A distinção entre filmes ficcionais e não-ficcionais: O documentário como representação da realidade

A DISTINÇÃO ENTRE FILMES FICCIONAIS E NÃO-FICCIONAIS: O DOCUMENTÁRIO COMO REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE*

Ulisflávio Oliveira Evangelista* (UCDB) – profulis@ucdb.br

RESUMO

O presente artigo visa explanar o dualismo existencial na classificação fílmica – ficcional e não-ficcional, apresentando as principais diferenças defendidas por essas duas categorias. De modo mais específico, partindo de uma investigação semiótica, pretende-se apresentar o filme não-ficcional – vídeo documentário – calçado pela semiótica americana desenvolvida pelo matemático, cientista, lógico e filósofo norte-americano Charles Sanders Peirce (1839-1914) inserida dentro de um contexto de realidade.

PALAVRAS-CHAVE Filmes ficcionais, Filmes não-ficcionais, Documentário e Semiótica;

INTRODUÇÃO

A difícil tarefa de pensar na construção de um documentário inicia-se justamente num entendimento mais complexo e estrutural sobre o que é um documentário. Compreender esse estilo simplesmente como uma representação de uma dada realidade por uma dada pessoa me parece muito simplista.

Quando pensamos na (r)evolução dos veículos de comunicação de massa e nas mensagens por eles produzidas ou transmitidas logo percebemos, no campo audiovisual, uma ruptura existencial de classificação, dividindo-os em: filmes ficcionais e não-ficcionais. Embora, alguns possam pensar numa mistura, numa hibridização dessas duas linhas – por exemplo, através do docudrama – fica mais evidente a distinção desses dois conceitos.

A teleficionalidade ou simplesmente ficção, é uma narrativa que explora elementos tirados da criatividade humana, histórias que podem ter sido vivenciadas por alguém ou simplesmente pensadas, imaginadas. Pode-se trabalhar também a adaptação de uma situação já existida, por exemplo, através de livros. A ficção enquanto estrutura, precisa – obrigatoriamente – de um roteiro ou script que reúna todas as informações necessárias para a concretização da obra. É nesse roteiro que os personagens são desenhados, construídos, é lá que eles ganham vida. A fala – uma das mais difíceis tarefas desse processo – tem que ser natural, autêntica, real. Todos esses elementos juntos formam um roteiro. E é com base nesse complexo de informações que o filme começa a ganhar um molde, as cenas ficam aptas para serem gravadas ou “rodadas”, pra só depois disso ganhar uma organização, um sentido, uma montagem.

Um outro ponto importante da teleficionalidade ou ficção é o aspecto da serialidade, ou seja, o fato dessa história poder ganhar capítulos, episódios, uma divisão que proporciona “alongar” a narrativa e, por conseqüência, um outro meio para “fidelizar” o seu público, através de algumas regras, como a padronização de dia e horário, além é claro, da emissora.

Já, quando falamos em produtos não-ficcionais, como o documentário, as características são alteradas. Embora o processo de construção da mensagem passe por quase todas as etapas dos filmes ficcionais, sua linguagem é radicalmente distinta. No documentário, por exemplo, mesmo existindo um roteiro, esse não é totalmente controlável, não se pode prever o conteúdo da fala do seu entrevistado. O que existe é a ferramenta do roteiro enquanto um guia, um orientador de idéia ou de seqüência para o seu filme. Evidentemente que isso não é a única diferença entre esses dois filmes. A principal diferença enxergada nessas produções é o apelo dado à realidade, ou pelo menos, a representação dessa. O caráter investigatório e a curiosidade que permeia a alma de um documentarista, que está lá para descobrir algo, entender novos elementos mundanos e o seu entorno, sem dúvida alguma, tem peso nessa linguagem. As personagens existentes nesse filme não representam, simplesmente expressam seus sentidos existenciais, vivem. A natureza desse filme pressupõe a realidade, enxergada por uma lente que faz de conta não existir, que se acostuma aos hábitos e costumes do que está sendo investigado.

DOCUMENTÁRIO

O documentário é um gênero cinematográfico que lida com a realidade. Uma das discussões sobre essa chamada realidade está no fato de, primeiro, essa realidade estar concentrada sob uma ótica, uma posição. Essa posição, por sua vez, é também conhecida como ponto de vista. É justamente esse ponto de vista que garante ao documentarista a sua assinatura, a sua identificação e a sua marca com a produção da obra audiovisual. É importante lembrar que, através desse mesmo ponto de vista que o telespectador compreenderá a mensagem imagética, recebendo-a de maneira fechada, ou seja, através da posição criada pelo documentarista. O assunto abordado – seja ele qual for – passará obrigatoriamente pela ótica do documentarista que dará seus “toques” na construção narrativa da obra audiovisual.

Não se deve confundir que a exploração do documentário caracateriza a verdade absoluta. É preciso compreender o documentário através de uma representação parcial e subjetiva, ou seja, uma representação feita pelo documentarista.

Historicamente, o cinema documental era considerado uma ferramenta de investigação, mas essa concepção foi perdendo terreno e passa a ter uma concepção mais criativa e artística, possibilitando ao público um despertar para esse tipo cinematográfico.

Uma outra discussão ainda pertinente no campo da realidade, pode ser compreendida nos textos do professor Hélio Godoy. Caberá ao documentário uma mensagem imagética que aborda a realidade ou a representação de uma realidade? O que se é discutido é, como garantir que o registro visual (captação) para a construção desse documentário (câmeras cinematográficas, iluminação, microfones, etc) não atrapalhe o desenvolvimento “normal” ou até mesmo “real” da mensagem. O professor Godoy também articula a existência de uma realidade absoluta, maior, que exerce uma certa influência nos animais, em especial nos homens. Para responder esses questionamentos é preciso recorrer a uma ciência nova e fascinante: a Semiótica.

O DOCUMENTÁRIO ENQUANTO REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE

Partindo desse primeiro entendimento, pode-se afirmar que o cinema – enquanto invenção – explorava particularmente esse formato. Ou seja, o que se procurava registrar – com grande esforço – eram situações triviais do cotidiano social. De modo particular, as primeiras imagens exibidas e pagas pela população eram consideradas cinematográficas. O feito dos irmãos Lumière no final do século 19 com as famosas cenas do trem chegando na estação (que aliás, como prova dessa realidade, tal imagem provocou verdadeiro pânico nos expectadores que sairam em retirada com medo do trem) e dos funcionários saindo da fábrica.

Essas imagens – partindo de uma investigação técnica – simples e sem maiores interesses estéticos, inauguraram uma imensa corrente no campo audiovisual. Essa nova corrente, agora dita como “realidade ” foi ganhando seu espaço e criando adeptos no desenvolvimento e exibição dessa “realidade”.

Sobre essa categoria de realidade, é impossível não citar os estudos desenvolvidos por uma nova ciência, conhecida como semiótica, em especial, aquela investigada pelo matemático, cientista, lógico e filósofo norte-americano Charles Sanders Peirce (1839-1914) através da Teoria da Realidade e também pela Teoria de Umwelt de Jacob von Uexküll (1864-1944). A semiótica é a ciência que tem por objeto de investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo o exame dos modos de constituição de todo e qualquer fenômeno como fenômeno de produção de significação e de sentido.

A semiótica é uma das disciplinas que fazem parte da ampla arquitetura filosófica de Peirce. Está arquitetura está alicerçada na fenomenologia, uma quase-ciência que investiga os modos como apreendemos qualquer coisa de qualquer tipo, que se apresenta a mente (realidade). Essa quase-ciência fornece as fundações para as três ciências normativas: estética, ética e lógica e, estas, por sua vez, fornecem as fundações para a Metafísica.

Partindo de uma classificação, as ciências para Peirce, divide-se em três grandes classes: a Matemática, a Filosofia e as Ciências Especiais. Na semiótica americana, a filosofia é o ramo das ciências que examina a experiência cotidiana, buscando afirmar o que sobre ela é verdadeiro. Nas palavras de Peirce: “A segunda classe é a Filosofia, que lida com verdades positivas, pois, de fato, satisfaz-se com observações tais como as que são pertinentes à experiência normal e diária de todo o homem, e nas mais das vezes, em toda hora consciente de sua vida”.

Diagrama representacional – cartografia das ciências

1. Heurísticas (ciências da descoberta)

a. Matemática

b. Filosofia

i. Fenomenologia

ii. Ciências Normativas

1. Estética

2. Ética

3. Lógica ou semiótica

a. Gramática. Especulativa

b. Lógica Crítica

c. Retórica Especulativa (Metodêutica)

iii. Metafísica

c. Ciências Especiais

Seguindo, ainda, uma estruturação triádica, a Filosofia por sua vez é segmentada pela Fenomenologia, pelas Ciências Normativas e, finalmente, pela Metafísica. Ivo Assad Ibri aponta que, a Fenomenologia é a primeira das ciências positivas da Filosofia, sendo também conhecida como Faneroscopia ou Doutrina das Categorias (realismo e a concepção categorial do mundo). Para Peirce, por fenômenos ou faneron se entende “o total coletivo de tudo aquilo que está de qualquer modo presente na mente, sem qualquer consideração se isto corresponde a qualquer coisa real ou não”. A Fenomenologia por pretender a formação dos modos de ser de toda experiência ou categorias, parece não poder submeter-se a outro método de que não aquele constituído, fundamentalmente, pela coleta de elementos de incidência notável e pela posterior generalização de suas características.

Ivo Assad Ibri destaca uma consciência de dualidade entre duas coisas: uma que age e outra que reage. Essa é a idéia de alteridade ou alter dentro da Fenomenologia. A partir da idéia elementar de que as coisas não são o que queremos que sejam nem, tampouco, são estatuídas pelas nossas concepções.

Experienciar o elemento primeiro no fenômeno não se caracteriza por um sentimento de dualidade forçado contra a consciência. E na idéia de primeiro, configura-se a categoria que Peirce denomina de Primeiridade. A própria palavra primeiro sugere que sob esta categoria não há outro, ou seja, a experiência que a tipifica não traz consigo a alteridade.

A interpretação vivenciada da experiência, com seu entretecimento geral e na sua identidade com o ego, sugere que Peirce irá estabelecer, de um lado, uma identidade entre a idéia de homem e a idéia de representação geral. De outro lado, a experiência, no seu matiz de alteridade, configurará o universo da segunda categoria, tornando-se fundamento central para o pensamento. Peirce destaca “A idéia de outro, de não, torna-se o próprio pivô do pensamento. A este elemento eu dou o nome de Segundidade”.

Na medida mesma em que somos compelidos a pôr em relação à idéia de ruptura de um tempo interno à consciência com a possibilidade desta ruptura ocorrer, também, ao nível de um tempo objetivo, estamos promovendo a mediação entre duas idéias, por ligá-las em um conceito geral. Este conceito geral surge como um terceiro elemento que não se confunde com aqueles postos em relação. O elemento mediador assim descrito perfaz a terceira e última classe do universo fenomênico, a terceira categoria ou Terceiridade. É explícita a conceituação de mediação sob a terceira categoria: Terceiridade, no sentido da categoria, é o mesmo que mediação.

PRIMEIRIDADE SEGUNDIDADE TERCEIRIDADE

Sentir o vermelho (sem perceber ou se perguntar se ele é o vermelho de alguma coisa). Perceber o objeto que é vermelho (meramente como outro, sem fazer relação). Interpretar o objeto como sendo vermelho (relacionar).

Para Peirce, o signo tem uma natureza triádica, ele pode ser analisado:

a) em si mesmo, nas suas propriedades internas (no seu poder para significar);

b) na sua referência àquilo que ele indica (se refere ou representa)

c) nos tipos de efeitos que está apto a produzir nos seus receptores (nos tipos de interpretação que ele tem o potencial de despertar nos seus usuários).

Dessa forma, é possível compreender a produção de um documentário, utilizando como teoria o arcabouço teórico de Peirce, a representação de uma realidade e não a realidade absoluta. Aplicando sua divisão triádica, é possível determinar a “construção de imagens” enquanto primeiridade; entender que a sequencia de imagens formam um “tipo de produção audiovisual” (documentário) como a segundidade e, por fim, compreender que esse documentário representa a “expressão intelectual de um grupo de pessoas”, por exemplo, na contrução de um video documentário que aborda a cor vermelha sob diferentes óticas e significações. Essa interpretação se apresenta como a terceiridade.

CONCLUSÃO

A proposta de uma cinema não-ficcional como é o caso dos videos documentários não pode ser compreendido como uma verdade única e exclusiva, é preciso compreender essa prática como apenas uma representação de uma dada realidade, sob um determinado ponto de vista.

REFERÊNCIAS

GODOY, Hélio. Documentário, realidade e semiose: os sistemas audiovisuais como fontes de conhecimento. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001.

IBRI, I. A. Kósmos Noétos: A arquitetura metafísica de Charles S. Peirce. São Paulo: Perspectiva, 1992.

NÖTH, Winfred. Panorama da semiótica: de Platão a Peirce. São Paulo: Annablume, 1995.

SANTAELLA, Lúcia. Semiótica aplicada. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002.

SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica?. São Paulo: Brasiliense, 1983.

Ulisflávio Evangelista
Enviado por Ulisflávio Evangelista em 16/05/2008
Código do texto: T992779