A dona dos meus olhos

Era meu aniversário. Folheava as páginas dos livros da minha juventude – em sua maioria russos. A cada folha pude sentir odores e nuances como sentira quando os ganhei... dela. O puxamento incerto da sua caligrafia caótica cabia-lhe perfeitamente – igual era sua personalidade. Traí-me. Não podia ler tais dedicatórias. Sua sutil imagem de mártir ressurgia em minha mente...

Dina não pôde escolher. Nada quando em comunhão com sentimentos pode ser optado, cogitado. Enquanto eu fitava seus olhos preocupados, ela fitava minha dor. E a sentia. E a multiplicava. Outrora fitávamos as gotas de água da chuva tal qual agora fito seus antigos escritos. E, engraçado: lá fora chove! Chuva era nossa maior felicidade quando estávamos juntos. Chuva é sinônimo de Dina. Mas não mais podemos sair juntos como dois esquisitos que sentem prazer em ter cabelos molhados e dar abraços tortos. Somos como estranhos – nossa amizade jaz, fresca, nas gotículas que lentamente escorrem das verdes folhas do nosso passado.

Dina não pôde escolher se iria ou não me amar. Amou - amou tanto quanto sua poesia permitiu. Amou-me como uma tempestade desamparada, em que os trovões visam tão somente arrebatar, gerar sofrimento. Contudo pôde escolher (e escolheu) transformar-me apenas em um dos seus personagens literários, personagem este que contracenou fervorosamente, romanticamente na história de sua vida.

Não escolhi amá-la. Amei, e como sei que ninguém há de ler meu breve desabafo, confesso: amei não podendo amá-la. Amei-a amando outra. Cada gesto, cada ato fazia com que eu ficasse mais perdido num abismo de contradições. “Uma contradição feita só de olhos”, escrevera Dina. Ah! foi-se – e levou consigo minha confusão. Esqueci... e agora lembro.

Nove de abril. Meu aniversário. Muita reminiscência, muita tristeza para um só dia. Resolvo, em um lapso de loucura, visitar a dona dos meus olhos – a eterna dona deles. Há tanto tempo sem vê-los... reconhecê-los-á? Decidido, dirijo-me ao carro, circundado pela palidez do fim da tarde, envolto por chuviscos gelados. 50 eternos quilômetros. Paro em frente a uma casa rústica marrom com janelas verde-musgo (a cara dela!); ao longe avisto uma silhueta que corre incansavelmente atrás de algo... será um gato? Os vultos somem e eu espero. Escolho esperar. Hesito. Bato na porta? Vou embora? Bato na porta e espero. Cerca de dois minutos se passam... É ela! É ela! É ela! Igual, com uns olhos imersos em angústia; cachos desajeitados e molhados de chuva – ela tem cheiro de chuva!; veste um suéter preto e está descalça. Carrega nos braços um gato avermelhado – outro surge e se esfrega em seus pés.

Enquanto eu fitava seus olhos preocupados, ela fitava minha dor. Encarava-me. Subitamente seu rosto passou de tenso para despreocupado. Decidi quebrar o silêncio:

- Bela casa.

- Obrigada – respondeu.

Nada mais. Senti-me tolo por estar ali sem ter o que falar. Mas só de vê-la... que frio senti! Que vontade de tê-la nos meus braços e dar-lhe um abraço torto! Virei e lentamente andei até o portão, sem me despedir. Imenso erro aparecer ali? Não. A minha escolha fora ir até lá, faltava a escolha dela. Ela escolheu... correu até mim, com as duas mãos segurou as minhas e, com vergonha, baixinho, falou:

- Entra.

Entrei.

10/08/14