A CARTA DA TIA MARILDA
 


 
O poeta lembrava-se de tudo em relação à sua amada.
Lembrava dos seus olhos brilhantes cor de mel; dos seus lábios carnudos porem finos; lembrava dos fios de cabelos macios e sedosos também da cor de mel e que contrastava de forma harmoniosa com todo o seu rosto, corpo e alma.
O seu corpo. Ah! O seu corpo. Que perfeição. Quanta lembrança boa de inúmeros momentos mágicos em que ambos rolavam na cama, no chão, nas relvas dos campos, na praia, nos rios, no mar ou em toda e qualquer parte do mundo onde estivessem.
Mas que maçada... Não conseguia lembrar-se da carta e do seu teor deixada pelo seu amor no momento da partida. E pior ainda, por mais que se esforçasse não conseguia lembrar onde a colocara.
Lembrava-se das coisas e acontecimentos desde a sua infância e juventude. Nada importante. Recordava ocorrências de mais de três ou quatro décadas, no entanto não conseguia lembrar-se dos detalhes e do conteúdo da carta da sua amada, deixada tão recente. Sabia que existia e que estava por perto em algum lugar. Sabia também que aquela carta era muito importante para ele.
E o tempo que nessas situações é crucial passa voando, claro, não parava um milésimo de segundo sequer. O poeta no marasmo da procura cavoucava mentalmente cada fagulha dos seus miolos na esperança de encontrar aquilo que seria a sua tábua da salvação. Onde estaria a carta da sua amada?
Ah! Esse tempo que não para. Ah! Essa carta que acho...., murmurava o poeta muitas vezes até com as lágrimas escorrendo pelo rosto.
Já cansado, sem força física ou mental estava prestes a desistir de tudo. Numa tarde chuvosa e nublada recolheu-se para tirar uma sexta, recostou-se no catre da cama, calçando-o com um travesseiro macio, buscou na estante próxima um livro de poesia qualquer e aleatoriamente achou Vinícius de Moraes.
Quase adormecido começou ler a mensagens contidas no Samba da bênção música em que o Vinícius fez parceria com o saudoso Baden Power que diz:
“Senão é como amar uma mulher só linda. E daí? Uma mulher tem que ter qualquer coisa além de beleza, qualquer coisa de triste, qualquer coisa que chora, qualquer coisa que sente saudade. Um molejo de amor machucado, uma beleza que vem da tristeza de se saber mulher
que foi feita apenas para amar, para sofrer pelo seu amor e pra ser só perdão.

A vida é pra valer. E não se engane não, tem uma só. Duas mesmo que é bom ninguém vai me dizer que tem sem provar muito bem provado
com certidão passada em cartório do céu e assinado embaixo: Deus.
E com firma reconhecida! A vida não é brincadeira, amigo. A vida é arte do encontro embora haja tanto desencontro pela vida. Há sempre uma mulher à sua espera com os olhos cheios de carinho e as mãos cheias de perdão”.

Já então divagando balbuciou as mesmas frases da música misturadas com as dos seus pensamentos na mulher amada que se fora, dizendo para si que haveria de encontrar a carta ainda que fosse a última coisa a fazer na sua existência.
Emília, uma menina de oito anos de idade, mas esperta como uma mocinha de quinze entrou no quarto segurando entre o seu corpo e o braço esquerdo o Teco, seu gatinho de estimação e na mão direita uma carta empoeirada, gritando:
          -Tio Carlos, tio poeta, achei uma carta que a tia Marilda deixou pra você. Sabe por que é que eu sei que é pro senhor? Porque está escrito paro o meu amado Carlos poeta. Você quer que eu leia o que está escrito? Posso ler?
          - Acorda tio Carlos. Escuta isso: A tia Marilda diz que não é poeta, mas que escreveu uma poesia pra você, que nunca a leu. Diz também que você nunca fez uma poesia só pra ela. É verdade isso tio?
O poeta levantou-se meio dormindo, meio assustado e confuso. Olhou para a criança e falou com carinho:
          - Emília, minha criança linda, obrigado por salvar a minha vida. Eu já estava estudando a melhor forma de morrer por causa dessa carta. Onde você a achou?
A menina com ar triunfante e bem feliz explicou da maneira mais ingênua e imaginária:
          - Eu estava brincando com o Teco em baixo da cama do quarto grande que vocês dormiam e vi uma pasta preta bem debaixo do colchão. Peguei e abri a pasta encontrando uma porção de fotografias antigas e amareladas, um livro de poesia dum homem chamado Vinícius de Morais e dentro do livro estava esta carta. Como eu sei que era ela que você procurava vim trazer pra você, tio Carlos. Tio, você ficou bravo comigo porque eu mexi nas suas coisas?
O poeta agora chorando copiosamente abraçou aquele anjo como se fosse a pessoa mais amada do mundo, falando entre soluços e lágrimas:
- “ A perda de um grande amor, seja por qual motivo for,
Mesmo que faça parte da nossa difícil provação,
Mexe com os nossos brios, com as nossas almas,
E nos ensina a compreender o motivo dolorido da partida.
- Hoje minha criança Emília, você mexeu em coisas minhas
Por indução da minha amada, apenas pra me devolver a vida”.
          - Não minha querida. Não estou e, nunca estarei bravo com você. De hoje em diante tenho mais é que agradecer pelo resto da minha vida por achar a carta que eu tanto precisava. Sabe por que?
          - Porque nesta carta a sua tia Marilda, que foi e eternamente será o meu único amor me alertava de que não adianta viver poetando por aí para os outros se o nosso coração ainda não é só poesia.
          - Agora que você fez esse grande favor ao seu tio eu entendi o quanto a MARILDA aguardou um poema para ela feito por mim. Eu que sempre a amei e ela que nasceu pra me amar escondemos os nossos poemas um do outro. Ela partiu sem ler o único acróstico que eu fiz na vida como poeta.
          - Agora queridinha, leia se quiser o único poema que fiz em forma de acróstico em toda minha vida de poeta:
" Mentora e idealizadora dos meus mais lindos sonhos.
Anjo bom que Deus colocou ao meu lado para me guardar.
Regozijo-me e agradeço a Deus diuturnamente esse amor.
Iluminas não só o meu caminho com os teus raios de luz,
Levando e trazendo lenitivos eficazes para nossas vidas.
Dei-me conta do quanto me és importante a todo instante,
A partir da hora em que os meus olhos te viram radiante ".

               - E leia minha sobrinha Emília, o que a sua tia Marilda havia me escrito antes da partida:
 
“ Casei-me com alguém que nem conhecia.
Achava que a minha felicidade estava comprometida.
Retirei do fundo da mim há alma todas as forças que tinha.
Lia diariamente no livro da vida as mensagens de Deus.
Orei sempre agradecendo a Deus as bênçãos recebidas.
Santo foi o dia em que nos encontramos e nos amamos “.
 
E tinha mais um detalhe importante que o poeta tio Carlos explicou a menina como se estivesse dialogando com um adulto:
               - Ela diz na carta que a sua partida é inevitável, mas que está feliz, pois, pelo menos uma vez na vida conseguira escrever um acróstico para o seu próprio poeta.