UM ROSTO NA ESCURIDÃO - PARTE III

A terça-feira amanheceu cinzenta e com ventos frios. Seria um prenúncio? Eugênia amanheceu sem dormir. Bernarda não sabia do tal bilhete, senão teria enlouquecido. Acordou e chamou sinhazinha no quarto como de costume. Achou a menina pálida e com os olhos carregados.

__ Que foi menina? Interrogou já com aquele tom irônico na voz de quem diz: o que está aprontando?

Eugênia limitou-se a um sorriso tímido. E foi tomar seu café.

__ Dia feio Bernarda. Parece triste.

A mucama olhava para ela com desconfiança.

__ Uai mocinha. É só o capricho do tempo! Tem dia que é assim mesmo! Por que você anda tão esquisita de ontem pra hoje. Eu conheço você, e você está com cara de quem tá aprontando...

__ Que isso Bernarda? Eu apenas...

__ Bom dia!

Era a voz forte do pai chegando. Estevão chegou para o café e já tinha ido supervisionar o curral e a lavoura. Era de pouca conversa nesses momentos. Resumia-se a saber da filha se estava tudo bem e se a mucama precisava de algo.

__ Paulo vem almoçar aqui hoje Eugênia. E virando-se para Bernarda, disse: Faz aquela costelinha que ele gosta ó mulher.

__ Sim senhor, balbuciou a escrava, de pouca intimidade com aquele rude homem.

Ainda deu tempo de espiar o rostinho da menina que se avermelhou todinha e custou a soltar a voz ao dizer:

__ Que bom senhor meu pai.

¬¬__ De folga hoje seu Paulo, gritou o escravo de ganho do senhor Manuel Campos que ficava na barbearia.

__ Quero um corte bem feito e a barba zerada. Hoje eu to com vontade de ficar igual doutor, disse entre sorrisos.

¬¬__ Já sei, disse o negro Francisco dando sua costumeira gargalhada, tá cada dia mais apaixonado...

Foi bruscamente interrompido pela ignorância de Paulo.

__Limite-se a seu trabalho e não fale nada. Não quero ouvir comentário de ninguém, entendeu?

__ Sim senhor.

__ Coloque seu vestido branco Eugênia, hoje vamos ter uma conversa junto com o Paulo. Mandei chamar sua tia, mas ela disse que não quer se intrometer nesses assuntos.

E foi-se.

Eugênia ficou gelada. Imaginava que o pai pudesse desconfiar de algo. Mas não. Se assim o fosse já lhe teria castigado com toda energia. Ainda assim ficou sem entender o significado das palavras. Conversou com a mucama que lhe garantiu ser uma conversa para marcar o dia do casamento e só. E a menina subiu as escadas e remoía a expressão “nesses assuntos”.

Desceu em seguida e foi caminhar pelo quintal. Já contei a vocês que ali se encontra um grande lago e depois a grande fazenda. Sentou-se nas pedras e observava as águas e as torres da matriz da Piedade ao longe. Remoía “nesses assuntos” e imaginava uma resposta caso fosse marcada a data do casamento. Ela não queria. não queria mesmo. Mas como dizer isso? Como romper esta tradição? Como não se casar com Paulo? Pensava e pensava em como dizer isso ao pai. Mas ele nunca nem ao menos lhe perguntou sobre o consentimento. Achou que poderia dizer que ele era bruto e que poderia lhe machucar, e certamente o pai não ia querer que a filha se machucasse. Olhou pro céu cinzento e sentiu o vento frio e correu pra cozinha aos gritos.

__ Bernarda, Bernarda. Descobri como fazer que meu pai não me faça casar.

__ Xi, fala baixo menina. Seu pai deve estar por aí ainda...

__ Vou dizer ao papai que o Paulo é violento, decerto não há de querer que a única filha se case com um homem assim...

__ Menina, se assossegue. Paulo é como um filho para o senhor seu pai. Você não se lembra, mas quando sua irmãzinha morreu, com um ano, seu pai já havia pensado em que ela seria a noiva do Paulo. Seu pai sempre quis um filho homem, mas a sorte não lhe deu. A senhora sua mãe era fraca, doente e se alimentava mal. Pouco depois que você nasceu ela se despediu desta vida e me pediu pra que nunca deixasse você abandonada.

O pai nunca falava desses assuntos. Casou-se jovem num casamento arranjado. Estela, a esposa era mulher fiel e dedicada e demorara a ter a primeira filha. Foram três anos de casamento, o que já estava deixando Estêvão envergonhado diante do povo de Águas Claras. Sofria com a morte da filha e da esposa. Ele sempre a tratou com carinho. Agora era ele e Eugênia. E embora Bernarda fosse escrava da casa, sempre a respeitou e nunca levantou a mão ou a voz para ela.

__ Eugênia minha querida, você precisa aceitar sua condição. A mulher não escolhe marido, nunca escolheu! Casa como os pais decidem e pronto. Sempre foi assim minha filha! Olha sua mucama velha, eu nem tive o direito de casar.

E começou a contar sua história. Bernarda era uma das primeiras escravas nascidas no Brasil. Aos quinze anos, tinha apenas se engraçado com um escravinho que não foi adiante. Foi logo vendida para Estêvão que a deixou na casa, junto com a falecida mucama aprendendo os ofícios domésticos. Terminou aqui a vida amorosa de Bernarda. Linda, corpo perfeito, foi motivo de inúmeras promessas de amor de um ou de outro, mas nunca se deixou amar. Trazia a marca e a saudade daquele jovem que um dia ela deixou para trás.

Em meio a tantas histórias, o dia foi avançando. Quando percebeu, já estava quase na hora do almoço. Bernarda que era experiente já estava com a costelinha temperada e o fogo aceso. Da sua janela contemplava montanhas, era o quadro mais lindo que se via de sua cozinha. A menina subiu as escadas para se aprontar. Coração aflito havia agora de ficar remoendo as palavras da mãe preta.

Subia as escadas e pensava: será que não posso escolher como viver minha vida? Ah meus Deus do céu! Será que estarei pecando muito? Como acreditar que o amor é pecado? Como acreditar que querer bem fosse contra Jesus que tanto amou? E remoía, remoía e remoía.

Ajeitou-se rapidamente e esperou que o pai chamasse. Mulher direita não descia à sala quando estava um homem em visita. Bernarda aprontou a mesa, os homens assentaram-se, tomaram vinho, conversaram e o pai a chamou.

__ Eugênia, ô Eugênia, desce aqui filha. Paulo quer lhe ver.

__ Já vou senhor meu pai.

E desceu, olhos úmidos, coração palpitante, cabeça baixa. Precisava encarar Paulo nos olhos e mostrar que não quer se casar com ele. Mas como? E remoía as palavras da mãe preta. E imaginava se ia dizer que se casaria ou não. Pobre menina, essa pergunta não lhe seria feita.

Paulo levantou-se ao ver a jovem, tocou-lhe a mão e beijou-a, como de costume. Arrastou a cadeira e fez aceno com as mãos para que ela se assentasse. Começaram o almoço. Bernarda ficava na cozinha, ouvindo em pé tentando ouvir o assunto e pedindo a Nossa Senhora para não deixar a sinhazinha fazer besteira.

__ Muito bem minha filha - falou o pai após um eterno intervalo entre uma garfada e outra – você sabe que quando nasceu, prometi ao meu amigo, o falecido Erasmo, pai de Paulo, que você se casaria com ele. Não éramos parentes, mas nossa amizade vinha desde a juventude, quando meu pai já convivia com o avô de Paulo, e eu lhe fiz essa promessa no seu leito de morte. O menino ainda era criança. Paulo hoje veio oficializar o pedido e marcar a data. Você já está virando mocinha e não pode ficar solteira por muito tempo. Não quero ver filha minha mal falada nesta cidade.

Ela permanecia de cabeça baixa, parecia querer chorar e não dizia uma só palavra. Certo momento lançou um olhar enigmático para o futuro marido, como que o querendo intimidar.

__ Paulo, faça seu pedido.

Na cozinha Bernarda fazia milhares de sinal da cruz, fechava os olhos fervorosamente e pedia a intervenção divina...

__ Pois bem, senhor Estêvão. E virando-se, continuou: Minha cara senhorita Eugênia, em memória do senhor meu pai, e atendendo à promessa feita por seu pai, venho pedir-lhe a sua mão em casamento, o que é o meu mais profundo desejo.

__ Está concedido o matrimônio Paulo. Vamos unir nossas famílias, e vocês vão gerar herdeiros netos para perpetuar nossa memória.

Eugênia pensava no encontro marcado para a noite daquela terça-feira. Era a única sensação que lhe passava pela mente. Imaginava como ia sair, imaginava se alguém a visse, imaginava o mundo... nem parecia estar ali. Mas ouviu, apesar disso, palavra por palavra de Paulo. Pensava que iriam perguntar sobre sua aceitação. Não perguntaram. Queria saber se Paulo a amava ou se pedia casamento somente por causa da promessa a seu pai. Já ouvira histórias dele com uma ou outra de suas escravas. E dava-lhe grande vontade de gritar que amava alguém que não fosse Paulo, que ele não precisava se casar por obrigação, que ela dispensava-o desse fardo.

__ Com todo respeito, senhor Estêvão, eu gostaria de saber se é da vontade da senhorita Eugênia casar-se comigo, se ela está satisfeita com a promessa...

Súbito, ele levantou-se, puxou o cinto para cima e disse com voz e rosto carrancudo e levantando o dedo para o genro: Ora já se viu! Isso é lá pergunta que se faça? Casamento é promessa feita e cumprida. Não existe se está satisfeita ou não. Ora que ideias meu Paulo?

__ Desculpe-me, só quis ser gentil com a senhorita Eugênia.

Após um silêncio mortal, encerrou-se o almoço. Estêvão desconfiado daquela conversa foi-se para o trabalho pensante. Paulo, na verdade, nada quis dizer de significativo. Apenas realmente queria ser gentil. Já Eugênia pensava que Paulo talvez a dispensasse do casamento. E assim mais segura ficou para seu encontro.

Dia longo. Nos dois lados da pequena cidade. Eugênia planejara cada passo e como ia sair escondida. Chegou a noite enfim. Eram vinte e uma horas quando todos foram dormir e as luzes dos quartos foram apagadas. Burburinho na senzala, cozinha silente. Eugênia respirava ofegante. Colocou sapatos de tecido e esperou olhando pela janela a noite que estava brilhante. Vinte minutos antes, passo a passo desceu as escadarias. Ninguém a viu, ninguém imaginaria que a sinhazinha poderia pensar em sair. Paulo também não dormia. Pensava no silêncio e na indiferença da moça. Sabia que ela não o amava e imaginava que seu coração era ocupado por alguém. Nenhuma mulher demonstrava esse desinteresse. E pensou em observar a moça.

A porta estava destrancada. Eugênia havia deixado tudo pronto. Saiu. Colocou um capuz e saiu discretamente. Como sua casa ficava no fim da cidade, ninguém a veria. Chegou na estradinha e olhava para os lados. Assustada, quando ouviu um barulho de galho balançando e uma voz suave:

__ Oi.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 23/11/2014
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