A CONSPIRAÇÃO DO SILÊNCIO E A CULTURA DO SEGREDO

A CONSPIRAÇÃO DO SILÊNCIO E A CULTURA DO SEGREDO: AS ORIGENS E A SINGULARIDADE DO POVO PAULISTA

Hoje, sabemos que a colonização de São Paulo leva um tempero diferente do restante da colonização da América Portuguesa pelo fato d'os paulistas adotarem a nova terra como nenhum outro povo fez. Criou-se uma língua própria, costumes únicos e um amor que se viu pouco nos outros lugares de colonização portuguesa. ¹ Mas o que levou esses europeus - portugueses, flamengos, franceses e outros ⁷ -, a atravessarem um oceano e a adotar como lar definitivo um lugar tão inóspito e desconhecido como as florestas paulistas? A pesquisadora polonesa Anita Novinsky responde: a ânsia de liberdade, a sede duma terra livre e justa. ²

Pra que se possa entender melhor, é preciso romper com aquilo que comumente é aprendido na escola. Os que vieram pra São Paulo não vieram explorar pra em seguida ir embora. Nossos ancestrais vieram fugidos de Portugal, atemorizados pela Inquisição. Os primeiros paulistas eram judeus praticantes ou cristãos-novos (judeus já cristãos, mas assombrados pelo fantasma do «sangue impuro»). ¹ O próprio Martim Afonso de Sousa não só era descendente do rei Afonso III de Portugal por linhagem bastarda, mas se acreditava ter sangue de cristão-novo advindo da sua avó paterna. Essa hipótese nunca foi confirmada, mas tal fama existia já entre seus contemporâneos. O que se sabe com segurança é que esse pioneiro de SP era amigo e protetor dos cristãos-novos. O pesquisador Marcelo Bogaciovas afirma que Sousa tenha facilitado a vinda de conversos pra capitania de São Vicente, em grande escala, sabendo que as novas terras poderiam se converter em refúgio distante da metrópole, onde a Inquisição era mais presente. ³ Novinsky ainda postula que pra esses cristãos-novos São Paulo se converteu na Terra Prometida. ¹

Durante o domínio espanhol, o receio em relação aos paulistas cristãos-novos era notório, constando na Real Cédula de 1602 o desprezo pelas gentes que «an entrado por el rio de la plata y otras partes con los navios de los negros y cristianos nuebos y gente poco segura en las cosas de nuestra santa fee Catholica». ⁸

[tradução: entraram pelo Rio da Prata e outras regiões com os navios dos negros e cristãos-novos e gente pouco firme nas coisas da nossa Santa Fé Católica]

Até mesmo a maior figura da época colonial, a quem não só São Paulo deve muito, mas também o Brasil e Portugal, era judeu. O valente Raposo Tavares foi de São Paulo, ao sul e ao Amazonas, percorrendo e cruzando o trópico de Capricórnio e a linha do Equador em suas várias expedições. Esse homem era um explorador, um revolucionário, um político e um idealista e em seus feitos não teve quem o superasse na história do Novo Mundo, segundo o historiador português Jaime Cortesão. ⁴ Nas palavras de Júlio Mesquita Filho, esse é o herói duma das mais famosas façanhas de que guarda memória a história da humanidade. E o motivo de seus feitos terem sido relegados ao esquecimento por séculos e ainda serem discriminados pelos historiadores? O antissemitismo e o antijudaísmo.

Os paulistas se acercam da liberdade desde tempos imemoráveis, seja do jeito que for. No começo de tudo, era defendendo a liberdade de cada homem resistir a uma religião imposta pela força. Os jesuítas das Missões estavam vinculados à feroz Inquisição de Lima, braço da Igreja de Roma que julgava e combatia toda ameaça e heresia à fé católica na parte sul dos domínios espanhóis, e serviam como seus comissários. Esses padres eram encarregados de perseguir e prender os paulistas por seus «horrendos crimes», ou seja, o ódio e a violência dos Bandeirantes contra os jesuítas não era gratuito e não era por motivos econômicos, e sim por defesa. Eles representavam a Inquisição, órgão que feria a dignidade humana e a que os paulistas se opunham ferozmente. Enquanto São Paulo esteve sob o jugo da Espanha, os homens da Companhia de Jesus enviavam anualmente cartas a El Rey pra contar sobre os crimes dos Bandeirantes, acusando-os de matarem súditos reais impiedosamente. Esses senhores criaram a uma «lenda negra» em torno de nós, paulistas, baseada em falsas provas. Tal lenda paira até hoje sobre a nossa história. ⁵

E por que isso só se faz público agora? Porque os paulistas, assim como os portugueses, viviam a «cultura do segredo». Os que rompiam com isso eram os jesuítas ao nos denunciarem, que lembravam sempre que pudessem que os paulistas eram «judeus secretos» ou que «eram cristãos, mas agiam como judeus». Em carta ao rei Filipe IV de Espanha, Francisco Vasques Trujillo declarou que os paulistas eram «falsos cristãos».⁶ Já o Padre Antônio Ruiz de Montoya, dito maior inimigo dos judeus, dizia que os paulistas eram autênticos aliados de Satanás. Nas crônicas jesuíticas os Bandeirantes eram ainda chamados de corsários, piratas, bandidos, facínoras, bestas, feras. Ainda hoje historiadores sul-americanos compram essa fábula. Não podemos aceitar sem discussão as fontes jesuítas, pois eles manipulavam seus escritos de acordo com os fins que desejavam alcançar, dizem Basílio de Magalhães, Alfredo Ellis Junior, Júlio de Mesquita Filho e Jaime Cortesão. Quem ensinava os índios a odiarem os bandeirantes eram os jesuítas. A iconografia das missões mostrava Satanás como Bandeirante, um homem barbudo, de tipo paulista, agitando as asas. ⁴ Mas, hoje, diz Novinsky, documentos provam que os jesuítas usavam os índios no trabalho braçal e que havia muitos deles que queriam abandonar os domínios da Companhia de Jesus pra virem embora viver com os Bandeirantes. ² Tudo isso se fez público com a abertura do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, onde estão os documentos de toda a história do Império Português.

A disputa dos paulistas com os jesuítas carregava a vontade de um mundo livre. Não aceitávamos nem as palavras, nem as leis de quem repetia que tínhamos aliança com o demônio. E a história não para por aí. Os paulistas tínhamos uma vontade de autodeterminação latente que vez ou outra se manifestava. Em 1639, a Inquisição de Lima ordenou a detenção de Raposo Tavares e enviou um comissário pra buscá-lo. O mensageiro do Santo Ofício foi morto pelos paulistas. ⁵

Não se pode pensar que os jesuítas defendiam a liberdade dos índios por serem a voz dos direitos humanos. No artigo «A Conspiração do Silêncio: Uma História Desconhecida sobre os Bandeirantes Judeus no Brasil», a polonesa Anita Novinsky escreve:

«São falsas também as alegações de que os Bandeirantes eram bandoleiros e impiedosos, pois sua generosidade e capacidade de sacrifício contradizem essas falsas alegações.»

O português Jaime Cortesão repete incessantemente que os jesuítas forjaram os crimes dos Bandeirantes. O ódio aos paulistas era tão grande que o Bispo e o Inquisidor Mor de Lisboa foram contra a independência de Portugal, pois esta dificultaria o julgamento dos paulistas pela Inquisição. ⁵

Os paulistas reprovavam os dogmas exagerados da Santa Mãe Igreja e combatiam as superstições e o facciosismo dos homens da Companhia de Jesus. Porém, é importante esclarecer que a maioria dos Bandeirantes não era judaizante. Eles mantinham alguns costumes e a identidade judaica, mas sem prática religiosa. Eram como os judeus modernos, «judeus sem religião», diz Novinsky. Será difícil saber a dimensão dos costumes judaicos mantidos pelos paulistas devido à cultura do segredo em que a sociedade vivia. O que sabemos é que sob o domínio dos reis portugueses, os habitantes da capitania de São Vicente, Santo Amaro e posteriormente São Paulo sentiam-se à vontade pra judaizar, devido à distância da metrópole e ao grau de autonomia que lhes era dado, devido à falta de riquezas nessas terras. ⁷ Outro ponto importante é que nem todos os jesuítas pensavam da mesma maneira e agiam com o mesmo ódio. Muitos jesuítas portugueses fomentavam e participavam das Entradas dos Paulistas. Entre os castelhanos o apoio aos paulistas acontecia entre aqueles que também eram descendentes de cristãos-novos. ⁵

A diferença de São Paulo e das outras nações da América Portuguesa pode ser explicada pela nossa história e o que aqui foi exposto é de suma importância pro nosso entendimento. Embora as outras regiões do Império Português tivessem a presença do cristão-novo, essa visão marrana do mundo, tão manifesta nas Bandeiras, deu uma característica sui generis aos domínios paulistas. Na sociedade portuguesa, havia duas mentalidades irreconciliáveis. Os cristãos-velhos voltaram-se pra dentro, num conservantismo e falta de inovação que tanto prejudica algumas sociedades até os dias de hoje. Mantiveram sua mente nublada por preconceitos. Os convertidos voltaram-se pra um mundo novo, pras renovações e construções de novos valores, pros avanços da Ciência, das Letras e da Medicina. E hoje, mesmo São Paulo sendo esse recanto cristão que é e tendo recebido imigrantes sem nenhuma ascendência judaica, essa mentalidade marrana permanece e age nas nossas vidas. O espírito singular das Bandeiras e dos primeiros paulistas fez São Paulo ser o que é. O nosso anelo por liberdade nos fez ÚNICOS e não podemos jamais perder as características que nos fazem tão PAULISTAS. E jamais devemos nos calar sobre os nossos feitos e aceitar calados os absurdos que dizem sobre nós. Jamais.

Edição: Diante de algumas respostas, não posso deixar de fazer algumas observações. O texto não pretende excluir ou minimizar o elemento católico na nossa cultura. O caipirismo está cheio de cultura cristã e devoção sobre as quais já falamos aqui na página (a mais recente: http://migre.me/velQh). Não retiramos essas informações sobre a origem judaica dos paulistas apenas dos relatos jesuíticos (já que, «judeu» era nos séculos XVI e XVII a acusação mais comum aos inimigos), mas de diferentes fontes, sejam da Torre do Tombo, dos relatos de viajantes ou de outros lugares. Isso sem contar os costumes que permaneceram, apesar dos séculos. Conforme os séculos passavam, menos judaizante a América ficava. E nesse texto falamos do primeiro e segundo século paulistas. Nos posteriores entram mais elementos católicos e que tanto fazem parte da nossa cultura hoje (fora aqueles que entraram pelos cristãos-novos, que afinal eram CRISTÃOS, apesar da ascendência, e pelos jesuítas portugueses, no começo). Aos que queiram comprovar os dados aqui ditos, por favor, consultem nossas fontes. No futuro, traremos mais sobre o mesmo assunto. Obrigado.

Durante o período de colonização um dos conselheiros reais recomendou ao rei português, que naquela época era um dos reinos mais poderosos do mundo...

Disse-lhe o conselheiro...

“Caso vossa Majestade venha a precisar dos brasileiros, aconselho-vos a se valer dos paulistas, sua bravura e coragem são de tal magnitude, que não temem ao Rei nem a Deus.”