Primeira Infância

- Dona Izabel, corre que pegaram a menina! Era um tal de corre aqui corre ali e só me lembro de ser pega pela mão preocupada da "Doiê"

e ser levada para dentro de casa. Ela reclamava, falava, gesticulava, repreendia, e eu não conseguia entender direito o que acontecia. Nem o que houvera acontecido antes. Porque eles me pegaram. "Doiê" é como todos nós, os netos, chamávamos nossa avó Izabel. Me lembro, na minha tenra idade, de ter acontecido isso uma duas vezes. Todos os adultos da familia sabiam que tinham que ter muito cuidado comigo, mas, vez ou outra um descuido, e meus primos me pegavam perto das bananeiras que existiam nos fundos das casas. Só me lembro que me deitavam, e um por um, se chacoalhavam em cima de mim. Hoje, tenho certeza, nem eles sabiam direito o que estavam fazendo. Faziam provavelmente o que houveram visto de soslaio. Nove irmãos, só uma menina, a penúltima, que na época ainda nem havia nascido, e eles, que eram uns cinco. Moravam numa casa de dois cômodos. Quarto e cozinha. E o casal não parava e fazer filhos. Provavelmente nem paravam de brincar de fazer filhos. Tanto que tiveram mais quatro. Meus irmãos, uma mocinha oito anos mais velha e um moço dezesseis anos mais velho, que provavelmente estavam muito preocupados com suas vidas de pre e pós adolescentes. Nessa altura, eu já devia ter um irmão bebê, não me lembro muito claramente. Então, molecada, criançada, eram os primos filhos da tia A, os cinco já citados, e mais dois, os filhos do tio Z, e eu a única menina. Mais os tres filhos dum casal amigo da família, o Seu An e sua mulher. Uma criançada linda, barulhenta e arteira. Acho que acabei de descobrir agora mesmo o porque de, mesmo depois de adulta, sempre tive predileção por conviver amigos homens. E também porque nunca fui muito dada a brincadeiras com bonecas. A minha primeira boneca, aquela que marcou mesmo, eu a ganhei quando tinha já oito anos de idade. Ganhei-a de presente porque passei de ano em primeiro lugar.

Minha primeira infância foi assim nesse ambiente. O de que mais me lembro é dos cuidados da "Doiê". De manhã além do café ela fazia um chá e o esfriava para nos oferecer dum jeito único. Era incrível ver aquela imagem. Duas canecas, uma vazia, a outra cheia de chá quente, fumaçando. Ela passava o líquido quente de uma caneca para a outra abrindo uma distância tão grande que bastavam duas ou tres trocas de uma caneca para outra e o chá ou o café ficavam no ponto de aquecimento perfeito para tomar sem queimar nossas bocas. A criançada toda tomava café/chá da manhã na casa dela. E ela esfriava o chá para todos, um por um.

Tínhamos tudo o que a criançada pode querer para crescer bem, com liberdade. O tio Z era o tio rico da família. As casas todas eram dele. Umas quatro, todas vizinhas e muito espaço entre elas. "Doie" era o xodó dele e tinha de tudo ali. Fogão a gás e fogão a lenha. Plantas, árvores frutíferas e criação de animais. Pé de amora, pé de limão, pé de ameixa, o bananal, muitos pés de banana. Agente tinha um pouco de medo de ir lá no bananal, diziam que lá tinha cobra.

Mas não podiam descuidar senão os meninos iam lá e pegavam a menina.

Tinha criação de porco, cabra, pato, galinha, cachorro, gato. Tinha de tudo que criança gosta. Vivia trepada nos pés de amora comendo-as alí mesmo no pé. Toda tarde tinha limonada. Pegava os limões lá mesmo no pé e, geralmente era a mãe que fazia limonada para a molecada toda. O leite que tomávamos era de cabra, aquelas criadas lá mesmo. Me lembro de em mais ou menos uns dois Natais, tem ouvido os guinchos do porco sendo morto para a ceia. Não gostava de ver. Me sentia perturbada com aquilo. Não entendia muito porque tinha que ser assim. Tínhamos um cachorro chamado Cacique e outro chamado Leão. Sentia que eles cuidavam de mim, das crianças todas. Tinha um amor especial por um deles. Chorei quando o Cacique morreu atropelado na Fernão Dias. Nossa morada era bem próxima da Fernão Dias e tínhamos a tia "C" que morava do outro lado da rodovia. Sempre íamos lá. Muitas vezes escondido da "Doiê" e o Cacique sempre nos acompanhava. Atravessar a rodovia era uma perigo ao qual não nos furtávamos. Um dia, quando eu não estava presente, ele morreu atropelado na travessia da rodovia. É das primeiras perdas doloridas de que me lembro. O Leão me lembro pouco dele. O mais marcante para mim sobre o Leão é que, próximo de onde morávamos, havia uma casa onde no muro havia duas estátuas de leões, uma de frente para outra entre as pilastras do portão. Tinha medo daqueles Leões e não entendia porque o nosso cachorro também era Leão. Me lembro dele algumas vezes nos acompanhando com o Cacique mas não me afeiçoei tanto a ele. Assosciava-o às estátuas dos Leões da casa lá das proximidades. Não sei do fim do Leão. Provavelmente já não estivesse por lá quando ele se foi.

Preta Pobre e Culta
Enviado por Preta Pobre e Culta em 06/05/2012
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