Breve História da Terra no Brasil

BREVE HISTÓRIA DA TERRA, DA PROPRIEDADE

E DA EXCLUSÃO DA PROPRIEDADE NO BRASIL1.

Igino Marcos da Mata de Oliveira (*)

Hoje, mais do que em qualquer outra fase da história do Brasil, temas como reforma agrária, ocupação de terra e agricultura familiar estão presentes nos debates acadêmicos e nos meios populares. Em parte, esta pauta vem sendo estimulada pelos grupos chamados “sem-terras”, que, também em nossa região (Triângulo Mineiro) estão divididos em vários grupos – a título de exemplos podemos citar: o Movimento dos Sem Terra (MST), o Movimento de Libertação dos Sem Terra (MLST), o Movimento Terra Trabalho e Liberdade (MTL), o Movimento de Luta Pela Terra (MLT) e Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STRs).

Esses movimentos existem a menos de trinta anos, mas são responsáveis, pelo menos em nossa região, por 100% das iniciativas que deram origem aos assentamentos de reforma agrária. É possível afirmar isto, porque em todos os assentamentos de reforma agrária do Triângulo Mineiro, as “ocupações de terras” ocorreram antes de qualquer procedimento do Estado (INCRA), ou seja, o Estado age a reboque dos movimentos sociais.

Agindo quase do mesmo modo (organizando camponeses pobres, ocupando latifúndios, exigindo do INCRA que desapropriem os imóveis ocupados e produzindo nas terras desapropriadas), os movimentos conseguiram recolocar na ordem do dia-a-dia a discussão da reforma agrária, dos métodos necessários para que o Estado cumpra a Constituição, e por via de conseqüência lógica, promovam a defesa da agricultura familiar.

Com o objetivo de contribuir para os debates nessa área, pretendemos apresentar, nesse artigo, algumas observações que nos fazem acreditar na legitimidade dos métodos dos trabalhadores rurais sem terras para atingirem a meta da reforma agrária.

Para Tentar entende as “invasões” de terras promovidas pelos grupos de sem terras, deve-se resgatar, ainda que sucintamente, a história da terra no Brasil, bastando citar e refletir, para o efeito deste artigo, o que pensamos ser os seus principais marcos históricos: 01) a “descoberta” do Brasil pelos portugueses e exploração do pau-brasil até 1530; 02”.) instituição das Capitanias Hereditárias entre 1530 e 1536, que ao todo foram 18; 03) a proibição da concessão de sesmarias, pela resolução n°. 76 de 17/07/1822; 04) a promulgação da Lei de Terras (n°. 601) em 1850; 05) a promulgação do Estatuto da Terra, Lei 4.504/64; 06) a Constituição Federal em 1988.

Sendo estes os grandes marcos históricos da terra do Brasil, pode-se concluir que a reforma agrária só passa ser objeto de “preocupação do Estado” em 1964, ou seja, há menos de 50 anos.

Ademais, os outros momentos antecessores a presença do Estado nas questões referentes ás terras brasileiras sempre foram no sentido de concentração destas e de exclusão dos índios, negros e demais categorias marginalizadas. A começar pela “descoberta do Brasil”, que devasta a mata em busca do pau-brasil e promove denominação dos grupos indígenas locais, passando pela instituição das Capitanias Hereditárias e Sesmarias, que estabeleciam verdadeiros sub-reinados a partir da posse da terra e dos direitos “semi-absolutos outorgados pelo Rei aos donatários”.

A política das Capitanias Hereditárias, embora tenha obtido sucesso (do ponto de vista de Portugal) apenas nas Capitanias de São Vicente e Pernambuco, estabeleceu uma cultura de relação do Estado, dos Donatários, dos Sesmeiros, de toda sociedade brasileira com terra, que prevalece, em muitos casos, até hoje. Cultura essa baseada em pelo menos quatro características básicas: grande propriedade, monocultura, trabalho escravo e produção voltada para a exportação de matéria-prima. Isto para não falar nas relações de poder entre os “senhores” (donos da terra) com os trabalhadores escravos (escravos ou não), e da relação do Estado na defesa dos interesses da Coroa Portuguesa e de concessão de privilégios aos latifundiários.

O Sistema das Capitanias e das Sesmarias, como se sabe, não promoveu a distribuição das terras com vista à desconcentração, no entanto, este sistema baseava-se muito na legitimidade da terra por conta do uso e da pose da terra; fato que definia, ao menos, um elemento positivo no sistema colonial implantado, que era, justamente, a obrigação que tinha os Donatários de fazerem suas terras produzir.

A partir de 1822, extingue-se a legislação que regulava as Sesmarias e institui-se o regime de Posse e de Terras Devolutas, o que permitiu, segundo Fábio Alves 3:

A remoção dos empecilhos, tais como a cobrança de foros, morgadio, faz avançar o processo anárquico de apossamento de terras, que corresponde a formação efetiva do latifúndio na história do país, uma vez rompidas as restrições de área e de número de propriedades por detentor de sesmaria, que aquele regime impunha. Esse processo é acentuado na região da expansão cafeeira e muito menos na região açucareira do nordeste. (ALVES, 1995, p.62).

Como se vê este outro marco histórico (extinção da política de concessão de Sesmarias), pela resolução n°. 76 de 17/07/1822, acarreta ainda mais concentração da terra, pois permite aos poderosos “Coronéis” das diversas regiões do país, conforme seus interresses e força política e policial, avançar no uso de terras que muitas vezes já estavam “ocupadas” pela agricultura de subsistência4.

A iniciativa seguinte á referida resolução 76/1822 (que permitia a aquisição de terras pelo simples uso) foi a Lei de Terras, promulgada num espaço de duas semanas em relação à lei que extinguiu o tráfico negreiro. Certamente, não por acaso, visto que, na medida em que o regime escravista começa a se esgotar, é criada uma nova legislação para impedir a população que havia sido escravizada da ocupação do solo rural, que era uma possibilidade da resolução n°. 76/1822.

A Lei de Terras é um referencial da história da terra no Brasil, pois é o “batismo” da propriedade privada rural. Apenas a partir de 1850, com esta lei, é que passa a existir no Brasil a propriedade privada. A Lei de Terras estabeleceu que ninguém mais poderia adquirir propriedade rural, a não ser por meio de compra, fato que, evidentemente condenou a população afro-brasileira a serem “sem terras”.

Foi só em 1964 que, paradoxalmente, o presidente Castelo Branco enviou ao Congresso Nacional o Estatuto da Terra, que fora aprovado no mesmo ano. Certamente, as Ligas Camponesas e os sindicatos rurais que promoviam ocupações de terras influenciaram os militares a proporem um caminho para a reforma agrária diferente do proposto pelo deputado Francisco Julião (líder das ligas camponesas), que pregava “reforma agrária na lei ou na marra”.

As ligas camponesas foram sufocadas pelo regime militar que se limitou a apresentar o caminho legal, mas que não passou de letra morta até o surgimento dos movimentos de luta pela terra acima citados (MST, MLST, MTL, MLT, STRs e outros), que pressionaram o Estado, por meio de ocupações de terras, a realizar a reforma agrária, “tirando esta do papel”.

Ao que parece, desde as primeiras ocupações de terras (depois do desaparecimento das ligas camponesas), o que ocorreu já no final do regime militar, o Estado, por meio do INCRA, passa a desapropriar áreas para a reforma agrária a partir das demandas localizadas, que estouram em forma de grandes ocupações e de acampamentos de sem terras.

Mesmo reconhecendo que 1980 já existia no Brasl um grande número de pequenas propriedades, sabe-se por meio do IBGE, que 2/3 das terras continuam em posse dos grandes proprietários e apenas1/3 com o agricultores familiares.

A excludente história da terra no Brasil, a realidade de pobreza das grandes cidades, a penosa situação dos bóias-frias e a inegável existência de grande contingente de excluídos em todas as regiões do país podem nos fazer entender os motivos que levaram e levam milhares de famílias a arriscarem suas vidas na busca de uma terra para trabalhar. No entanto, vale continuar analisando o último marco da história da terra no Brasil, que é a Constituição de 1988, que, logo no seu Preâmbulo, estabelece o seguinte:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar um o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias , promulgamos, sob a proteção de Deus a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Ou seja, a Constituição de 1988 já em seu preâmbulo, anuncia que está sendo promulgada para assegurar o “exercício dos direitos sociais, e individuais”, o que se revela em vários artigos. No que diz respeito á reforma agrária, vale destacar:

Art. 5° Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes mo país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)XXII – é garantido o direito de propriedade;

XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;

Nestes dois incisos, a Constituição consolida o entendimento de que o conceito de propriedade tem em seu conteúdo o elemento da Função Social da propriedade, ou seja, só existe direito de propriedade quando esta cumpre a sua função social. A função social da propriedade rural está definida no seguinte artigo constitucional:

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende , simultaneamente segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I – aproveitamento racional e adequado;

II – utilização adequada de recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores.

Com este artigo, a Constituição reafirma o princípio, já constante no Estatuto da Terra, de que toda a propriedade rural deverá cumprir sua função social, sob pena de ser desapropriada para fins de reforma agrária quando seu proprietário não cumprir simultaneamente as obrigações estabelecidas no artigo transcrito.

Enfim, em que pese a Constituição Federal Brasileira, consagrar a reforma agrária como um dos meios capazes de promover justiça social brasileira e o bem comum, historicamente, a pressão promovida pelos movimentos sociais tem sido a mola propulsora da reforma agrária do Brasil.

Considerando que o papel dos movimentos de luta pela terra é essencial para a implementação da vontade constitucional, que toda pressão exercida pelos sem terra é dirigida ao estado e que os assentamentos de reforma agrária perseguem os meios para produzir na terra e viverem com dignidade dentro das margens já estabelecida pela constituição, acreditamos na legitimidade dos movimentos sem terra, os quais tem resistido a todo tipo de agressão física e moral e, com paciência, têm esperado por até quatro anos debaixo de barracas de lonas, para, só depois, ajudarem o Brasil a produzir alimentos.

Notas:

1 Apresentando no Seminário Morte e Vida Severina – a história da terra na história e na literatura, promovido pela Associação Educacional Paulo Freire, UFU e Cenafro, dentro das atividades do Pré-vestibular para negros(as) e afro-descendentes.

2 Alves, Fábio. Direito Agrário – Política Fundiária no Brasil. Belo Horizonte, 1995. Del Rey, pág. 35

3 Alves, Fábio. Direito Agrário – Política Fundiária no Brasil. São Paulo: Del Rey: 1995.

4 FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. 27 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2000.

igino marcos
Enviado por igino marcos em 25/10/2007
Código do texto: T709480