479-OS DOIS AMORES DE DAS DORES

A fazenda Sassafrás ficava longe de tudo, na Serra do Alémquer. Grande fazenda, com mais de duzentas cabeças de gado de engorda e meia centena de vacas leiteiras. Subindo e descendo as serrarias e cortando os campos. A estrada-de-carro era apenas um caminho percorrido por tropeiros, pelos compradores de gados e por carros de boi. Diziam que foi por lá que o Judas perdeu as botas, um chiste que Seu Militão Silveira, o proprietário, não gostava de ouvir.

A família cuidava de tudo, ajudada por quatro empregados. Eram treze à mesa das refeições, cujas presenças o patriarca exigia, salvo doença ou atendimento de alguma rês na pastaria sem fim. Militão, o pai, exercia estrita vigilância sobre todos os filhos. Dona Josefa, a mãe, era eficiente administradora da casa e das coisas domésticas. Os filhos eram onze, cinco homens e seis mulheres. Dada a situação remota da fazenda, permaneciam solteiros, sendo que Altamiro, o mais velho, já estava com 35 anos quando a caçula fugiu de casa.

Para as mulheres, a vida era um remanso, sem ilusões, sem sonhos nem desejos. Para os homens, era um suceder de dificuldades, de trabalheira, de dias e dias na invernada, cuidando do gado.

Entretanto, Maria das Dores, a mais moça, era diferente de todas. Tinha, na época, 16 anos e era moça formada, linda morena de cabelos negros e olhos cor de jabuticabas. Mas era ainda uma criança nas atitudes. Muito esperta e corajosa, não tinha medo de nada, nem de coral ou cascavel. Andava descalça por tudo quanto é lado, as tranças balançando de um lado para o outro. Trabalhava de sol a sol, não existindo tarefa ao redor da casa que ela refugasse.

—Dasdores, se aquiete. Vá pegar alecrim e limpar o forno pra assar as quitandas. — A mãe mandava e Das Dores ia num pé e voltava no outro. Limpava o forno, ajudava a mãe por as quitandas para assar e ainda sobrava tempo para alguma distração.

Curiosa, perguntava por tudo. Queria explicações sobre a natureza, sobre a magia do tempo e os mistérios da vida.

—Por que as borboletas saem daquela casquinha que mais parece um ovo? Por que as galinhas ficam brabas quando estão chocas? Por que “isso”... por que “aquilo”?

Quando menstruou pela primeira vez, colocou a família em polvorosa. As explicações maternas e das irmãs mais velhas não a satisfizeram. Perguntou até aos irmãos. É claro que ficou sem as respostas satisfatórias, como ainda recebeu zangas e avisos.

—Isto é assunto de mulher, você vai compreender mais tarde.

Observando o comportamento diferente da caçula, dona Josefa mãe falou com o marido:

—A menina é desinquieta demais. Se ficar solteira como as outras, vai dar muito trabalho. Melhor arranjar um casamento pra ela.

O arranjo foi feito. Militão, em uma saída especial, visitou Alencastro, fazendeiro seu conhecido desde moço e cujo filho, Manoel, tropeiro de profissão, era solteiro.

—Podemos acertar o casório para quando meu filho chegar. — Alencastro concordou. — Não deve tardar. Já faz mais de seis meses que ele está fora.

As filhas mais velhas ficaram despeitadas com a providência do pai.

—E a gente não merece também ter marido?

O pai sequer dignou-se dar resposta.

Manoel Alencastro – ou Mané Tropeiro - chegou de viagem e aceitou o arranjo do pai com Militão Silveira. Na data marcada, lá foram os noivos e os pais ao cartório de Morro Abaixo, onde se casaram perante a lei. Contudo, o casamento religioso ficou para depois, pois a igreja de Morro Abaixo não tinha vigário. Era preciso esperar que o vigário de Itianaçu aparecesse em na pequena cidade para celebrar não só o casamento de Das Dores e Mané Tropeiro, como o de dezenas de outras uniões na mesma situação.

Enquanto isso, Das Dores ficou morando com os pais. Mané Tropeiro continuou na sua profissão: saiu para uma viagem que levaria mais de seis meses, pelas bandas de Goiás. Essa providência destinava-se a resguardar a boa fama da donzela, pois o casamento religioso era o que valia de verdade.

E lá permaneceu Das Dores casada mas vivendo como solteira.. Até o dia em que apareceu Lourenço Benzedor, vindo de Morro Abaixo, a chamado do pai, a fim ver algumas rezes doentes e benzer a pastaria, pois as pragas estavam amiudando.

— Parece que o tinhoso anda sorto por aqui, seu Lourenço. Peço pra fazer um sortilégio para acabar com essas doenças que tão acabando com o gado.

Leandro Benzedor era homem de meia idade, andava pelos quarenta, quarenta e pouco. Solteirão. Bem falante, bem vestido e bem montado, era um figurão. Na semana em que passou na fazenda Sassafrás, correndo pastos e benzendo currais, viu e conversou com Das Dores diversas vezes. Conversa furtiva, pois sabia da condição da moça, de meio-casada.

Enquanto a moça ordenhava as vacas, ou cuidava de um bezerrinho novo, os dois trocaram palavras que só eles sabem.

Terminado o serviço de rezas e benzeções, Leandro se despediu da família antes de ir se deitar, pois pretendia sair de madrugada, lá pelas quatro da manhã.

Das Dores não conseguiu dormir naquela noite. Vigilou para estar pronta a tempo e a hora. Ouviu o resfolegar e o som das patas do cavalo. De um salto, pulou a janela, arrumou-se na sela e partiu.

Cavalgaram noite adentro, pela madrugada e dia claro. Muitas léguas caminharam até o remoto vilarejo de Três Vinténs, aonde chegaram por volta de meio-dia. Ali, procuraram o padre, que, sem maiores explicações, fez o casamento religioso de Leandro e Maria das Dores.

Quando voltaram para Morro Abaixo, a história correu mundo. A região inteira ficou sabendo da moça que fugira para se casar, mesmo já sendo casada.

A família de Das Dores a renegou. Pai, mãe e irmãos jamais tocariam, desde então, no nome da filha e irmã. Pensavam que o esquecimento apagaria a figura da desajuizada da memória de todos.

Manoel Alencastro, o tropeiro, ao chegar de volta da viagem, oito meses depois, não teve o que fazer. Não era homem para lavar a honra em ponta de punhal ou na mira de garrucha. Também não providenciou separação.

—Já que está, deixa ficar. — Disse, dando a situação por definitiva. Preparou a tropa e, com mais mercadoria, saiu de novo, desta vez na direção da Bahia.

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Anos passaram. Maria das Dores sobreviveu ao marido “do religioso” . Não tiveram filhos e estava com 58 anos quando Leandro Benzedor morreu.

Manoel Tropeiro, o marido “de cartório”. Compareceu ao velório de Leandro. Estava com quase setenta, havia deixado de viajar. Muito doente, morava em um pequeno sítio, nos arredores da cidade.

Ali mesmo, ao lado do falecido, falou com Das Dores:

—Olha, a gente continua casado, de papel passado. Agora, você vai ficar sozinha. Não vai ter nem com que conversar. Venha morar comigo. Preciso de quem me cuide, estou acabado.

Das Dores, compadecida da situação de Manoel, concordou com o pedido. Do mesmo jeito que fugira com Leandro, passou a morar no sítio de Manoel. Cuidou do marido até o fim dos seus dias.

Viúva novamente, deixou-se ficar no sítio, onde vive sozinha. É a pessoa mais idosa da região. Recebe algumas visitas, pois se tornou uma curiosidade local, tanto pela idade avançada como pelo fato de ter tido dois maridos ao mesmo tempo, um no cartório e outro na igreja.

Oferecendo ao visitante um café passado na hora, esclarece:

—Devo ter mais de cem anos. Quando nasci, naqueles ermos da Serra do Alémquer, era difícil fazer o registro. Só fui registrada quando tinha uns cinco ou seis anos. Junte isso aos meus noventa e sete que dá mais de cem.

ANTÔNIO GOBBO

Belo Horizonte, 22 de fevereiro de 2008.

Conto # 479 da série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 30/10/2014
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