A Mulher e o Meio Ambiente

Alguns anos antes dos Cientistas convocados pela ONU relatarem as conseqüências catastróficas do aquecimento global, a arqueóloga brasileira, Niéde Guidon, em outubro de 2004, em forma de protesto, envia carta aberta aos seus colegas cientistas e homens do futuro.

A Mulher e o Meio Ambiente

_Plínio Sgarbi

Nascida na cidade de Jaú (SP), aos 73 anos de idade, Niéde Guidon, arqueóloga reconhecida pela comunidade científica internacional, completa, em 2007, 33 anos de pesquisa na região de São Raimundo Nonato, no Piaui. Em 30 anos foram descobertos vestígios concretos da presença dos primeiro Homem maricano na região, datados de até 40 mil anos, incluindo milhares de pinturas rupestres, fogueiras, urnas funerárias e ossadas de animais pré históricos, muitos dos quais estão reunidos no museu da FUMDHAM (Fundação Museu do Homem Americano), do qual ela é diretora.

O resultado de 30 anos de trabalho é um patrimônio cultural cuja importância é igual ao das cavernas de Lascaux, na França, ou as da Austrália, visitadas anualmente por milhões de turistas de todo o mundo. Desanimada de tantas promessas não cumpridas por governos, como o aeroporto, já iniciado e com as obras paradas, que viabilizaria investimentos de grupos hoteleiros e a vinda de turistas brasileiros e estrangeiros trazendo divisas para o cerrado, uma das regiões mais pobres e esquecidas do Brasil, Niéde Guidon, em outubro de 2004, envia carta aberta a seus colegas cientistas. Naquele ano, 60 funcionários da FUMDHAM, que administra o Parque Nacional da Serra da Capivara junto com o IBAMA, foram despedidos por falta de recursos, e poucos guardas tentam coibir depredações, caça e vandalismo, que já tiveram início. Pagando agora com recursos pessoais alguns serviços para manter a estrutura mínima do Parque Nacional da Serra da Capivara e da FUMDHAM, Niéde Guidon tem poucas eperanças de que o país valorize e saiba aproveitar a riqueza cultural e o potencial turístico do que poderia ser uma saída para a miséria da região .

CARTA ABERTA DE NEIDE GUIDON AOS CIENTISTAS E HOMENS DO FUTURO (25/10/2004)

Caro colega do futuro:

Você está quase no final de um século que vi nascer. No exercício de minha profissão, encontrei indícios, vestígios, e propus hipóteses sobre como vivia o Homem do passado, como usava suas ferramentas, como preparava suas armas. Meu caro colega, mesmo não sabendo como você é (talvez uma máquina inteligente), escrevo-lhe como se estivesse dirigindo-me a um Homem. E escrevo-lhe com a emoção de um Homem. Um Homem desse início de século que nos abriga. Caso encontre dificuldade em entender-me, tenho certeza de que poderá recorrer a sofisticados dicionários, a sofisticados programas para computador, que lhe permitirão descobrir o sentido exato das minhas palavras.

No início, todos os Homens viviam como caçadores-coletores. Para adquirir conhecimento e conviver com as outras espécies da natureza, para sobreviver com os parcos recursos biológicos que tinham, esses Homens necessitavam de grande coesão social. O saber era passado dos adultos para os jovens, igualmente. Sabiam que não podiam ter proles numerosas porque, ao contrário dos outros animais, o filhote humano levava anos para aprender e ser capaz de sobreviver só.

Todos executavam todas as tarefas, todos eram iguais. Os chefes comandavam com base em sua força física, que, como todos os recursos biológicos, nasce, atinge seu apogeu e definha. Assim, um chefe exercia seu poder durante um tempo limitado, até que um outro membro da tribo, mais jovem, mais forte, o suplantava. Os Homens temiam a natureza, reconheciam seu poder, um poder que, para eles, emanava de entidades sobrenaturais. E essas entidades sobrenaturais comandavam as águas, os ventos, o fogo, os astros. Seres que viviam por sua conta e cuja passagem pela vida dos Homens era eventual. Os espíritos! Em um momento dado de nossa história, alguém imaginou como fazer para garantir um poder mais duradouro, que não dependesse unicamente dos recursos biológicos. Como a morte é um fenômeno que assusta a todos os animais, esse alguém imaginou uma história que tratava do além, da existência de seres sobrenaturais, da boa vontade dos quais dependeria a vida e o destino pós-morte de todos os Homens. Os Deuses. Nesse momento começaram a se diferenciar os Homens. Aqueles que somente sabiam conviver com a natureza, que dependiam de sua força para sobreviver, e aqueles que tratavam com os deuses: os sacerdotes. Os últimos, constituíam uma casta privilegiada, com poder assegurado. Com o poder assegurado, não tinham mais que enfrentar a vida difícil do dia-a-dia, pois recebiam dádivas daqueles que não tinham o poder de tratar com as divindades.

Mas como os Deuses eram muitos, havia a possibilidade de tratar com seus intermediários, e o poder se diluía. Como concentrá-lo, então? Como colocar mais elementos de uma família, de um clã, no exercício do poder? Novamente um gênio inventou outra forma de poder. Os Deuses escolhiam e davam a um homem o poder para que ele fosse o chefe de todo seu grupo. E esse privilégio passava de pai a filho. Nasceram, assim, as dinastias. O poder concentrava-se cada vez mais. As sociedades começaram a crescer além dos limites permitidos pela natureza, pois, para que alguns pudessem viver sem fazer nada, além de falar com os Deuses e dar ordens a seus súditos, para que pudessem viver em palácios, mergulhados em rendas e comendo iguarias, deveriam existir milhões de escravos, trabalhando para ter direito ao pão, à água e à procriação, engendrando muitos futuros escravos. Templos, túmulos monumentais e palácios, sempre exigiram multidões de escravos para serem construídos e mantidos. Com o aparecimento da escrita, das castas, o saber ficou concentrado naqueles que dominavam. Não era mais todos ensinando a todos. Assim, começaram a aparecer as classes cultivadas e os ignorantes. Sempre poucos letrados para muitos ignaros. E depois? Depois, um novo passo foi dado para concentrar e tornar o poder definitivamente esmagador. Um espírito genial criou o Deus único, engendrou o monoteísmo. Concentrou-se o poder em um homem que representava Deus, infalível, cuja palavra deveria ser seguida sem discussões. Em torno dele toda uma corte, formando uma estrutura triangular, sempre poucos no alto, muitos na base. O judaísmo, o catolicismo, o islamismo, o protestantismo. Cada grupo inventando seu próprio Deus, único, o certo, o bom, o que devia ser adorado. Quem nele não acreditasse, deveria ser exterminado. Poder religioso e seu derivado, o poder civil, nunca se dissociaram. Juntos escreveram páginas com o sangue de todos os que se rebelavam e poderiam representar a menor ameaça a esse estado de coisas. Assim, durante milênios, a sociedade humana acostumou-se com as guerras, com o extermínio dos que pensavam diferente, dos que não queriam se submeter e ser escravos. Guerras pelo domínio das terras e dos povos, das riquezas do mundo. Guerras e perseguições contra os que negavam ou duvidavam do poder divino. Os que falavam da bondade de Deus, de sua misericórdia, eram os que torturavam, mantinham em masmorras e matavam os que ousavam duvidar de sua palavra. Mesmo aqueles que não duvidavam, mas que representavam uma presa interessante, pela sua fortuna, por sua mulher, por suas terras, também eram perseguidos, eliminados. E como o Poder nunca se sacia, quando mais baixo encontrava-se o Homem na escala social, mais filhos deveria produzir. Sempre com a idéia de que, para sobreviver, necessitava de muitas mãos, mãos que o ajudariam a trabalhar e, mais e mais, agradar ao Poder. Assim, vimos Homens torturando, matando, chacinando outros Homens.

Vimos a Idade Média, a Inquisição. A invasão das Américas e o aniquilamento de milhões de seres humanos que compunham os primeiros povos, que partilhavam as terras com todas as outras espécies, que viam o verde das matas e escutavam a algaravia dos bichos.

Em um dado momento, alguém se lembrou de um tipo de governo que havia existido em um pequeno país, criador de uma civilização, onde a cultura era difundida e o povo tinha suas tradições, a democracia. Imediatamente, esse alguém pensou nas possibilidades que ela abriria se fosse implantada em países com elites cultas e massas incultas. O povo acreditou que estava elegendo seus representantes. E, assim, o Poder, ao invés de ter que contentar milhões, teve unicamente de enriquecer, dar empregos e acanalhar os representantes desses milhões, algumas centenas de cidadãos que passaram a integrar um novo Poder. Assim nasceram os políticos, prometendo uma vida maravilhosa para os que nele votassem, mas pedindo que esquecessem o que haviam escrito ou prometido no instante em que se viram investidos de Poder. Vimos agir o nazismo, o fascismo, o comunismo. Homens sendo assassinados em câmaras de gás, fuzilados, torturados. Hiroshima e Nagasaki. Os brancos rejeitando os negros e os amarelos, os negros rejeitando os brancos e os amarelos, os amarelos rejeitando brancos e negros. Os capitalistas. As classes trabalhadoras. E cada vez mais os donos do Poder aprimoravam-se. A transmissão do saber, que havia sido concentrada, que havia passado da Igreja para a Universidade, formando jovens capazes de pensar e protestar, tinha de ser demolida. E a Universidade foi destruída. Ao invés do saber se ofereciam diplomas. O Poder concentrou-se na tecnologia. Os tecnocratas, sem pensar em algo mais sofisticado, menos simplista, ativeram-se apenas às operações necessárias para conseguir que uma máquina executasse uma tarefa específica, que o computador resolvesse determinado problema. Tudo orquestrado para que a necessidade de consumo aumentasse a cada instante, e mais impostos fossem pagos. Impostos que garantiriam educação para seus filhos, saúde para a família, estradas, cidades limpas e seguras, o direito ao lazer. E o Poder recebia os impostos e decidia o que fazer com eles, mudando seus destinos, oferecendo escola de péssimo nível, saúde que significava morte mais rápida, bandidos ameaçando a todos. O Poder podia solicitar empréstimos, aceitar juros extorsivos, quando precisava de dinheiro para uma fantasia qualquer, como construir uma capital nova! Mas quem pagava os empréstimos, mais os juros, era o povo, cujos filhos já nasciam com uma dívida enorme.

O rosário de sandices continuou: abriram a possibilidade para que o Homem fosse diferente dos outros animais de sua família. O Homem poderia viver mais do que seus primos macacos. Que felicidade... Para viver mais, trabalharia mais, e manteria todo o sistema necessário, com isso continuaria arrastando seus males pelo mundo. Num mundo onde só existia espaço para a arrogância, as outras espécies passaram a existir apenas em função das necessidades do Homem. Os animais eram torturados, viviam em pânico, aterrorizados. Por quê? O porquê de tanta atrocidade? É isso que está me perguntando, meu caro colega do futuro? Apenas para produzir mais e para nutrir a espécie que se fez dominante. E não parou por aí, não: milhares e milhares de espécies vegetais foram destruídas, dando lugar apenas àquelas que interessavam ao Homem. Animais e plantas foram modificados geneticamente para aumentar a produtividade. Isso, apesar de continuarem pregando que Deus havia criado o mundo, e tudo o que existia sobre a face da Terra. O Homem corrigia e melhorava o que Deus havia feito! Para culminar, decidiram que nem mesmo os filhos poderiam substituir os pais. O amor ao Poder era tal que criaram a técnica da clonagem, e cada um foi substituído por si mesmo. A reprodução e os riscos de ver nascer um filho que não fosse digno de seu patrimônio ficou relegada aos que não tinham meios para se auto-reproduzir. Destruíram, meu caro colega, a beleza do mundo, o prazer da vida. As primeiras sociedades humanas, pouco numerosas, eram solidárias. A generosidade da natureza podia manter todos saudáveis. As sociedades humanas no início desse nosso século são compostas por bilhões de pessoas. Sociedades, na sua grande maioria, doentes, solitárias. A natureza foi destruída. Todo o alimento tem de ser comprado. A água tem de ser comprada. Os dons da natureza, hoje, têm seus donos: o Poder. O Poder, sob suas inúmeras formas. A competição é a regra da vida, e todos os Homens, mesmo sem ter consciência, odeiam seus semelhantes, potenciais competidores. E a eles atribuem a culpa de não poderem viver melhor.

E o que aconteceu com o Homem? É isso que está querendo saber agora, meu caro colega? Infelizmente, não poderei lhe responder a essa pergunta. Parti há muito. Mas tenho algumas curiosidades a respeito do seu tempo. Me diga: o Sol que o aquece agora é o mesmo que vejo brilhar lá fora, ou ele foi substituído por algo artificial? As geleiras dos Pólos degelaram e invadiram territórios hoje ocupados por populações costeiras? O que restou da camada de ozônio? Ela ainda existe? E a Floresta Amazônica, o que foi feito dela? Esvaiu-se em fogo e fumaça? A caatinga sobreviveu? Ou você nunca ouviu falar sobre ela? Você já ouviu falar em macaco-prego? Já ouviu falar em veados-galheiros, vaga-lumes, bem-te-vis? Em tamanduás? Em tatus, araras azuis e vermelhas, sapos, morcegos, onças, cobras, beija-flores, sabiás? Já conjugou o verbo sonhar, sorrir, acreditar? E as mentes? Conseguiram eles, por fim, dominar todas as mentes? Nesse instante, caro colega do futuro, estendo o meu olhar pelo vastidão do que ainda é um pedaço do paraíso (um pedaço do paraíso chamado Serra da Capivara), que Poderes nada ocultos insistem em ignorar, em destruir, e entrego-lhe este texto para que continue a contar como prosseguiu a nossa história, a história de todos nós.