Reencontro
 
- Você não é a...?
 
- E você é o...
 
- Continua bonita.
 
- E você, bonzinho. Lembra-se que eu dizia que você era muito bonzinho?        
 
- Como esquecer.
 
- Muito bom encontrá-lo. Não esperava.
 
- Você sumiu. Fez muita falta.
 
- A quem?
 
- A mim, ora!
 
- Casou?
 
- Mantenho uma sociedade conjugal.
 
- Então casou.
 
- E você?
 
- Uma vez e meia.
 
- Como assim?
 
- Viuvei muito cedo. Depois vivi meio junto. Não deu certo para juntar de vez. Rompi. Sujeito rude, lá da fronteira. Metido a mandar. Pra cima de mim, não!
 
- Filhos?
 
- Duas meninas, do casamento. E você?
 
- Um casal. Formou-se no que pretendia?
 
- Conforme eu falava, lembra-se? Nada de centro cirúrgico, nada de sangue. Sou pediatra. Tenho consultório próprio.
 
- Fico contente em saber. Você queria tanto.
 
- Infeliz no amor, sorte na profissão. Ainda bem.
 
- Tivesse casado comigo, hoje não seria viúva nem teria amargurado relacionamento frustrado.
 
- Você não me queria!
 
- Queria, sim! Só me esqueci de dizer.
 
- Esperei muito. Por que esqueceu?
 
- A hora ainda não tinha chegado. Muito novos, eu e você. Seu pai não deixaria. Assim, achava que não devia correr o risco de queimar cartucho à toa. Ia esperar mais um pouco.
 
- Pena.
 
- Muito tempo sem vê-la. Não aparecia mais nos lugares onde nos víamos. Fui à sua casa.
 
- E daí?
 
- Um homem disse que vocês tinham mudado. Talvez voltado para o Sul. Ele não sabia ao certo.
 
- Papai precisava ficar mais perto da fazenda. E a encrenca com os militares já não tinha tanta importância. Decidiu voltar.
 
- Lembro-me de que ele implicava com os milicos. Acho que não iria querer um genro filhote da ditatura, mesmo eu não sendo militar.
 
- Não era questão de ideologia ou regime. Ele apoiava a causa, mas condenava os excessos e abusos. Não suportava ver os caminhões do Exército levando presos colonos inofensivos na carroceria. Os coitados nem sabiam o que era comunismo, terrorismo, essas coisas.
 
- Eu o ouvi contar.
 
- Discutiu com um major. Foi feio. O oficial falou para ele sossegar o pito porque fazia tempo estava de olho no meu irmão. À menor vacilada do guri, ele o meteria em cana.
 
- Por isso resolveu vir pra cá. Bem longe...
 
- Até as coisas esfriarem. Foi bom aqui. Podia ter sido melhor se você...
 
- Para mim também. Muito melhor se tivesse ficado.

- Não foi possível. A mudança independia da minha vontade. Assunto de família.
 
- Ainda borda? Lembra-se do bastidor que você me pediu para fazer?
 
- Claro, mas não deu muito certo. Essas coisas de livros e revistas são mais para fotografia. Nem sempre funcionam.
 
- É, nem sempre.
 
- Ainda tenho.
 
- O quê?
 
- O bastidor. Guardei de recordação.
 
- E os bordados?
 
- Falta tempo. Mas ainda gosto. Quem sabe quando vierem os netos eu faça alguma coisinha.
 
- Lastimo você não poder falar nossos netos...
 
- Coisas da vida. Não pôde ser.
 
- Eu devia ter me esforçado.
 
- Eu também. Não se culpe sozinho. Nem tenha remorsos.
 
- Você está linda. Pele boa, corpo enxuto. Mantém o cabelo da mesma cor, só mais curto.
 
- Milagre das tinturas de hoje. Parece natural.
 
- Parece mesmo.
 
- Você também não está mal. Tem se cuidado?
 
- Pouco.
 
- Amanhã vou embora. Estou de passagem. Queria apenas rever a cidade.
 
- A casa onde você morou ainda existe. Quase do mesmo jeito. O bairro, no entanto, mudou bastante. Sua rua agora é movimentada, faz parte da ligação entre cinco bairros. Passa ônibus. Precisa ver.
 
- E o meu colégio?
 
- O Iguassu fechou. A praça está muito diferente. É terminal de transporte público. Irreconhecível.
 
- Recordo-me de uma tarde em que nos encontramos no ônibus. Eu estava indo jogar vôlei no colégio, no contraturno. Na Zacarias, fui para um lado e você para o outro. Torci para que fosse me buscar mais tarde. Não apareceu.
 
- Nunca me esqueci desse dia. Você estava mais radiante do que nunca. Ainda a vejo sorrindo alegre na despedida. No até logo. Nunca me perdoei por não tê-la ido buscar depois. Bobão, eu.
 
- Bobinho.
 
- Podemos jantar, para aproveitar um pouco mais esse encontro, tendo em vista que vai embora amanhã?
 
- Não. Melhor não. Você tem compromisso. Não quero atrapalhar nem alimentar nada. Tenho medo de não resistir ao que você poderia propor em seguida.
 
- Proporia, confesso.
 
- Eu não disse?
 
- Então me dê seu telefone. Prometo não incomodar. Só para ligar de vez em quando. Saber se está bem. Prometo.
 
- Vou gostar. Ligue quando puder. Não incomodará.
 
- Estou feliz. Voltei aos dezessete, nesses minutos.
 
- Eu, aos quinze, ou quatorze. Obrigada. Telefone.
 
- Um abraço?
 
- Claro, um abraço. Por que não?
 
- Nossos braços ainda se encaixam como antes.
 
- Sinto seu coração no compasso do meu.
 
- Tchau.
 
- Tchau.
 
Como naquele dia do vôlei no colégio, seguiram em sentidos opostos. Uma dezena de passos e voltaram-se ao mesmo tempo. Acenaram e sorriram juntos, como na mesma tarde do vôlei no colégio. Então, partiram. Cada um para o seu lado, a embalar nos braços da lembrança  e da saudade o calor do último abraço.


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N. do A. 1 – Na ilustração, Homem e Mulher de Daniel F. Gerhartz (EUA, 1965).
 
N. do A. 2 – A grafia Iguassu, como empregada no contexto, está correta. É uma referência ao antigo Colégio Iguassu, de Curitiba, Paraná, que se escrevia com dois esses e não com cê-cedilha como, por exemplo, Rio Iguaçu, atualmente.
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 27/05/2015
Reeditado em 12/06/2021
Código do texto: T5256331
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