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Para atender ao pedido do Recanto das Letras transcrevo uma retrospectiva de vida, pedida recentemente por um ex professor meu, com a intenção de mostrar uma visão holística para os jovens que agora estão começando, de modo que pudessem, de alguma forma, aproveitar com meus erros e acertos.

Assim eu, Almir de Morisson Faria, nascido em 27 de novembro de 1943, filho único de dois médicos, um ortopedista/traumatologista e uma ginecologista/obstetra, cursei em escola pública meu primário (como se chamava na época a escola fundamental). O grupo escolar Dr. Freitas, onde estudei, ficava perto da casa simples onde morávamos e próximo à Santa Casa de Misericórdia e ao Pronto Socorro Municipal onde meu pai trabalhava e eu podia ir a pé para a escola. Nessa época meus pais, que gostavam de música, colocaram-me para estudar piano, onde fiquei por alguns meses. Como era o único menino numa turma de meninas, pedi pra sair. Não foi uma boa escolha, pois hoje sinto falta de uma formação musical mais forte. Ah se naquela época eu visse a música e as mulheres como vejo hoje!

Quando completei a quinta série, fiz o “exame de admissão” para o ginásio (como se chamava o ensino médio naquela época) e passei a estudar no Colégio Moderno onde encontrei o professor Wilton Moreira, que agora me pediu este documento, lecionando História. O Moderno era, no mesmo lugar em que está hoje, longe de casa. Apesar de filho único, e do meu pai já possuir carro, vinha e voltava de ônibus. Acho que saltava em Nazaré e pegava outro até próximo da escola. Foi por pouco tempo, pois mudamos para uma casa melhor na Avenida Nazaré, ao lado do edifício Manoel Pinto da Silva, bem mais perto do Moderno e passei a ir pra aula de bicicleta. Agradeço a meus pais por não terem me tratado como “filho único”, apesar de vigilantes, o que me proporcionou uma visão maior e melhor da vida e de seus perigos na adolescência.

Já naquela época tinha dúvidas sobre qual carreira seguir, já que meus pais eram médicos e por vezes acompanhava meu pai em seus procedimentos. Ocorre que também gostava das ciências exatas e tinha mais facilidade com elas, que dependiam apenas da lógica sem a necessidade de decorar os nomes da biologia e as datas da história. Optei por engenharia, incentivado também pelo melhor professor de matemática que tive, Renato Condurú, sem nenhum demérito para os demais. Foi a primeira opção mais séria que tive de fazer na vida, e não me arrependo. Se tivesse optado por medicina também tenho certeza que seria bem sucedido. Daí em diante, aprendi que podemos escolher qualquer caminho que a vida nos ofereça, desde que o trilhemos com responsabilidade e determinação. Fiz os cursinhos disponíveis na época e passei de primeira no vestibular de engenharia civil de 1961, e em segundo lugar na classificação geral. Mais um agradecimento a meus pais por não terem interferido na minha decisão, puxando a brasa para sua sardinha.

Sempre gostei de estudar e continuei assim no curso de Engenharia. Só que achei necessário aliar a prática à teoria e logo comecei a trabalhar, primeiro como auxiliar de engenheiro no escritório dos doutores (era assim que se chamava na época - e às vezes ainda se chama hoje, mesmo sem doutorado) Osmar Pinheiro de Sousa e Penna de Carvalho. Ainda não sabia, na engenharia, qual a especialidade que iria atuar e, depois de acho que dois anos, fui trabalhar como desenhista no escritório dos arquitetos Ruy Vieira e Delmar Sousa, gostei tanto que até hoje faço, por prazer, vários projetos de arquitetura, dentro das competências do engenheiro.

Em 1965, um ano antes de me formar a vida mostrou novo caminho. Uma central termoelétrica estava sendo construída em Belém (Val-de-cães) e a firma paulista responsável pela montagem da caldeira necessitava de um auxiliar de engenheiro que falasse inglês (pois a caldeira e o fiscal do serviço tinham vindo da Inglaterra). Como eu já havia terminado os 10 níveis do CCBEU e possuía um excelente currículo na escola de engenharia, fui indicado e aceito para o lugar. Foi meu primeiro trabalho de carteira assinada. O engenheiro japonês responsável pela obra fez parceria comigo e começamos a construir galpões em estrutura metálica na cidade. Eu calculava e administrava a obra e ele assumia a responsabilidade técnica, pois eu ainda não era formado. Interessante é que no meu curso de engenharia não existia a matéria de “Estrutura metálica”. O que havia era uma disciplina chamada “Concreto, aço e madeira” onde na realidade só se aprendia concreto. Só que eu tinha uma excelente base de estática e resistência dos materiais, além da facilidade autodidata de adquirir conhecimentos, o que me permitiu desincumbir da tarefa a contento. A construção da caldeira terminou no fim do ano, mas nossa parceria continuou até a volta do Yoshi (era assim o nome do engenheiro) para São Paulo.

Passei alguns meses como desenhista do extinto DNOS (Departamento Nacional de Obras de Saneamento) até me formar, mas logo pedi demissão pela incompatibilidade do serviço com as outras atividades que estava assumindo.

Assim, sem nunca ter pensado em especializar-me no ramo, montei uma fábrica de estruturas metálicas, esquadrias de alumínio e pregos, com mais outros sócios, que funcionou por mais de trinta anos e que teve, em seu apogeu, mais de 150 operários. Construímos, sob responsabilidade técnica direta minha, mais de seiscentos mil metros quadrados de coberturas em estruturas de aço, movimentando mais de seis mil toneladas de aço. Mais uma vez a vida mostrou um caminho novo que não tive receio de percorrer.

Os fatos de, ao termino de meu curso de graduação na engenharia civil, em 1966, ter obtido prêmios da Brasilit e da Importadora de Ferragens como primeiro aluno da turma e a amizade com meus mestres, fez com que fosse chamado para ser professor do curso de engenharia. Recém-formado, passei quase um ano lecionando de graça e mais outros dois recebendo por serviços prestados até que, em 01 de janeiro de 1969 fui contratado como professor assistente pela UFPa.

Em 1975, já com nove anos de formado, casado, pai de um casal de filhos, resolvi fazer mestrado na Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo, uma das melhores do país no ramo de estruturas. Consegui uma bolsa de estudos e a manutenção de meu salário de professor adjunto, partindo com toda a família. Consegui transferência de minha primeira esposa que era médica do INSS e de meus filhos que estavam iniciando os estudos e, após quase dois anos, terminei os créditos. Só faltava a dissertação, que fiz em Belém, a despeito de recomendações contrárias. Voltei a São Paulo com a dissertação pronta, defendi e fui aprovado com a menção “distinção” no certificado. Valeram as dificuldades, pois apesar de imediatamente não ter tido nenhum acréscimo salarial, vi a vida de outra maneira tanto no meio acadêmico como no profissional.

Gostaria de ter feito doutorado, mas não tive oportunidade, pois como ocorre com a maioria dos discentes que se qualificam, na sua volta são convidados a assumir atividades administrativas, com alguma recompensa salarial. Assim, assumi a chefia do Departamento de Estruturas, criei e dirigi um curso de pós-graduação lato sensu em Engenharia de Estruturas e fui Diretor do Centro Tecnológico da Universidade Federal do Pará até 1985.

Em seguida, incentivado por meus pares do Centro tecnológico, fui candidato a vice-reitor em eleição direta e universal e venci, contra a candidata da situação, com mais de três mil votos. Em 02/12/1985 fui designado ao cargo por decreto publicado no DOU. Exerci o cargo por quatro anos sabendo conciliar muito bem as divergências eleitorais. Após a eleição interna na universidade fui convidado por diversos partidos para filiar-me, o que não aceitei. Até hoje não tenho nenhuma filiação partidária. Gosto de ser político, mas tenho ojeriza à politicagem que imperava e ainda impera nos partidos. Tive um pequeno exemplo na eleição da UFPa.

Pedi demissão da Universidade Federal do Pará, por tempo de serviço, em 1993, continuado a trabalhar como professor convidado pelos quatro anos que a lei me permitia, fazendo agora as pesquisas e orientação de alunos que não tive oportunidade de fazer quando voltei da pós-graduação. Em 1999 iniciei trabalho como assessor da Secretaria Especial de Infraestrutura do Estado do Pará. Em seguida assumi a Direção de Construção da Secretaria de Obras do Estado passando logo a seguir a Diretor Técnico. Com a mudança de governo em 2007, os ocupantes de cargos de confiança foram trocados e saí do Estado. De 2004 a 2008 lecionei como professor adjunto no curso de Engenharia Civil da Universidade da Amazonia.

Gostaria de falar um pouco sobre outras atividades importantíssimas, pra não dizer vitais que ocorreram em minha vida. São as ligadas ao lazer, no meu caso principalmente o esporte e a arte, especialmente a música.

Sempre gostei de atividades físicas. Comecei com natação depois vôlei, mas o primeiro esporte que pratiquei de modo mais sistematizado foi Tiro ao Alvo. E não fiz o serviço militar, por opção, pois já era universitário, e mesmo assim fui algumas vezes campeão paraense, peguei um sétimo lugar no campeonato brasileiro de fuzil a 300 metros e até hoje disputo eventualmente torneios de ar comprimido. Com o tiro aprendi a ter mais responsabilidade e controlar melhor as emoções. Apesar de saber atirar não porto arma de fogo e só a utilizo no estande de tiro, em ambiente seguro. Aprendi a acertar o centro no alvo mesmo com as pernas tremendo de emoção, mas perdi o primeiro lugar individual de carabina deitado em um campeonato norte nordeste, pelo simples fato de ser humano. Eram 60 tiros e o atirador do meu lado estava reclamando muito com os juízes. Consegui me abster das reclamações e fazer os 59 primeiros tiros acertando apenas no 10 (centro) e no 9. O último tiro fui traído pela emoção e fiz um oito. Mesmo assim fui segundo individual e vencemos por equipe.

Quando não havia mais espaço seguro próximo à cidade para a prática do tiro, passei para o arco e flecha, que aprendi em São Paulo quando fazia pós-graduação. Era mais fácil de treinar e mais barato, pois a munição (flechas) era reaproveitável. Cheguei uma vez a ser campeão paraense e uma vez terceiro lugar por equipe em campeonato brasileiro. Nunca fiquei muito triste quando perdia nem muito alegre quando ganhava. Estava feliz por participar em pé de igualdade. O resto era consequência. Esse esporte rendeu minha segunda viagem aos Estados Unidos, financiado pela Confederação Brasileira. As outras duas foram pelos Companheiros das Américas ONG da qual fui presidente.

Sempre gostei de música, em especial de MPB, mas só comecei a compor em 1990, já com 47 anos de idade, incentivado pelo amigo Edyr Proença que participava comigo de reuniões musicais regulares desde 1989, em um grupo depois denominado de “Clube do Camelo”. No grupo não havia nenhum músico profissional. Todos os dez fundadores eram diletantes e ganhavam a vida com outras profissões como médicos, engenheiros, professores, advogados, repórteres, administradores, representantes comerciais, químicos, etc... Depois de muitas músicas compostas e tantas outras cantadas achamos que nossa produção precisava ser mostrada ao público e fizemos nosso primeiro CD independente em 1995. Fizemos o segundo em 1997, os dois somente com músicas autorais, cantadas por nós mesmos.

Com a aposentadoria e consequentemente com mais tempo disponível participei de outros grupos musicais como “Namorados Tropicais” desde 2000 e “Estação Seresta” desde 2010. A boa aceitação nos fez realizar várias apresentações em teatros.

Como as músicas do Clube do Camelo sempre tinham surgido com histórias curiosas e interessantes, escrevi, contando esses “causos”, o livro de crônicas “É do Camelo...”, em parceria com Eduardo Queiroz, publicado pela Universidade Federal do Pará em 2002. Fiz vinte e cinco crônicas e o Eduardo vinte e cinco. Juntamos tudo e publicamos o livro. Foi minha primeira incursão na crônica.

Compus, até agora, mais de cento e quarenta peças de Musica Popular, próprias e em parceria, parte com registro de autoria concedido pela Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Fui premiado por minha produção musical com o quinto lugar no “Primeiro festival da Rádio Cultura” pela música autoral “Branquela Custosa” em parceria com Eduardo Queiroz e com o quarto lugar no “Festival da Assembleia Paraense” com a música “Corpo Fechado”, de minha autoria. Recentemente obtive o primeiro lugar da região norte na primeira e segunda fase do projeto “Talentos da Maturidade”, versão 2013, do Banco Santander, modalidade música vocal, para candidatos com mais de sessenta anos.

Talvez essas atividades tenham me dado suporte para vencer, sem maiores problemas, as adversidades por que passei, principalmente as de saúde, como as cirurgias de amígdalas, em criança, apêndice, vesícula e tireoide, já depois dos sessenta, e de ter me livrado de um câncer de próstata com a extirpação total dela e do câncer em 2004 e de um câncer renal em 2016. Fora o estudo genético, acompanhamento rigoroso necessário e a retirada de um dos rins, dizem os médicos que estou totalmente curado, e sem nenhuma sequela grave.

Hoje com mais de 70 anos agradeço a vida que Deus me deu. A felicidade e as dificuldades. A primeira proporcionou-me desfrutá-la e as segundas ensinaram-me saber enfrentá-las. Dois casamentos felizes, cinco filhos - dois meninos e uma menina do primeiro e duas meninas do segundo - e três netos, com uma vida estabilizada, são essas atividades paralelas, junto com meus amigos e minha família, que me sustentam, pois optei por fazer apenas aquilo que mais amo. Não que não gostasse dos caminhos por onde passei, e se voltasse faria tudo de novo, mas quero aproveitar a vida que me resta fazendo o que não pude antes, por estar muito ocupado tentando obter recompensas materiais. Hoje estou ainda muito mais preocupado com o ser do que com o ter. As melhores conquistas são as espirituais. A família, os amigos, meu lazer, mesmo porque, apesar de estar saudável, ativo e disposto (corro cinco quilômetros três vezes por semana, o que muito jovem de 20 anos não faz), ninguém mais quer “um velho de 70 anos” para trabalhar. E, dizem, que se dane a experiência acumulada...