Substância, de Guimarães Rosa em Primeiras estórias, da Editora Nova Fronteira

Sim, na roça o polvilho se faz a coisa alva: mais que o algodão, a garça, a roupa na corda. Do ralo às gamelas, da masseira às bacias, uma polpa se repassa, para assentar, no fundo da água e leite, azulosa — o amido — puro limpo, feito surpresa. Chamava-se Maria Exita. Datava de maio, ou de quando? Pensava ele em maio, talvez, porque o mês mor de orvalho, da Virgem, de claridades no campo. Pares se casavam, arrumavam-se festas; numa, ali, a notara: ela, flor. Não lembrava a menina, feiosinha, magra, historiada de desgraças, trazida, havia muito, para servir na Fazenda. Sem se dar ideia, a surpresa se via formada. Se, às vezes, por assombro, uma moça assim se embelezava, também podia ter sido no tanto-e-tanto. Só que a ele, Sionésio, faltavam folga e espí­rito para primeiro reparar em transformações.
  Saíra da festa em começo, dada mal sua presença; pois a vida não lhe deixava cortar pelo sono: era um espreguiçar-se ao adormecer, para poupar tempo no despertar. Para a azáfama de farinha e polvilho. Célebres, de data, na região e longe, os da Samburá; herdando-a, de repente, Seo Nésio, até então rapaz de madraças visagens, avançara­-se com decisão de açoite a desmedir-lhes o fabrico. Plantava à vasta os alqueires de mandioca, que, ali, aliás, outro cultivo não vingava; cha­mava e pagava braços; espantava, no dia a dia, o povo. Nem por nada teria adiantado atenção a uma criaturinha, a qual.
  Maria Exita. Trouxera-a, por piedade, pela ponta da mão, re­ceosa de que o patrão nem os outros a aceitassem, a velha Nhatiaga, peneireira. Porque, contra a menos feliz, a sorte sarapintara de pre­to portais e portas: a mãe, leviana, desaparecida de casa; um irmão, perverso, na cadeia, por atos de morte; o outro, igual feroz, foragido, ao acaso de nenhuma parte; o pai, razoável bom-homem, delatado com a lepra, e prosseguido, decerto para sempre, para um lazareto. Restassem-lhe nem afastados parentes; seja, recebera madrinha, de luxo e rica, mas que pelo lugar apenas passara, agora ninguém saben­do se e onde vivia. Acolheram-na, em todo o caso. Menos por direta pena; antes, da compaixão da Nhatiaga. Deram-lhe, porém, ingrato serviço, de todos o pior: o de quebrar, à mão, o polvilho, nas lajes.
  Sionésio, de tarde, de volta, cavalgava através das plantações. Se a meio-galope, se a passo, mas sôfrego descabido, olhando qua­se todos os lados. Ainda num domingo, não parava, pois. Apenas, por prazo, em incertas casas, onde lhe dessem, ao corpo, consolo: atendimento de repouso. Lá mesmo, por último, demorava um me­nos. Prazer era ver, aberto, sob o fim do sol, o mandiocal de verdes mãos. Amava o que era seu o que seus fortes olhos aprisionavam. Agora, porém, uma fadiga. O ensimesmo. Sua sela se coçava de uso, aqui a borraina aparecendo; tantas coisas a renovar, e ele sem sequer o tempo. Nem para ir de visita, no Morro-do-Boi, à quase noiva, co­mum no sossego e paciências, da terra, em que tudo se relevava pela medida das distâncias. Chegava à Fazenda. Todavia, esporeava.
  O quieto completo, na Samburá, no domingo, o eirado e o en­genho desertos, sem eixo de murmúrio. Perguntara à Nhatiaga, pela sua protegida. “Ela parte o polvilho nas lajes...” — a velha resumira. Mas, e até hoje, num serviço desses? Ao menos, agora, a mudassem! — “Ela é que quer, diz que gosta. E é mesmo, com efei­to...— a Nhatiaga sussurrava. Sionésio, saber que ela, de qualquer modo, pertencia e lidava ali, influía-lhe um contentamento; ele era a pessoa manipulante. Não podia queixar-se. Se o avio da farinha se pelejava ainda rústico, em breve o poderia melhorar, meante muito, pôr máquinas, dobrar quantidades.
  Demorara para ir vê-la. Só no pino do meio-dia de um sol do qual o passarinho fugiu. Ela estava em frente da mesa de pedra; àquela hora, sentada no banquinho rasteiro, esperava que trou­xessem outros pesados, duros blocos de polvilho. Alvíssimo, era horrível, aquilo. Atormentava, torturava: os olhos da pessoa tendo de ficar miudinho fechados, feito os de um tatu, ante a implacá­vel alvura, o sol em cima. O dia inteiro, o ar parava levantado, aos tremeluzes, a gente se perdendo por um negrume do horizonte, para temperar a intensidade brilhante, branca; e tudo cerradamen­te igual. Teve dó dela — pobrinha flor. Indagou: “Que serviço você dá?e era a tola questão. Ela não se vexou. Só o mal-e-mal, o boquinão abrir, o sorriso devagar. Não se perturbava. Também, para um pasmar-nos, com ela acontecesse diferente: nem enruga­va o rosto, nem espremia ou negava os olhos, mas oferecidos bem abertos — olhos desses, de outra luminosidade. Não parecia pa­decer, antes tirar segurança e folguedo, do triste, sinistro polvilho, portentoso, mais a maldade do sol. E a beleza. Tão linda, clara, cer­ta — de avivada carnação e airosa — uma iazinha, moça feita em cachoeira. Viu que, sem querer, lhe fazia cortesia. Falou-lhe, o as­sunto fora de propósito: que o polvilho, ali, na Samburá, era muito caprichado, justo, um dom de branco, por isso para a Fábrica valia mais caro, que os outros, por aí, feiosos, meio tostados...
  Depois, foi que lhe contaram. Tornava ainda, a cavalo, seu cora­ção não enganado, como sendo sempre desiguais os domingos; de tarde, aí que as rolinhas e os canários cantavam. Se bem — ele ali o dono — sem abusar da vantagem. “De suas maneiras, menina, me senti muito agradado...” — repetia um futuro talvez dizer. A Maria Exita. Sabia, hoje: a alma do jeito e ser, dela, diversa dos outros. Assim, que chegara lá, com os vários sem-remédios de amargura, do oposto mundo e maldições, sozinha de se sufocar. Aí, então, por si sem conversas, sem distraídas beiras, nenhumas, aportara àquele serviço — de toda a despreferência, o trabalho pedregoso, no quente feito boca-de-forno, em que a gente sente engrossar os dedos, os olhos inflamados de ver, no deslumbrável. Assoporava­-se sob refúgio, ausenciada? Destemia o grado, cruel polvilho, de abater a vista, intacto branco. Antes, como a um alcanforar o fita­va, de tanto gosto. Feito a uma espécie de alívio, capaz de a desa­fligir; de muito lhe dar: uma esperança mais espaçosa. Todo esse tempo. Sua beleza, donde vinha? Sua própria, tão firme pessoa? A imensidão do olhar — doçuras. Se um sorriso; artes como de um descer de anjos. Sionésio nem entendia. Somente era bom, a saber feliz, apesar dos ásperos. Ela — que dependendo só de um aceno. Se é que ele não se portava aloprado, nos rodeios de um caramujo; estava amando mais ou menos.
  “Se outras a quisessem, se ela já gostasse de alguém?as asas des­sa cisma o saltearam. Tantos, na faina, na Samburá, namoristas; e às festas — a ideia lhe doía. Mesmo de a figurar proseando com os pró­ximos, no facilitar. Porém, o que ouviu, aquietava-o. Ainda que em graça para amores, tão formosa, ela parava a cobro de qualquer deles, de más ou melhores tenções. Resguardavam a seus graves de sangue. Temiam a herança da lepra, do pai, ou da falta de juízo da mãe, de le­vados fogos. Temiam a algum dos assassinos, os irmãos, que inespe­rado de a toda hora sobrevir, vigiando por sua virtude. Acautelavam. Assim, ela estava salva. Mas a gente nunca se provê segundo garantias perpétuas. Sionésio passara a frequentar nas festas, princípios a fins. Não que dançasse; desgostava-o aquilo, a folgazarra. Ficava de lá, de olhos postos em, feito o urubu tomador de conta. Não a teria acredita­do tão exata em todas essas instâncias — o quieto pisar, um muxoxo­zinho úmido prolongado, o jeito de pôr sua cinturinha nas mãos, feliz pelas pétalas, juriti nunca aflita. A mesma que no amanhã estaria de­fronte da mesa de laje, partindo o sol nas pedras do terrível polvilho, os calhaus, bitelões. Se dançava, era bem; mas as muito poucas vezes. Vinham-lhe medo, à doença incerta, sob a formosura. Ah, era bom, uma providência, esse pejo de escrúpulo. Porque ela se via conduzida para não se casar nunca, nem podendo ser doidivã. Mas precisada de restar na pureza. Sim, do receio não se carecia. Maria Exita era a para se separar limpa e sem jaças, por cima da vida; e de ninguém. Nela homem nenhum tocava.
  Sem embargo de que, ele, a queria, para si, sempre por sempre.
  E, ela, havia de gostar dele, também, tão certamente.
  Mas, no embaraço de inconstantes horas às esperanças velhas e desanimações novas de entre-momentos. Passava por lá, sem paz de vê-la, tinha um modo mordido de a admirar, mais ou menos de longe. Ela, no seu assento raso, quando não de pé, traba­lhando a mãos ambas. Servia o polvilho a ardente espécie singular, secura límpida, material arenoso a massa daquele objeto. Ou, o que vinha ainda molhado, friável, macio, grudando-se em seus belos braços, branqueando-os até para cima dos cotovelos. Mas que, toda-a-vida, de solsim brilhava: os raios reflexos, que os olhos de Sionésio não podiam suportar, machucados, tanto vales­se olhar para o céu e encarar o próprio sol.
  As muitas semanas castigavam-no, amiúde nem conseguia dormir, o que era ele mesmo contra ele mesmo, consumição de paixão, romance feito. De repente, na madrugada, animava-se a vigiar os ameaços de chuva, erguia-se aos brados, acordando a to­dos: “Apanhar polvilho! Apanhar polvilho!...” Corriam, em con­fusão de alarme, reunindo sacos, gamelas, bacias, para receber o polvilho posto ao ar, nas lajes, onde, no escuro da noite, era a única coisa a afirmar-se, como um claro de lagoa d’água, rodeado de cria­turas estremunhadas e aflitas. Mal podia divisá-la, no polvoroso, mas contentava-o sua proximidade viva, quente presença, alivian­do-o. Escutou que dela falassem: — “Se não é que, no que não espera, a mãe ainda amanhece por ela... Ou a senhora madrinha...” Salteou-se. Sem ela, de que valia a atirada trabalheira, o sobreesforço, crescer os produtos, aumentar as terras? Vê-la, quando em quando. A ela a única Maria no mundo. Nenhumas outras mulheres, mais, no repousado; nenhuma outra noiva, na distância. Devia, então, pe­gar a prova ou o desengano, fazer a ação de a ter, na sisuda cora­gem, botar beiras em seu sonho. Se conversasse primeiro com a Nhatiaga? — achava, estapeou aquele pensamento contra a testa. Não receava a recusação. Consigo forcejava. Queria e não podia, dar volta a uma coisa. Os dias iam. Passavam as coisas, pretextadas. Que temia, pois, que não sabia que temesse? Por vez, pensou: era, ele mesmo, são? Tinha por onde a merecer? Olhava seus próprios dedos, seus pulsos, passava muito as mãos no rosto. A diverso tem­po, dava o bravo: tinha raiva a ela. Tomara a ele que tudo ficasse falso, fim. Poder se desentregar da ilusão, mudar de parecer, pagar sossego, cuidar só dos estritos de sua obrigação, desatinada. Mas, no disputar do dia, criava as agonias da noite. Achou-se em lagri­mas, fiel. Por que, então, não dizia hás nem eis, andava de mente tropeçada, pubo, assuntando o conselho, em deliberação tão grave — assim de cão para luar? Mas não podia. Mas veio.
  A hora era de nada e tanto; e ela era sempre a espera. Afoito, ele lhe perguntou: — “Você tem vontade de confirmar o rumo de sua vida?” — falando-lhe de muito coração. — “Só se for já... — e, com a resposta, ela riu clara e quentemente, decerto que sem a proposi­tada malícia, sem menospreço. Devia de ter outros significados o rir, em seus olhos sacis.
  Mas, de repente, ele se estremeceu daquelas ouvidas palavras. De um susto vindo de fundo: e a dúvida. Seria ela igual à mãe? surpreendeu-se mais. Se a beleza dela a frutice, da pele, tão fresca, viçosa fosse por um tempo, mas depois condenada a engrossar e se escamar, aos tortos e roxos, da estragada doença? o horror daquilo o sacudia. Nem aguentou de mirar, no momento, sua preciosa formosu­ra, traiçoeira. Mesmo, sem querer, entregou os olhos ao polvilho, que ofuscava, na laje, na vez do sol. Ainda que por instante, achava ali um poder, contemplado, de grandeza, dilatado repouso, que desmancha­va em branco os rebuliços do pensamento da gente, atormentantes.
  A alumiada surpresa.
  Alvava.
  Assim; mas era também o exato, grande, o repentino amor o acima. Sionésio olhou mais, sem fechar o rosto, aplicou o coração, abriu bem os olhos. Sorriu para trás. Maria Exita. Socorria-a a lin­da claridade. Ela ela! Ele veio para junto. Estendeu também as mãos para o polvilho solar e estranho: o ato de quebrá-lo era gostoso, parecia um brinquedo de menino. Todos o vissem, nis­so, ninguém na dúvida. E seu coração se levantou. Você, Maria, quererá, a gente, nós dois, nunca precisar de se separar? Você, comi­go, vem e vai?Disse, e viu. O polvilho, coisa sem fim. Ela tinha respondido: — “Vou, demais.Desatou um sorriso. Ele nem viu. Estavam lado a lado, olhavam para a frente. Nem viam a sombra da Nhatiaga, que quieta e calada, lá, no espaço do dia.
  Sionésio e Maria Exita a meios-olhos, perante o refulgir, o todo branco. Acontecia o não-fato, o não-tempo, silêncio em sua imaginação. Só o um-e-outra, um em-si-juntos, o viver em pon­to sem virar, coraçãomente: pensamento, pensamôr. Alvor. Avançavam, parados, dentro da luz, como se fosse no dia de Todos os Pássaros.
Guimarães Rosa
Enviado por Germino da Terra em 07/11/2013
Reeditado em 07/11/2013
Código do texto: T4561098
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.