O vestido mal costurado de 1962

Desconfio que a década mais romântica que já existiu fora a de 60. Confesso também que isso se deve à fase mais bela que eu já vivera: a juventude. E eu estava lá, vestindo os meus sapatos de boneca sujos de barro, metida num vestido mal costurado e um pouco amarrotado a caminho do baile. Mas ninguém ligava para a beleza impecável. Todos viviam a mesma realidade e partilhavam dos mesmos sonhos. Cidadezinha de beira de estrada não carrega muita riqueza, apenas as mesmas histórias contadas de geração para geração. Só que algumas pessoas realmente tinham o dom de iluminar uma rua mais do que qualquer poste, mais do que qualquer lua.

E, naquela noite, embora as estrelas acampassem no céu, a lua dispensava brilho alheio. Eram corriqueiras noites assim. Por isso, eu e minhas irmãs ansiávamos pelos sábados de baile. Eles faziam da cidade uma verdadeira festa coletiva, onde os habitantes da pacata região se reuniam para conversar, dançar, beber e paquerar. Ninguém se importava em ir embora a pé, porque sempre havia companhia. Todos se conheciam, então todos eram lar. Mas eu só conhecera o verdadeiro sentido de lar quando decidi sair naquela noite quente de 1962.

Entre eu e minhas três irmãs, havia sempre uma disputa para quem iria usar o vestido mais formoso feito pela minha mãe. Como sabido, eu nunca tinha tido a chance de usá-lo sendo a mais nova de nós. Mesmo assim, resolvi costurar o meu próprio vestido com os restos de tecido deixados no canto do quarto na madrugada de sexta-feira. Tive sorte de não ter sido flagrada pelo sono leve de minha mãe. No sábado, como em todo dia de baile, logo cedo já havia a expectativa de quem usaria o vestido com detalhes de pérola. Não demorou muito para que, mais uma vez, minha irmã mais velha fosse escolhida.

Eu sabia que estava fazendo a coisa errada, mas nunca me senti fazendo isso de forma tão certa. Eu estava louca para que, no auge dos meus 17 anos, alguém me visse como uma mulher de vestido bonito e de sapatos delicados. Mas o problema era o caminho de estrada de chão. Aliás, o problema sempre tinha sido o caminho. Ainda mais para uma jovem que por tudo esperava, aí então o caminho era maior. Àquela altura da noite com vento abafado, caminhando pelo barro rumo ao baile mais sonhado e idealizado na minha pequena imaginação de grande ingenuidade, um rapaz de altura mediana, com cabelos pouco desgrenhados e expressão púbere me pergunta sobre o vestido que eu vestia.

A partir disso, subimos a ladeira que dava entrada à festa conversando sobre banalidades e eu lhe disse, constrangida, sobre o vestido e que eu mesma havia feito. A costura torta havia chamado sua atenção. E eu preocupada com meus sapatos de boneca sujos. Mas devo admitir que, se não fosse por ela, eu jamais teria conhecido o homem que habitou meus sonhos infantojuvenis com tanta vivacidade. E foi esperando pelo momento de usar um vestido de pérola para ir a um baile que eu percebi a bobagem que é esperar. Nada mais infeliz do que percorrer um trajeto com destino sem olhar por onde anda, sem admirar a paisagem, sem perceber oportunidades. Enfim, não importava mais o baile. Por mim, aquela estradinha de chão íngreme poderia se estender por uma infinidade de quilômetros, até que a lua virasse sol ou tempo nublado. E, ainda assim, nada impediria aquele rapaz de iluminar aquela rua.

Mariana Sanches
Enviado por Mariana Sanches em 24/05/2015
Código do texto: T5253737
Classificação de conteúdo: seguro