Espíritos do Rio Negro, I parte: Pedradas, ameaças e vultos no ‘Caso Mysterioso’ da Cachoeirinha

Desde os tempos mais remotos e em diferentes sociedades, homens e mulheres desenvolvem relações com o sobrenatural, este definido como um plano que escapa à ordem das explicações físicas e materiais. Essa relação vai se modificando, com maior ou menor intensidade, de acordo com os contextos históricos em que estão inseridos determinados grupos humanos. No texto a seguir será abordada uma série de fenômenos considerados sobrenaturais, que se tornaram caso de polícia, ocorridos com uma jovem de uma família do bairro da Cachoeirinha, em Manaus, entre agosto e setembro de 1917, sendo o caso amplamente noticiado pelos principais jornais da época. Não se procura, aqui, fazer um julgamento tacanho sobre crenças ou não crenças, mas sim compreender parte da mentalidade daquele período, a repercussão desses eventos na sociedade manauara e a forma como estes foram veiculados na imprensa.

No Arrebalde da Cachoeirinha, o vulto de um homem aterroriza uma família…

- Manáos, 03 de agosto de 1917 -

"Os espíritos, em nossa região, atravessam o Rio Negro para a outra vida. Outros, no entanto, ainda não estão preparados para a travessia, permanecendo presos ao mundo terreno, onde deixaram assuntos inacabados ou simplesmente não queriam partir"...

Na parte de trás da Feira da Cachoeirinha, em uma casa simples imprensada entre outras duas, as quais o tempo já deu cabo, residia a família de Alfredo Alencar, casado, sem filhos, mas na companhia de sua sobrinha, Alice Alencar, de 13 anos. Naquele 03 de agosto de 1917, faziam dias que a família Alencar e a vizinhança se encontravam inquietos por uma série de eventos de natureza desconhecida. Em um puxadinho na parte de trás da residência, dia e noite choviam pedras sobre o telhado de zinco. Além das pedras, Alice Alencar era ameaçada pelo vulto de um homem que se movia em alta velocidade, sendo visto pela jovem e por sua tia no fundo do quintal da casa.

Alfredo Alencar, questionado sobre essa situação, dizia a um jornalista: “Não sei explicar e estou farto de vigiar dia e noite, com os meus visinhos, procurando quem seja, perseguindo e até dando tiros, na direcção de onde partem as pedras o que ora é de um lado, ora de outro”. Nesse mesmo dia, foi capturado um jovem na mata do quintal, o que levou um subdelegado e alguns praças até o local. Estes presenciaram, atônitos, novos apedrejamentos. As autoridades fizeram buscas em todos os terrenos da vizinhança, sem encontrar ninguém num primeiro momento. Rápido silêncio, uma brisa e o reflexo de uma garrafa que ficou em pedaços, na varanda. Um soldado avistou uma figura que, estando cercada, desapareceu.

O Sr. Alencar, vigilante desde o início desses eventos, ainda não tinha visto o vulto, apenas Alice, sua mulher e uma outra parente que, saindo até o quintal, foi acertada com uma pedra por uma pessoa. A Sra. Alencar afirmava que o vulto era de um homem alvo, nem alto, nem baixo e com características italianas. Aparecia hora vestido de branco, hora vestido de preto. Certa vez, ele estava agarrado na cerca do quintal, e a Sra. Alencar o insultou. Ele, sem nada dizer ou esboçar qualquer reação, foi se afastando lentamente até sumir na mata. O único momento em que o homem falou foi quando, através de uma fresta da cerca, com uma arma, ameaçou matar sua sobrinha.

O jornalista perguntou se esse vulto não poderia ser algum admirador de Alice, no que retrucou o Sr. Alencar: “Também desconfiei, mas não vejo fundamento. Além de muito creança e socegada, esse negocio de dia, de noite e as pedradas não pódem fazer suppôr namoros. Demais, o risco em que já está, afasta com a insistencia, qualquer possibilidade”.

Alice, a pedido de seu tio, andou pela varanda, pois o entrevistador era o único que ainda não tinha visto as pedras caírem sobre a casa. Em poucos minutos, a primeira atravessara o telhado. Um soldado da Delegacia foi até o local para saber de mais ocorrências e conter a grande quantidade de curiosos que se amontoavam nos arredores. Para o jornalista, a polícia deveria agir para desvendar esse caso, mostrando não haver nada de sobrenatural, como pensava boa parte das pessoas. Sugerindo a derrubada do matagal do fundo da casa, e a formação de um cerco apertado, estava certo de que o “caso mysterioso da Cachoeirinha” desaparecia de vez.

Bem, pelo menos foi isso que pensou o jornalista do Jornal A Capital…

CONTINUA