Uma Mulher Brilhante

Via de regra, uma pessoa só se propõe a ler ou escrever sobre coisas que lhe interessam*.

Com este texto, caro leitor**, quero apresentar-te uma mulher muito interessante. É bem provável que já a conheças, que dela já tenhas ouvido falar. Trata-se de uma escritora nascida em Nova York, e por muitos considerada uma das maiores “intelectuais” de seu país. Tenho reservas quanto ao uso da palavra “intelectual”. Para mim soa pedante, distante, imbecil. E não é assim que eu vejo essa mulher. Prefiro então, como a Nélida fez, usar a palavra “brilhante”.

Se bem que ela mesma, essa mulher BRILHANTE, certa vez tenha declarado: “Eu não gostaria de ser professora nem jornalista, e sim escritora, que também é INTELECTUAL.” E isso, creio eu, sem dúvida ela se tornou, digo: escritora. Não conheço bem o suficiente outros dos grandes representantes de sua época, de modo que me reservo a impressão inicial de que ela tenha sido, de fato, uma das MELHORES escritoras de sua geração - em seu país, claro.

Essa mulher, valendo-se de sua fama e de um glamour natural, ajudou a promover outros tantos autores – grandes, porém desconhecidos. Daniel Schreiber, um de seus mais recentes biógrafos, escreveu: “Seus textos mais belos surgiam quando ela deixava de lado o rigor de ensaísta consagrada que sempre foi.”

E um desses textos é justamente um prólogo à tradução de obras de autores latino-americanos, como o nosso genial Machado de Assis (1). Uma Grande Dama, uma mulher que buscou viver de maneira autêntica, crítica e ativa nas questões de seu tempo, e por isso mesmo sempre gerando polêmica em torno de seu nome. Caso ainda não tenhas te ocorrido, leitor, refiro-me aqui a Susan Sontag.

Quem me abriu os olhos ao seu brilho, foi a não menos talentosa Nélida Piñon (2). Independente de fama ou produção, admiro todas as mulheres fortes, determinadas, idealistas, lutadoras, dispostas a conseguirem seu lugar ao sol "duela a quién duela". E essas duas mulheres - Piñon e Sontag - são dignas de serem assim chamadas: “brilhantes”, pois conquistaram tudo isso e muito mais.

Enganas-te se pensas que aqui pretendo endeusar Sontag. De modo algum. Todo ser humano tem defeitos e qualidades, vive uma vida de erros e acertos. Toda pessoa (principalmente se famosa) é suscetível a críticas, pois é impossível agradar a todos ao mesmo tempo. Se bem que Susan... Susan para mim tornou-se especial, sobretudo pela clareza de seu pensamento, o engajamento político, uma visão critica e inovadora. E ela não teve uma vida fácil, de jeito nenhum.

Escolheu divorciar-se e construir uma existência própria, justo numa época em que tal coisa bem poderia arruinar a reputação e a vida de uma mulher. Ela assumiu, lutou e comprovou a condição de mãe solteira, cuidando de um filho pequeno e, ao mesmo tempo, ganhando o sustento dos dois com o próprio trabalho.

Insistiu em investir numa carreira como escritora independente, pioneira em sua época; Teve a coragem de viver abertamente, em âmbito privado, sua sexualidade – teve um relacionamento estável e feliz com a fotógrafa Annie Leibovitz –, porém conseguiu manter discrição por toda a vida pública.

Exímia ensaísta, escreveu para Partisan Review, New Yorker Review of Books, Evergreen Review, Frankfurter Allgemeine Zeitung, New York Times Magazine, The New Yorker e outros, além de revistas como Vogue, Mademoiselle, Harper’s Life, Vanity Fair etc. Publicou mais de vinte livros, inúmeros ensaios, artigos, contos, resenhas. Atuou também em produções para teatro e cinema (artístico).

Militante - apelidada Radical Chic - atuou em protestos contra a Guerra do Vietnã, contra casos de perseguição a escritores – como Salman Rushdie -, contra vários conflitos - como o de Sarajevo -, o que lhe rendeu, além dos prêmios no mundo literário, outros tantos prêmios e homenagens.

Como presidente do PEN-Club americano, Schreiber conta que Susan é apontada como uma das mais bem sucedidas que já ocuparam o cargo. Sabendo dialogar como ninguém com outras culturas, portava-se nos eventos como uma escritora internacional, ao invés de, simplesmente, como uma escritora americana.

Como romancista, ouso dizer que o perfeccionismo muito mais a atrapalhou do que ajudou. Certa vez, ela declarou à sua terapeuta, conta Schreiber: “Tenho medo de não ser boa o suficiente”. Um fato curioso - mas também só isso - é que Sontag jamais concluiu sua tese de doutoramento. Recusou também muitos títulos Honoris Causa que depois, ao longo da vida, várias instituições lhe ofereceram. Isso fez alegando saber o valor de um título de doutor. O porquê disso é segredo que morreu com ela e talvez só as pessoas que lhe foram mais próximas sejam guardiãs de uma tal resposta.

Vislumbrando a obra de Sontag é pouco provável que alguém levante a hipótese de incapacidade acadêmica. Talvez porque, para ela, significasse apenas perda de tempo, ou por razões de sobrevivência (especulo) – viver de bolsa de estudos não é coisa fácil, principalmente para uma mãe solteira.

Sim, mas voltando ao tópico "romances": ao que parece, Sontag lutou a vida inteira para escrever um romance que pudesse, ainda em cem anos, ser lido e aclamado pelas pessoas. Não tenho competência literária, nem conheço sua obra o suficiente ainda para aqui julgar se nisso ela foi bem-sucedida não. Por suas declarações, eu diria que, nesse sentido, ela morreu insatisfeita.

Guerreira. Três vezes lutou bravamente contra o câncer, tendo sucumbido da terceira vez. Como resultado da primeira vitória, Susan trouxe muita luz e esperança a pessoas que sofriam com essa doença. Tendo desafiado as estatísticas – contrariando as chances (mínimas) de sobrevivência – publicou o livro ILNESS AS METAPHOR (1978), onde disseca a causa mortis maior em casos de câncer naquela época: o tabu, o preconceito extremo, a postura dos pacientes ao se entregarem ao destino cruel, aceitando (e sem questionar!) o diagnóstico como sentença infalível de morte.

Uma das coisas que mais me chamaram a atenção na vida de Susan foi uma constante curiosidade por tudo, uma sede de descobrir novos interesses que a acompanhou por toda vida. Lendo o que escreveu o biógrafo Daniel Schreiber, diria que, ao se ver perdendo a luta contra o câncer, muito maior do que o medo da morte, o que mais apavorou Susan foi a constatação de ter ainda tanto por fazer e não ter mais tempo para tal.

A luz física desta mulher, que nesta existência começou a brilhar em 16 de janeiro de 1933, foi apagada em 28 de dezembro de 2004, na companhia do filho e dos amigos mais íntimos, lúcida (como sempre), na cidade de Nova York. Digo a luz física, pois a luz desse espírito questionador, cheio de energia, persiste e ainda hoje alcança todos aqueles que são colocados em contato com a força da vida e dos escritos dessa luminosa mulher.

Obrigada, Susan, por tudo o que tem me ensinado até aqui. Também a você, Daniel, que tão lindamente sua história contou.

Ah, das obras de Susan que já me iluminaram o caminho, a ti, caro leitor, recomendaria:

- Against Interpretation

- On Photography

Referências:

1 - Parte de uma coleção de ensaios publicados sob o título Where The Stress Falls

2 - Leia o texto O Coração Andarilho de Nélida Piñon

Bibliografia:

Daniel Schreiber, Susan Sontag – Geist und Glamour – Biographie, Aufbau Verlag, 2008, ISBN 978-3-351-02649-3

Notas:

* Li algo parecido em algum lugar, não lembro onde. Se bem que essa idéia, a meu ver, é senso comum.

** Uso a forma no masculino por convenção, e também pela convicção de que isso não exclui as leitoras, naturalmente. É só uma escolha para forma de tratamento, sim? Não vá o leitor ou a leitora ver discriminação onde não há. :-)