Um mórbido romance

Era uma vez um homem que se apaixonou por mim. Logo eu, o pesadelo dos mortais, a cruel, a implacável, a Morte.

É claro que em todos os meus anos de trabalho (e não são poucos) eu já havia me apaixonado por alguns humanos. Mas com o Tiago foi diferente, ele me amava mais que tudo e eu também amava ele.

Nos conhecemos no funeral da tia-avó dele, embora eu já o tenha visto outras duas vezes. Uma no funeral da sua irmã, ele tinha dez anos, e outra no funeral do seu avô, aos dezessete. Mas nessas ocasiões ele não me notou, e eu também não dei muita atenção a ele, era apenas outro humano comum. Mas durante o enterro de sua tia-avó eu percebi que ele notou minha presença entre as pessoas. Não achei uma coisa tão incrível assim, ele não era o primeiro a me perceber. Mas eu não parecia incomodá-lo, parecia que ele estava gostando de mim ali. Isso sim eu achei estranho, os humanos não costumam se agradar de minha presença, geralmente morrem de medo de mim. Mas depois fui gostando daquela atenção que raramente me era proporcionada, e vou confessar que aqueles olhos verdes me hipnotizaram na hora.

Me aproximei.

Ele se aproximou.

Ficamos os dois lado a lado.

E aí ele quebrou o silêncio.

Conversamos um pouco mas não dava para ficar num falatório sem fim, afinal, aquilo ali era um enterro, um lugar de respeito. Então marcamos de nos encontrarmos no cemitério da Consolação, a meia-noite. E juro por Deus que fiquei mais nervosa para escolher a roupa do que no dia que busquei a alma de Elvis Presley! Foi um sufoco decidir entre um manto escarlate e a mortalha preta.

Acabei escolhendo a mortalha por ser mais discreta, não queria parecer oferecida. E o Tiago estava muito elegante com uma camisa azul clara e calças pretas. Nos sentamos num túmulo de mármore ali perto e ficamos conversando até o amanhecer. Ele se mostrou um grande especialista em desastres famosos e cataclismas. Era realmente um rapaz encantador. Com ele eu me sentia mais livre, talvez mais viva. Infelizmente um homem tinha acabado de assaltar um posto de gasolina e eu tinha que ir buscar a alma de dois frentistas. Uma pena interromper um momento como aquele, mas ele me prometeu que nós nos veríamos de novo. E Antes de ir ele me deu um beijo na testa. Um beijo! De um mortal!

Aquele beijo foi simplesmente a minha perdição. Passei a semana inteira com a cabeça nas nuvens pensando no Tiago, fazendo planos para nós dois. Eu sabia que ele queria alguma coisa séria comigo, não era como outros homens mortais que só de ouvirem a palavra compromisso saem correndo. Ele era especial. E eu não conseguia tirá-lo da cabeça! Um avião cai e a tripulação morre, eu estava pensando no Tiago. Um incêndio destrói o shopping, eu estava pensando no Tiago. O trem descarrilhou, e eu estava pensando no Tiago. Mas finalmente chegou a sexta-feira e nós nos encontramos na cafeteria perto do trabalho dele. O que foi uma sorte por que um senhor da mesa ao lado teve um infarto e aproveitei para cumprir meu serviço. Mais tarde fomos no cinema assistir “Premonição” e foi tão romântico! Num momento que eu estava distraída ele segurou a minha mão e me deu um beijo apaixonado, e foi como se mil fogos de artifício estourassem dentro de mim. No final do filme já estávamos namorando.

Você deve pensar que eu não posso manter relações com um mortal, e eu vou lhe dizer que está muito enganado. Tenho sentimentos como qualquer pessoa e nunca ouvi regra alguma que me proibisse de namorar. É claro que eu e o Tiago fomos um casal inusitado, mas Romeu e Julieta também eram e eles se amavam. O amor destrói barreiras e eu não sou de ferro. A morte também tem direito a se apaixonar.

Não demorou muito para eu já estar freqüentando a roda de amigos do Tiago, embora eu percebesse que eles nãos e agradavam da minha presença. Alguns poucos aprovavam o namoro, mas não sei se eram sinceros ou interesseiros. Sempre perguntando as suas datas de morte, querendo falar com parentes falecidos, pedindo para terem mais tempo de vida. Os humanos são tão falsos e pretensiosos quando querem!

E quando chegou o dia de conhecer os pais do Tiago achei que meu coração saltaria pela boca! Mas todo o nervosismo foi a toa porque eles eram uns amores de pessoa, super simpáticos. Conversei muito com o Sr. Pereira sobre amigos mortos na guerra e a explosão de um vulcão que arrasou uma ilha. Ele era uma figura, tinha ótimas piadas.

A Sra. Pereira também era um amor de pessoa, fez uma lasanha maravilhosa no almoço. Falamos sobre amigas falecidas dela e aproveitei para pegar algumas receitinhas. Mas eu percebi que mesmo se esforçando ela não me achava uma namorada adequada para o Tiago. Bom, não a culpo. É dever das mães querer o melhor para o filho.

Mas cada dia que se passava eu me senti mais desconfortável com essa nova fase na vida. Eu ia a festas com o Tiago e andávamos na rua de mãos dadas como um casal normal e ele me tratava como uma mortal, mas isso estava me incomodando. Não parecia certo. Eu estava fazendo amigos e conversava com eles como se não soubesse que um dia eles esqueceriam o gás ligado ou atravessariam a rua sem olhar e então eu os levaria para um lugar longe de tudo que eles conheciam. Eu me sentia culpada.

Conversei sobre isso com o Tiago e decidimos fugir para longe daquilo tudo, longe dos julgamentos e acusações sobre nós.

Nos encontramos no alto do edifício onde ele morava as 7:00 da manhã, sem malas nem objetos de valor. No lugar onde nós íamos isso não é necessário.

Ele subiu no parapeito do prédio

Olhou para mim e sorriu

O vento esvoaçava o seu cabelo e uma lágrima desceu pelo seu rosto

Pulou

Sua alma, leve como uma pena, caiu em meus braços apaixonados.

Mas seu corpo mortal se chocou com violência na Av. Brasil.

Matheus Barbosa
Enviado por Matheus Barbosa em 17/10/2014
Código do texto: T5002484
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