INFANCIA: Quém é esse menino? Parte 01

INFÂNCIA:

QUEM É ESSE MENINO?

Felipe conta que tinha aproximadamente oito anos de idade e era um menino incomum do ponto de vista tido como padrão na época em que se desenvolvia sua infância contida num certo nível de conturbação interior.

Os fatos que ilustram sua experiência ocorriam no caminho da escola, a qual sempre representou um desafio assustador para alguém extremamente vulnerável física e socialmente dentro de um senário onde se destacava de todos por suas características diferenciadas.

Um floco de neve caminhando sob o sol da manhã em direção a algum lugar, para viver algo que supunha não fazer sentido para uma realidade absurda e paradoxal. O rigor da claridade na pele e nos cabelos sucumbia ao implacável poder dos raios solares, que atacava com intensidade obrigando o nistagmo dos seus olhos azuis a se esconderem sob as pálpebras numa tentativa desesperada de proteger-se. Num desses dias em que isso aconteceu ouviu um grito estridente de uma criança que observava a rua no portão de sua casa alertar ao colega que estava no fundo do quintal, “Pedrinho, vem ver o moleque que dorme! ”.

O trajeto era bem rústico, com altos e baixos, trechos de rua sem asfalto e com muitos buracos, valetas e vielas com mato e lixo entulhado. Em dias secos os carros apressados provocavam poeira forte que impregnava o uniforme, resultando em manchas escuras por causa da reação ao contato com a camisa branca suada. Já nos dias chuvosos e nublados, tudo favorecia sua capacidade de lidar com dificuldades, pois o céu cinzento era um prêmio para dois faróis azuis e tremulantes que se ascendiam a consolar seu cérebro que insistia em querer enxergar ignorando os apelos recessivos de sua retina. Apesar das poças d’água, escorregões na lama e outros inconvenientes, havia um estupor de liberdade que explodia em alegria no âmago do seu ser. O enredo deste deslocamento de casa à escola e o inverso, acontecia todos os dias, algumas vezes em companhia de outros garotos e muitas vezes sozinho.

Quando havia outros meninos na caminhada ficava constrangido pela atitude indiferente da turma ao sair correndo na frente e desaparecer nos atalhos atraídos por qualquer novidade aparente e significante para crianças cheias de energia e curiosidade. Felipe, na impossibilidade de acompanhar aquele dinamismo frenético, recolhia-se ao silencio e cuidado para sobreviver as ameaças físicas e psicológicas do caminho, como, atropelamentos, quedas e outros acidentes.

Ao chegar na escola, alguns minutos antes de bater o sinal para subir as escadas em direção as salas de aula que ficavam no andar superior, no pátio, ainda saboreava o gostinho da solidão que o sufocava ao ouvir os gritos das crianças em plena correria, brincando, gastando energia e se lambuzando das delicias na infância voraz do seu tempo. Não corria, não gritava, não enxergava o suficiente para interagir com os colegas que tinham perfis correspondentes contava os instantes para sair daquela cena tão incomoda, apesar de que na sala começaria outro drama. Precisava sentar-se o mais próximo possível da lousa para tentar perceber e captar qualquer tipo de informação útil referente a aula. O registro auditivo era o mais precioso recurso que dispunha para não se sentir tão prejudicado no rendimento escolar em relação aos outros.

Embora desprovido de habilidade para cativar pessoas, por causa do seu complexo existencial e furor de sua baixa estima, conseguiu despertar o interesse da professora titular para sua situação explicita de carência afetiva. Esperança aproximava-se dele, com olhar quase maternal acolhendo suas expectativas de que alguém pudesse entender suas necessidades sem que precisasse despir-se de todo aparato protetor que usava como escudo para defender-se do mundo indiferente ao desejo que tinha de se integrar, de ser percebido como pessoa, capaz de sentir carinho, amar outras pessoas, doar amizade e compartilhar anseios.

No relacionamento pedagogicamente assertivo, a professora tentava inseri-lo no contexto da aula, através de métodos pessoais e particulares que o auxiliavam no desenvolvimento do aprendizado, fazendo desta forma, com que seus colegas o visem de forma natural e induzidos por ela, rompessem a barreira inicial da resistência a comunicação interpessoal. Ele sentava na linha de cadeira localizada na frente da classe para acompanhar o andamento das explicações e ensinamentos que em muitas ocasiões além de serem escritas na lousa para os outros alunos, também eram simultaneamente verbalizadas para ele pela professora, que o desafiava a escrever na mesma velocidade que ela imprimia o texto no quadro. Alguma informação se perdia, mas ele captava tudo na forma auditiva e posteriormente elencava fragmentos de preciosidades didáticas que intuitivamente recolhia das indagações feitas pela classe e até mesmo por iniciativas individuais de colegas. Aproveitava tudo que julgasse útil para armazenar no seu compêndioso cérebro. Ela buscava aproximação de forma sutil como quem teme assustar um passarinho em pleno devaneio da alma inquieta e impaciente. Seu perfume doce e embriagante lhe desarmava a consciência, levando-o para uma dimensão onde tudo é possível, até se apaixonar pela mulher madura, delicada, envolvente e experiente que consolava até no nome, Esperança. Durante a aula junto com os raios de sol, transposto em uma imensidão de claridade que entrava pela janela lateral ampla, vinha também o som de uma música internacional, muito bonita que foi adotada como tema de sua aventura de amor platônico. Nessa época fazia sucesso no Brasil, o cantor Sharif Dean, com a música, No More Troubles que em português significa (Sem mais problemas), aquele som se perpetuou em sua mente embalando os dias e as horas que aguardava para vê-la novamente. Durante todo o período em que sobreviveu a intempéries de pressões psicológicas e inferno emocional, ela como um anjo o acolhia e protegia, como se tivesse o poder de entender e compartilhar no mesmo idioma suas angustias e expectativas.

As vezes era surpreendido pelas lembranças de outro profissional de educação infantil, conhecido como professor Lourenço que o acompanhou na primeira série do ensino fundamental, cujas cenas vivenciadas deixaram marcas profundas no seu interior, traumas irreversíveis, mas que também se pronunciou num forte legado que acompanhou aquela geração por décadas. A metodologia do professor Lourenço para ensinar caracterizava-se de um modo rude, prático e um pouco grotesco. Em meio a exercícios de treinamento para coordenação motora, tais como, fazer bolinhas com lápis em folhas de caderno de caligrafia ou até mesmo em linhas convencionais, ele incentivava na turma um espirito de competição insólita e implausível em crianças de sete e oito anos. Havia a fileira dos alunos adiantados e a fileira dos alunos atrasados, sendo que entre esses dois extremos situava-se as subclassificações sempre com a intenção de afunilar de forma pejorativa a capacidade de retenção intelectual dos alunos. As punições para quem destoava do padrão pré-concebido de qualificação positiva quase sempre resultava em reguadas, puxão de orelhas e disputas em lutas físicas corporais, que muitas vezes chegavam a agressão física com sangramentos. Esse professor era um ícone de contradição na escola, amado por uns e odiado por outros, pois apesar de suas iniciativas incompreensíveis no desempenho do seu oficio havia também raras manifestações de afeto e empatia com alguns alunos. Sharif Dean & Evelyn D'Haese cantavam Do you love me em 1973 e faziam muito sucesso. Essa música também embalava devaneios e fantasias do garoto criativo, inventor de horas românticas geradas em frações de segundo, quando a bela Esperança surgia na sua mente e lhe proporcionava impressionantes momentos de afeto e erotismo surreais para um menino de tão pouca experiência e limitada capacidade de conquistas pessoais.