sem quase não crer que encontraria algo, deparei-me com esse capítulo bíblico. Meu pensamento sobre Deus sempre foi de um Ser de Amor. Muitas vezes se crer que o amar é apenas acarinhar, mas corrigir também é amar. Não sei se se pode chamar dureza ou uma decisão definitiva a última expressão do capítulo: “e jamais subsistirá.”. O fato é que, embora as palavras proféticas sejam irredutíveis, o verso poético em questão não apresenta uma destruição total do arcanjo, pois o trecho “sentado aos pés de quem desafiara” expressa não alguém destruído, mas alguém que se rendeu, alguém que reconhece sua pequenez, seus erros, alguém cuja humildade foi resgatada. No caso em questão, embora o conhecimento desse mundo nos deixe subentendido que tal querubim jamais se curvaria a Deus, particularmente sempre guardei em mim a fé talvez tola de que, um dia, ele também se transformaria em amor. De qualquer forma, o autor também parece expressar tal crença, visto que afirma que também “Estava lá o arcanjo incendiado aos pés de quem desafiara”. E a compaixão e o perdão mais uma vez se materializam.

E por fim os versos treze e quatorze “E estava lá um deus crucificado /Beijando uma vez mais o enforcado.” A palavra “deus” surge em inicial minúscula, sugerindo talvez que, estando ainda o filho de Deus limitado ao invólucro humano, ainda não se tornou o Cristo, nem retornou ainda a ser Um com o Pai, o Deus de Amor. Beijar o enforcado pode simbolizar perdão dentro dos evangelhos canônicos, visto que nestes, Judas é apresentado como o traidor, aquele que entregou Jesus aos seus perseguidores em troca de algumas moedas, e o fez com um beijo no rosto. No entanto, analisando esse trecho do poema, a partir do evangelho apócrifo de Judas, registrado por uma fraternidade Rosacruz antiga, tal gesto de Jesus beijando o enforcado, revela um outro sentido: o sentido da gratidão, visto que Judas cumpriu a terrível missão que lhe foi dada.

No Museu de Arte Sacra do Pará há um imenso quadro onde está representado a Santa Ceia. Nele é possível perceber vários símbolos e indícios de significados. Um deles é que abaixo da imagem de Judas está a figura de um cachorro, símbolo de lealdade e amizade. Há também a figura de um gato abaixo de outro discípulo, não sei dizer se Pedro, porém o fato é que, há nessa representação da última ceia, uma menção ao evangelho de Judas, o revelando como o amigo fiel.

Para além de todas essas visões sobre Judas, importa a imagem recriada pelo poeta, de Jesus atado em uma cruz espiritualmente beijando aquele que ou o traiu, ou o ajudou a cumprir sua missão na Terra. Contudo, expressão de união e fraternidade.

Linguisticamente observa-se que o poeta repete por cinco vezes o verbo “estar” conjugado no pretérito imperfeito “estava”. Tempo este que expressa certeza, visto que está inserido dentro do modo indicativo, modo que indica tal semântica. No entanto, embora expresse uma certeza, tal ação verbal parece não se fechar no tempo, como se a ação continuasse, permanecesse. Veja-se que dizer “estava lá” é diferente de dizer “esteve lá”, ou “está lá”. Tal verbo, geralmente se expressa apenas como um verbo de ligação. No entanto, no contexto, o autor dar maior ênfase a este verbo, colocando-o para iniciar as estrofes ou versos do poema, ressaltando a importância de se “estar” no referido lugar.

Quanto à estrutura dos enunciados, os versos do poema, que remete a cada dupla de pessoas ou personagens, se expressam na ordem indireta. Os enunciados, numa ordem direta, ficariam assim:

• Aquiles que abraçava em fim Heitor, secreto personagem que na tenda o torturava, estava lá.

• Saul tendo como pajem Davi, que ao som da cítara cantava, estava lá.

• Seteiros que pensavam Sebastião e as chagas que o mataram, estavam lá.

• Quantos deixavam levar as mãos aos lábios que os atraiçoaram, nesse jardim.

• O arcanjo incendiado sentado aos pés de quem desafiara, estava lá.

• O arcanjo incendiado estava lá, sentado aos pés de quem desafiara,

• Um deus crucificado estava lá, beijando uma vez mais o enforcado.

• Um deus crucificado beijando uma vez mais o enforcado, estava lá.

Contudo, novamente, tal análise estrutural indica que o autor quis dar ênfase ao fato de “estar” em um determinado lugar, e não às pessoas ou personagens em si, nem a suas ações, abraçar, ter, pensar, levar, sentar, beijar, mas “estar” no local apresentado, seja como dádiva, mérito ou destino.

Quanto à escolha e utilização de advérbios ou locuções adverbiais, podemos dividir em dois conjuntos: advérbios e locuções adverbiais que se referem ao contexto apontado pelo poema em si; e advérbios e locuções verbais relativos ao contexto vivido pelos pares de pessoas ou personagens apresentados no poema. Em relação ao primeiro caso, duas ocorrências são percebidas, ambas referentes a “lugar”, aparecendo de forma repetida no inicio dos versos no percurso de todo o poema. São elas: “lá” e “nesse jardim”. No segundo caso, advérbios ou locuções adverbais que remetem ao contexto vivido pelos personagens são: “na tenda” e “aos pés”. Outras palavras subentendidas no texto, desta mesma classe gramatical, e que remetem ao local de cada personagem ou pessoa, no contexto em que estão inseridas são: “no palácio”, “no campo aberto” , “no calvário”. A partir de tais percepções, é possível compreender que tal cidade aberta, exata e clara é um lugar de encontro, um lugar onde os tempos e as histórias de cada um se apresentam simultaneamente, independente do tempo em que ocorreram, porque todos os fatos e momentos destes se misturam-se, ainda que singularmente, concomitantemente.

2.0. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse despontar da madrugada, deixo o pensamento voar na materialidade da escuridão e mergulho em divagações... Imagino Mario Faustino fechando algum livro em uma dessas noites de boa solidão... Seria a bíblia ou algum livro filosófico ou teológico? E acordado, enquanto todos dormem e as estrelas cintilam em silêncio no firmamento, seu pensamento divaga livre no tempo. E começa o bom combate entre Homo e Mundus. E do negro espaço onde vivemos, deixa-se conduzir pelo facho de luz da poesia que revela pouco a pouco o poema... E escreve, traduz, escreve, absorto em seu especial nirvana... Nesse instante, imerso talvez em pensamentos gnósticos sabe que o Edén ainda existe, sabe que a Pátria Original nos aguarda, e emitindo o seu chamado, espera de todos a chegada. E "nesse jardim" todos devem se encontrar em corpo, espírito e alma sã, inclusive a derradeira estrela, a estrela da manhã.

2.0.REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BÍBLIA SAGRADA. Ezequiel 28:11-19. Disponível em: < https://www.biblia online. com.br/acf/ez/28>. Acessado em: 21.04.2016.

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CASTRO, Pedro de. Generais, semideuses e amantes. Disponível em: <http: //www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/generais-semideuses-e-amantes-deylm2tmb7nle6sn48mqvhg7i>. Acessado em: 05.04. 2016.

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GADAMER, Hans_Georg. Hermenêutica da obra de arte. Seleção e tradução, Marco Antonio Casanova. São Paulo, Editora WMF Martins Fontes, 2010.

GANDRA, José Ruy. Heitor e Aquiles. Disponível em: https:<//gandra. wordpress.com/patrio-poder/heitor-e-aquiles-2/>. Acessado em:05.04.2016.

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LELOUP, Jean-Yves. O aberto. In: Se minha casa pegasse fogo, eu salvaria o fogo. Tradução: Maria Leonor F. R. Loureiro. São Paulo: Editora UNESP; Belém, PA: Editora da Universidade Federal do Pará, 2002.

SUPERINTERESSANTE. Calcanhar de Aquiles: lenda grega explica origem do ponto fraco. Disponível em: <http://super.abril.com.br/comportamento/ calcanhar-de-aquiles-lenda-grega-explica-origem-do-ponto-fraco>. Acessado em: 05.04.2016.

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(1)Trabalho apresentado ao Programa de Mestrado da Universidade Federal do Pará, disciplina Estudos do Poema, ministrada pela Professora Doutora, Lília Chaves, como parte avaliativa.

(2) Bacharela em Artes Visuais (UFPA/2014); Licenciada em Artes Visuais (UFPA/2013); Especialista em Abordagem Textual (UFPA/2009); Licenciada em Língua Portuguesa (ESAMAZ/2007).

(3)BOSSI, Alfredo. A poesia é ainda necessária? In: BOSSI, Alfredo. Entre a literatura e a história. São Paulo: Editora 34, 2013.

(4)LELOUP, Jean-Yves. Se minha casa pegasse fogo, eu salvaria o fogo. Tradução: Maria Leonor F. R. Loureiro. São Paulo: Editora UNESP; Belém, PA: Editora da Universidade Federal do Pará, 2002. p. 48.

(5)RICOEUR, Paul. O único e o singular. Tradução: Maria Leonor F. R. Loureiro. São Paulo: Editora UNESP; Belém, PA: Editora da Universidade Federal do Pará, 2002. p. 67.

(6)GUINSBURG, J (Organizador). Mario Faustino: POESIA-EXPERIÊNCIA. São Paulo, Editora Perspectiva, 1977, 39.

(7)GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica da obra de arte. Seleção e tradução, Marco Antonio Casanova. São Paulo, Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 1.

(8) FIORIM (1990, p. 1).

(9) RICOUEUR, Paul. Libertar o fundo de bondade. Disponível em: < http://www. taize.fr/pt_article1719. html >. Acessado em: 09. 11.2015.

(10) Dalai-lama ver os chamados “inimigos” como nossos melhores mestres.

(11) DALAI-LAMA. A compaixão universal. Tradução: Maria Leonor F. R. Loureiro. São Paulo: Editora UNESP; Belém, PA: Editora da Universidade Federal do Pará, 2002, p. 59.

(12) PRESTES (2001) cita GRANATIC (1995, p.19).

(13) GUINSBURG, J (1977, p. 61).

(14) Conferir em: <https://gandra.wordpress.com/patrio-poder/heitor-e-aquiles-2/>.

(15) DICIONÁRIO ONLINE DE PORTUGUÊS. Disponível em: <http://www.dicio.com.br/pensar/>.

(16) BIBLIA SAGRADA. Ezequiel 28. Ver também gênesis.

(17) Para melhores esclarecimentos gramaticais, ver exemplos no seguinte link: <https://ciber duvidas.iscte-iul.pt/consultorio/ perguntas/a-conjugacao-perifrastica/11626>.

(18) Doutor em Filosofia, Psicologia e Teologia.

(19)Totalmente Outro é a maneira que o autor se refere a Deus.

(20) LELOUP, Jean-Yves. Se minha casa pegasse fogo, eu salvaria o fogo. Tradução: Maria Leonor F. R. Loureiro. São Paulo: Editora UNESP; Belém, PA: Editora da Universidade Federal do Pará, 2002, p. 37.

(21) Sentido da palavra “salvação” em hebraico.

(22) O autor fala sobre o perdão, vivência necessária para se entrar no Aberto. Faz essa reflexão a partir de uma imagem que lhe é apresentada durante uma entrevista realizada por Edmond Blattchen: a Porta do Perdão, segundo a tradição sinaita, no cume do monte Sinai.

(23) LEPOUP, p.35.

(24) O pensamento Rosacruz, expresso em suas doze cartas, crer que todos nós somos chamados a retornar à Pátria Original. Pensamento no qual acredito.

(25)Grifo meu.

(26) BÍBLIA SAGRADA. Ezequiel 28:11-19. Disponível em: < https://www.bibliaonline.com.br/acf/ ez/28>. Acessado em: 21.04.2016. (Grifo meu).