PLATÃO LEITOR DE HOMERO: o conflito entre Poesia e Filosofia

A UNIÃO DE EROS E PAIDÉIA: A INTELECTUALIZAÇÃO DA PAIXÃO

“Sócrates diz que Eros é sofista, Safo (que ele é)

tecelão de mitos.

Sócrates é perturbado por Fedro, enquanto o co-

ração de Safo é agitado por Eros, como o vento, na

montanha, caindo sobre os carvalhos”.

(Maximus Tirius, Dissertationes, XVIII)(1)

As paixões não atraem os filósofos? Por conseguinte, escrever é conveniente? É decente escrever?

Nos escritos do jovem Walter Benjamin, o antigo conflito entre expressão poética e discurso filosófico aparece desse modo:

“Lo más grotesco de la figura de Sócrates es que este hombre tan poco entregado a las musas trazó el centro erótico de las relaciones del círculo platónico .(...) Sócrates construye el eros para ponerlo al servicio de sus propios fines.” (Benjamin 1993, p.175)

Sabe-se, historicamente, que a Poética é reprovada pela Filosofia, desde o aparecimento, na Grécia clássica, da “Filosofia das Idéias” socrático-platônica: efeito encantatório; “nós” do encanto e da sedução; vertigem auditiva... O filósofo Platão investe contra o fundador – o poeta Homero - da “Paidéia” (En-cyclós) do saber coletivo - mergulhado na oralidade da milenar experiência grega fundada na tradição oral. O aedo Homero é, então, convocado, na “República” platônica, sob a censura da filosofia racionalista de Platão (2):

“_ Aqui entre nós (porquanto não ireis contá-lo aos poetas trágicos e a todos os outros que praticam a mimese), todas as obras dessa espécie se me afiguram ser a destruição da inteligência dos ouvintes, de quantos não tiverem como antídoto o conhecimento da sua verdadeira natureza.”

(Platão 1987, p.451)

Platão condena, assim, as ações representadas por imitação, isto é, por mimesis:

“Esse é o campo do não-racional, das emoções patológicas, dos sentimentos irrefreáveis e instáveis, mediante os quais sentimos, mas não refletimos. Quando cedemos a esses estados, eles podem enfraquecer e destruir aquela faculdade única, a racional, na qual se funda a esperança de salvação pessoal e também de garantia científica. A ‘mimesis’ acabou de ser aplicada ao conteúdo do discurso poético. (...) Ela é agora o nome da identificação pessoal ativa mediante a qual o público estabelece uma empatia com a representação. É o nome da nossa submissão à sedução...”

(apud Havelock 1996, p.43)

Nesse caso, para Platão, a força do mito deve ser controlada:

“‘Meu caro Homero, se, relativamente à virtude, não estás afastado três pontos da verdade, nem és um fazedor de imagens, a quem definimos como um imitador, mas estás afastado apenas dois, e se foste capaz de conhecer quais são as atividades que tornam os homens melhores ou piores, na vida particular ou pública, diz-nos que cidade foi, melhor administrada, (...) grandes e pequenas, devido a muitos outros?...’” (Platão 1987, pp.459-60)

Nada do gênero poético! Eis a palavra de ordem platônica. Pelo banimento da poética da República platônica, da Cidade Ideal! Entretanto, com referência ao diálogo “Fedro” (3) ou “Da Beleza” (de Platão) as incongruências se acumulam. No início do diálogo, o jovem Fedro, vacilante, tem nas mãos “algo venenoso”, isto é, um texto escrito (um “phármakon”) do discurso sofístico de Lísias – o último é sofista e mestre de retórica. É, também, logógrafo, isto é, redator de discursos, além de publicano ou corretor de fundos de investimentos.

Para os gregos, a escrita é “phármakon” (ou remédio), é descaminho, é droga que cura ou mata, é veneno, filtro. Assim, na “República”, ou melhor, na Paidéia (4) platônica a escrita induz ao descaminho, ao erro.

Por outro lado, consoante ao acúmulo de ambigüidades no diálogo “Fedro”, paradoxalmente, linhas à frente, Sócrates - expulsor dos mitos da pólis grega! -, visando condenar a escrita, recorre a dois mitos nas páginas do “Fedro”: ao deus egípcio Thot (deus da escrita) e ao mito das cigarras (?!) (5). Nesse momento, Benjamin, jovem leitor da filosofia socrático-platônica, interfere nos seguintes termos:

“? Qué ha pretendido Platón con tales diálogos? Sócrates es la figura por la que Platón hereda y recibe los viejos mitos. Sócrates: sacrificio de la filosofía a los dioses míticos que exigen sacrificios humanos. En medio de la terrible lucha la joven filosofía intenta afirmarse en Platón (véase F. Nietzsche, ‘La gaya ciencia [aforismo], 340).”(6) (Benjamin 1993, p.175-6)

NOTAS

1. Cf. FONTES, Joaquim Brasil. “Eros doceamargo”. In Fragmentos, v.4, no.2, pp.107-113 [s.d.].

2. Antes de se envolver com a filosofia socrática, o jovem Platão era poeta, e excelente poeta! Ele foi “desencaminhado” para o campo da Filosofia por seu mestre, isto é, Sócrates. Sim, Platão era excelente poeta! haja vista a beleza dos versos que seguem abaixo, cuja autoria é do jovenzinho Platão:

“Jogo-te uma maçã; e se de coração me queres,

dá-me, ao recebe-la, tua virgindade;

mesmo, prouvera não, que sintas de outro modo, aceita-a

e pensa em como a beleza dura pouco.

Eu, a Laís que altiva riu da Grécia, eu que tivera outrora

amantes jovens em penca à minha porta,

dedico à Afrodite este espelho, pois não me quero Ver

como sou e não me posso ver como era.

Pelo simples fato de eu ter dito que Aléxis é belo*,

olham-no todos e por toda parte o admiram.

Coração, por que apontaste o osso aos cães? Para sofreres

depois? Não foi assim que nós perdemos Fedro?

Sou a tumba de um náufrago; a da frente, de um lavrador:

tanto no mar como em terra a morte embosca-se.

Os astros contemplas, Astro meu. Prouvera eu fosse o céu

para poder te contemplar com muitos olhos.

Nove são as Musas, dizem alguns. Quanta negligência!

Eis aqui a décima: Safo de Lesbos.

Cala-se a rocha boscosa das Dríades, a fonte a tombar

da penha, o balir dos anhos recém-nascidos;

o próprio Pã está soprando na sua flauta melodiosa,

correndo os lábios jeitosos pelas canas juntas;

à volta dele, com seus pés juvenis, começam a dançar

as ninfas das árvores e as ninfas das águas.”

PLATÃO ( 428/27? a.C a 347 a.C)

3. Sócrates nada escreveu, pois, para o referido filósofo, a escrita é algo silencioso, visto que ela tem necessidade da ajuda do autor. Nesse caso, a escrita não é capaz de se defender. Assim, para Sócrates e Platão (quanto ao último, tornou-se o responsável pela transcrição dos diálogos socráticos) a escrita é o mesmo que LER NA AREIA E ESCREVER NO MAR. Por outro lado, é comum afirmar que a única obra genuína e indiscutivelmente platônica é: “As Leis, ou da legislação e epinomis”. Tradução Edson Bini. Bauru/SP: Edipro, 1999. Por fim, nos diálogos socrático-platônicos, Platão é quem dialoga – sempre “pela boca” de Sócrates!

4. Entre os antigos gregos, projeto educacional que visa alcançar o conceito de educação integral do homem, isto é, PAIDÉIA é a formação do homem “da cabeça aos pés”. Para maiores esclarecimentos, consultar a monumental obra intitulada “Paidéia: a formação do homem grego”, de Werner JAEGER. Tradução Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1986.

5. Sobre a problematização desse tema, consultar o consagrado texto de Jacques DERRIDA “A farmácia de Platão”. São Paulo: Iluminuras, 1991.

6. “Um Sócrates moribundo. (A GAIA CIÊNCIA: aforismo 340):

‘_ Admiro a bravura e sabedoria de Sócrates em tudo o que ele fez, disse _ e não disse.

Esse zombeteiro e enamorado monstro e caçador de ratos de Atenas, que fazia estremecer e soluçar os jovens mais altivos, não era somente o mais sábio dos tagarelas que houve: ele tinha a mesma grandeza no calar. (...)

Mas, se foi a morte ou o veneno ou a devoção ou a maldade _ algo lhe soltou a língua naquele instante e disse: ‘ Ó Críton, devo um galo a Asclépio’. Essa ridícula e terrível ‘última palavra’ significa, para aquele que tem ouvidos: ‘Ó Críton, a vida é uma doença!’ Será possível! Um homem como ele, que viveu sereno e diante de todos os olhos como um soldado _ era pessimista! Sócrates, Sócrates, sofreu com a vida! _ Ai, amigos! Temos de superar também os gregos!” (Nietzsche 1987, p.164).

(* o homoerotismo era prática comum entre os antigos gregos)

BIBLIOGRAFIA

BENJAMIN, Walter. “La metafísica de la juventud”. Traducción Luis Martínez de Velasco. Barcelona: Paidós, 1993.

BENJAMIN, Walter. “Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura”. Tradução Sergio Paulo Rouanet. In ‘Obras Escolhidas I’, v.1, São Paulo: Brasiliense, 1985.

DERRIDA, Jacques. “A farmácia de Platão”. Tradução Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras, 1991.

FONTES, Joaquim B. “Eros tecelão de mitos: a poesia de Safo de Lesbos”. São Paulo: Estação Liberdade, 1991.

____. “Variações sobre a lírica de Safo: texto grego e variações livres”. São Paulo: Estação Liberdade, 1992.

HAVELOCK, Eric. “Prefácio a Platão”. Tradução Enid Abreu Dobránzsky. Campinas, SP: Papirus, 1996.

HÉBER-SUFFRIN, Pierre. “O ‘Zaratustra’ de Nietzsche”. Tradução Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.

HOMÈRE. “L’Odyssée”. Traduction de Mme. Dacier. Paris: Librairie Garnier Frères, [s.d.]

HOMERO. “Odisséia”. Tradução Jaime Bruna. 13 ed. São Paulo: Cultrix, 1994.

NIETZSCHE, F.W. “Ditirambos de Diónisos”. Tradução Manuela Sousa Marques. Lisboa: Guimarães Editores, 1993.

NIETZSCHE, Friedrich W. “Obras incompletas”. Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho. 2 v. 4 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

PAES, José P. “Poemas da antologia grega, ou palatina: séculos VII a.C a V a.C.” Seleção, tradução, notas e posfácio José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

PLATÃO. “A República”. Tradução Maria Helena da Rocha Pereira. 5 ed. Lisboa: Fundação Calouste, 1987.

PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS

Campinas, é Natal de 2005!