Absoluta

Abraão e eu terminamos nosso relacionamento de dois anos a duas semanas.

Hoje é o segundo sábado que eu acordo com a mesma roupa de ontem, com a maquiagem borrada devido ao choro e com os cabelos que enfrentou um vendaval. Perdi a noção de quantas cervejas tomei e de quantas vodkas eu virei e o quanto disso vomitei.

Pensando nele. Chorando por ele.

Minhas amigas reclamaram comigo dizendo que eu não deveria mais sofrer por isso, já que Abraão não estava passando pelo mesmo que eu. Ele foi visto indo a uma balada ontem à noite, enquanto eu não estava nada bem. E hoje eu tinha que estar bem.

Há uma festa que ambos fomos convidados para ir à noite, que é aniversário de um amigo em comum nosso. Ele vai estar lá, e embora às meninas digam que eu devo ir porque ele não é o centro da festa, mesmo assim eu ainda irei vê-lo. E não estou pronta para isso.

Falei com Carlos Henrique ainda há pouco. Ele é o melhor amigo de Abraão, e tem sido meu amigo há vários meses também, mesmo com Abraão se rasgando de ciúmes sempre. Ridículo. Henrique não faz meu tipo. Alto, magrelo e boca fina. Cabelos bem pretos e lisos, com gel deixando-os arrepiados. Confesso que de tantas brigas e de tantas humilhações que passei graças a Abraão, acabei sentindo uma paixonite por Carlos Henrique com o tempo. Ele é um doce, sempre me tratou bem. Abraão, não.

- Lógico que você vai, Yasmim. Eu nem sei chegar lá.

- Te explico o caminho. Não quero ir. Vou me sentir de fora. Ainda mais com o...

- O Abraão é um trouxa! – afirmou ele. – Você conhece todo mundo lá, e a propósito, você vai comigo. Ele que fale algo contra você...

Não pude demonstrar que quero muito ir com ele. Passei um ar de desprotegida e insegura porque quero que Carlos Henrique me proteja. Quero que ele goste de mim e que me abrace na frente de todos.

Mas não é algo certo a se fazer. Todos sabem que quanto mais Abraão e eu terminamos, mais rápido voltamos. Nós nos amamos, precisamos um do outro, e jamais conseguimos nos separar. Mas juntos, parece que a gente se odeia.

Faz muito tempo que quando saímos todos entre amigos, incluindo a maioria que estará na festa de aniversário do Silvestre hoje, noto que quando bebemos todos, o Henrique fica mais à vontade comigo. Entre brincadeiras ou outras ele me abraça ou faz ciúmes de brincadeira para o Abraão, com o intuito de ele me dar mais valor. Mas sóbrio, ele jamais faria isso. Ele é calado, sério. E me respeita por demais.

Passei o dia trocando mensagens de texto com Abraão. Pode me chamar de tonta, de estúpida e do que for que eu não ligo. Abraão e eu temos uma amizade acima de qualquer término ou briguinha que tivermos.

“Vc vai vir q horas?” – ele pergunta.

“Mais tarde. O CH vai me encontrar na catraca da Sé.”

“Humm. Qria q viesse antes p gente fik um pouco lá em ksa. Tô com saudade =/”

Demorei um pouco para responder porque fui tomar banho antes da última resposta dele, e depois demorei ainda mais não tendo como responder o mesmo. Sinceramente estou empolgada para ver o Carlos Henrique. Contudo, por mais que ele me trate bem esta noite e me apóie sempre, não posso me iludir. Jamais ficaremos juntos porque ele nunca trocaria a amizade do melhor amigo por mim. Eles se conhecem há anos. A mim faz não mais que nove meses.

53 minutos depois

Quase pronta.

Amarrei meus cabelos num rabo-de-cavalo com uma liguinha vermelha que combinava com meu top também vermelho. Escolhi uma calça jeans justa e escura que ficasse legal com um salto. Exagerei no perfume para que o Carlos Henrique quisesse ficar próximo de mim todo o tempo. Não estava frio lá fora.

Carlos Henrique me esperou por uns 15 minutos até eu finalmente chegar. Beijou minha bochecha e me conduziu até o trem certo que deveríamos embarcar. Sempre com uma blusa de moletom preta, mesmo quando não está frio, Carlos Henrique estava tão bonito quanto sempre foi. Hoje com um rastro fino de barba que ia da costeleta até o queixo. O sorriso deixando suas bochechas infladas e suas pequenas tosses momentâneas entre uma frase ou outra.

Não tenho muito papo com ele, mas eu me esforço. Puxo qualquer assunto e falo sempre o que me vem à cabeça para que não fique um silêncio chato e mórbido e ambos tenham que pegar os celulares para matar o tempo do percurso.

- Falou com o Abraão? – perguntou ele.

- Falei antes de vir. Disse que estava na casa do Jonathan com o resto do pessoal e que daqui a pouco vão para a casa do Silvestre.

- E essa sacola aí? Presente para o Silvestre?

- Sim, uma camiseta oficial do time dele. E tenho uma coisa aqui para você.

Ele se empertigou no assento ao meu lado e esperou. Estendi uma corrente prata e coloquei em seu pescoço. Fiz questão de deixar meu rosto próximo do dele e nossos olhares se encontraram. Meu coração esquentou de repente, porém voltamos ao normal.

- Opa, valeu Yasmim!

- Era o mínimo que eu poderia fazer. Quebrei a outra sem querer – querendo, na verdade. Da última vez que saímos todos juntos, puxei-o com força para perto de mim pela antiga corrente que ele tinha e ela se quebrou.

Chegamos à festa muitos minutos depois. Após passar por uma longa estrada escura e deserta, com um carro ou outro dando as caras de vez em quando. Subimos uma ladeira e descemos outra.

- Silvestre parece que se esconde! – reclamou Henrique. – Nunca mais eu venho.

Não é verdade. Ele diz “Nunca” pra tudo.

Fomos recebidos à porta por Silvestre que gostou muito de me ver e de pegar o presente que eu trouxe. Alguém nos serviu copos descartáveis com bebida alcoólica dentro e eu senti a noite começar.

O que era a grande garagem da casa dele foi transformado numa pista de dança bem semelhante à de balada. Um som potente num canto, pessoas no centro e um globo de refletores no teto. Nas paredes havia globos grandes de luzes coloridas e de frente com a entrada havia refletores piscando tão forte como se fossem mil fotografias sendo tiradas por segundo.

Que exagero.

Na pista, Carlos Henrique e eu dançávamos meio desengonçados. Ficamos perto dos nossos amigos em comum. Estavam todos ali, exceto meu ex-namorado.

- Onde está Abraão? – gritei devido a musica à Silmara, uma das amigas dele que eu não gostava muito e nem ela de mim. Passamos o ano todo sem nos falarmos, mas agora a rixa acabou depois da nossa última festa. A gente se atura só por causa dele, gostamos de sermos falsas uma com a outra. É legal.

- Está sentindo saudade? – perguntou Abraão chegando por trás de mim, antes que a Silmara me respondesse. Meu coração palpitou forte no mesmo instante. Car#lho, como ele estava bonito. Usava um habitual boné preto Adidas, a barba feita, rosto liso e branco, seus lábios carnudos e rosados pareciam me chamar para beijá-lo. Escolhera uma camiseta vinho e uma calça cinza que marcava as belas coxas que ele tem.

Puxa, fiquei balançada, e confusa. Não quero gostar mais dele, mas estou com ciúme.

Abraão é do tipo que aonde chega atrai a atenção de todos e todas, e está atraindo a minha. Eu quero Carlos Henrique para mim, mas não quero que Abraão seja de nenhuma outra convidada dessa festa.

- Oi – respondi apenas.

Carlos Henrique cumprimentou o amigo e os dois foram conversar num canto. Enquanto isso eu fui cumprimentar os outros amigos.

Alguns copos de Espanhola e de Caipirinha depois e uma boa parte da festa mais tarde, eu já estava dançando loucamente um Funk – que nem curto -, com a Silmara, Diego e com o Gustavo. Abraão veio de mansinho conversar comigo e me chamou para ir dar uma volta com ele.

Do lado de fora, havia uma pequena trilha que nós não sabíamos onde levaria. Paramos próximo ao portão da garagem mesmo e conversamos encostados na parede. Estava escuro. Ele perguntou como eu estava e se a gente deveria voltar.

- Não sei. Admito que quando você apareceu, foi como se uma celebridade aparecesse... Meu coração bateu tão forte... Eu ainda gosto de você, contudo não sei. Não sei.

- Mas puxa... Eu te amo. Você sabe – ele estava muito perto de mim e quase me beijando – Volta pra mim?

Antes que eu pudesse responder, Silmara e mais duas amigas que eu não conhecia apareceram chamando por ele, Diego veio junto com Silvestre e arrastaram Abraão lá para dentro, puxando-o pelo braço. Quase me levaram também, mas recusei. Não tenho mais nada a ver com ele. Não depois do que ele me fez...

Meu ciúme estava me corroendo. Devo assumir meu posto de sua namorada ou deixar o passado para lá de vez? Ele quer tanto. Mas e o que eu quero?

- Ah, você tá aí né? – Carlos Henrique surgiu no portão. Ele é fraco para bebidas e facilmente deu para ver que ele não mais estava com plena consciência de seus atos.

- Tô sim, vem cá – eu também estava alta e não sabia bem o que estava fazendo.

- Falou com aquele trouxa?

- Falei sim – os lábios dele estão tão vermelhos – ele quer voltar comigo – e estão brilhantes. Como sempre. Ele é tão mais alto que eu, e muito mais magro que Abraão. Mesmo assim seu abraço com blusa de frio parece ser tão quentinho...

- Você disse o que pra ele?

- Que vou pensar.

- Cara, ele beijou outra mina do seu lado lá no último rolê que fez todo mundo. Se eu tivesse visto eu teria reclamado com ele Mim, é sério. Mas não vi. Outra você vê seu namorado beijando outra – ele pousa sua mão ossuda no meu ombro e me arrepio. Ela está quente e confortável – e não faz nada? Outra mina teria abrido o maior berreiro!

- Ele estava bêbado...

- Não defende ele, Yasmim.

- Não to defendendo. Só esperei o momento certo para brigar com ele e...

- O que tem ali? – ele apontou com o polegar.

Dei de ombros.

Estávamos bêbados, sem saber onde estávamos indo. Caminhamos no meio dos matos que circulava a casa de Silvestre. Acima de nós, havia uma rodovia com carros passando rápido demais. Caminhamos pela noite escura e ele segurou minha mão para eu atravessar uma pequena ponte improvisada com uma madeira. Tive medo de escorregar e cair no riozinho abaixo de nós. Atravessamos para o outro lado e seguimos um pouco em frente.

Havia uma casa em construção ali. Encostei-me à parede de tijolos e ele ficou à minha frente com a cabeça pesada e me olhando. Rindo, feito bobo.

- Tem nada aqui – ele riu.

- Percebi.

Então o que eu tanto esperei por meses aconteceu... Ele me beijou. O beijo foi extremamente macio, gostoso e apaixonante. Meu coração bateu como jamais batera antes, e eu não queria parar. Não queria recuperar o fôlego e nem consegui evitar bagunçar o cabelo dele.

Quando finalmente nos soltamos, ele me olhou e sorriu.

- Aquela sua amiga Janaína deveria ter umas aulas contigo de como se beija. Ela cortou meu lábio todo aquele dia.

Empurrei Janaína para que ele ficasse com ela no último passeio que fomos. Gosto de vê-lo beijando outras. Alimentava meu desejo de ficar com ele, e escondia o que eu realmente sentia.

Ignorei esses pensamentos quando ele me beijou de novo, mas dessa vez de forma ainda mais avassaladora. Minhas mãos passeavam à vontade por suas costas e ele parecia que queria me devorar, me consumir. Até que então:

- Não acredito nisso!

Olhamos assustados para o lado e vemos todos ali. Abraão na frente, Silmara com as amigas fofocando algo, Silvestre sem entender nada e Diego bebendo alguma coisa. Outros amigos surgiram atrás tentando entender o porquê de estarmos todos naquele lugar.

- Abraão – Henrique o chamou assustado.

Abraão saiu quase que empurrando a todos e se isolou em algum canto onde não o encontramos.

Muitos me condenaram pelo que fiz a ele, mas claro, nenhum deles sabia a minha versão da ultima festa que fomos. Apenas Carlos Henrique. Todos estavam me vendo ali como uma vagabunda traidora, já que Abraão pinta sua imagem a todos como alguém que me ama e faz tudo por mim e eu não lhe dou valor nenhum. Todos são falsos. Todos só ouvem a ele.

Injustiçada, decidi ir embora sem mesmo me despedir dos “amigos”.

Já passava das 4h30 e eu estava com um pouco de medo de ir até a estação de trem sozinha.

- Espere aí – Carlos Henrique veio correndo atrás de mim – Procurei você por todo canto.

- Vou embora.

- Vou com você. Já me desculpei com o trouxa lá. Ele estava chorando, Mim.

Enquanto caminhávamos, digitei uma mensagem para o celular dele. “Me perdoa =/ amanhã a gente conversa melhor, tá?”

- Puxa Henrique, me desculpa pelo que aconteceu.

- Esquece isso – pediu ele, abrindo uma lata de cerveja.

Carlos Henrique voltou comigo até o local onde nos encontramos horas atrás. Viemos o caminho todo calados e capengando de sono. Gastamos mais de uma hora e meia até chegarmos à Sé, e ele gastaria mais uma hora e poucos até chegar até em casa. Ele estava muito cansado e queria muito dormir. E eu também queria. Com ele ao meu lado.

- Quer ir dormir lá em casa? – ele sabe que eu moro sozinha.

- Não sei. Não é boa ideia.

- É a dez minutos daqui, descendo a rua. Você dorme e descansa e quando acordar melhor, você vai pra casa. Vamos poxa.

Ele me olhou por uns instantes.

- Ninguém precisa saber.

- De repente, nós dois juntos podemos gerar muita fofoca. Tem certeza que quer isso? – ele me perguntou escondendo um sorriso.

- Absoluta.

Continua...