Sábado com LSD na janela

Don't you want somebody to love

Don't you need somebody to love

Wouldn't you love somebody to love

You better find somebody to love

Jefferson Airplane

Uma tela para o mundo, para o meu quarto. Um filme? Mas quem assiste, eles ou eu? Eu dentro da TV, olhando para a TV. Queria tanto ver você, mas sou apenas imagem na tela, encenação de mim mesmo, virtual, desvirtualizado.

Terceiro andar... Sozinho no apartamento... Um sábado qualquer, como todos os outros. Mas não hoje... Ontem? Há dias? Semanas? Confuso... Estava na boate... agora aqui. Você está comigo... Estava... Aquela festa cult de... Você sabe que não sou muito de sair, que estava ali por você. Gente demais! Senti-me sufocado, sobrando, deslocado. Não me envolvi, e você se irritou por eu não falar com seus amigos. Também me chateei, pois queria você só para mim. Você, centro das atenções! Eu, sombra ao seu lado, ouvindo suas conversas sobre Astrologia e pessoas e cinema e literatura e misticismo e lugares e comidas... Sua voz preenchia o meu silêncio, sua mão, segurava a minha... Aquela sensação indefinível, inominável, que só entendemos ao senti-la.

Você percebeu meu olhar distante e pediu para eu relaxar, curtir a festa. Respondi que só de estar ao teu lado tudo fazia sentido. E beijou-me, chamou-me de bobão. Disse que preciso sair mais, que não é legal passarmos todos os fins de semana em meu quarto, ouvindo clássicos do rock, vendo filmes, namorando. Que isso é ótimo, mas que é divertido sair com a galera também. E tentou incluir-me nas conversas, beliscou-me e sussurrou ao meu ouvido para não parecer tão esquisito.

Devo estar em meu quarto, porém está diferente. Os contornos dos móveis, das paredes, incertos, evanescentes. Tudo tão colorido! Há! Há! Através da janela, ouço as pessoas lá fora, conversando, muitas vozes ao mesmo tempo, como um zumbir de dezenas de insetos voando. As músicas, confundindo-se em uma cacofonia insuportável, dançando na minha frente, loucamente... A barata olhando-me da parede, enorme. Encaro-a também, consigo ouvir seus movimentos com nitidez, roendo alguma coisa. Fala comigo, mas não consigo compreender. “Não vou comê-la” – mas poderia. “Quem sabe assim eu me encontre, como... como a mulher naquele...”.

Sábado Saturno capricórnio, lua em capricórnio, capricórnio ascendente em libra. Você falava falava falava e eu nada entendia. Dizia que sou pessimista, calmo, fatalista, por causa do meu signo. Achava tudo uma grande tolice, mas prestava atenção, e passaria a vida ouvindo-a tagarelar bobagens, com sua voz singular, meio infantil, doce, insana... Você prometeu meu mapa astral. Perguntei como era. Garantiu que me explicaria em detalhes, já que eu não entendia desses assuntos. E imaginava-me ao seu lado, olhando sua boca, você falando falando falando, com sua voz infantil-doce-insana.

Saio de minha distração ao perceber que vocês comentavam algo sobre os Rolling Stones. Só então falo. Dessombro-me, ressignifico-me. Desde que você começou o curso de Psicologia adotou essa palavra. Assegurou que preciso ressignificar minha vida, esforçar-me para ser mais sociável, expressar o que sinto, não foi isso? E tento, juro. Vês como tenho mudado contigo? Eu nunca antes tinha tratado alguém com tanto carinho e falado coisas-românticas-que-os-casais-dizem-um-ao-outro. Só com você.

Suas amigas estavam bêbadas, eufóricas, dançando, conversando. Uma delas, a baixinha, ofereceu-me os tais doces. Neguei, mas ela insistiu, colocou-os em minha mão, fechou-a rudemente. “Para você se soltar mais”. Sem saber como reagir, agradeci, e assim que se virou, joguei-os no bolso. Você não viu, tinha ido ao banheiro.

Então eles a avistaram, enquanto passavam por nós, seus dois amigos. Falaram com você, rindo, com exagerada intimidade. Nesse momento, aquilo que chamam de ciúmes começou a tomar-me, e senti tanta raiva, uma angústia, uma sensação desagradável subindo pelo corpo, um gosto ruim na boca. Quero-te só para mim. Não é egoísmo nem sensação de posse... Mas gosto de você, muito, como nunca gostei de ninguém. Eles estavam tão bêbados quanto suas amigas e pareceu não me notarem. E quando aquele idiota abarcou-a pela cintura e tentou beijá-la, não me contive. Antes que você tivesse qualquer reação, avancei, e esmurrei-o com tanta força, que alguns dentes trincaram e sangue escorreu pela sua boca.

Eu sei, exagerei, mas não pensei em mais nada naquela instante, só nos braços dele em torno de você, quando deveriam ser os meus. Várias pessoas correram para ajudá-lo e você gritou comigo, disse que eu era um idiota, que não era para tanto, que ele só estava bêbado. E que estava cansada de mim, do meu jeito estranho, por falar tão pouco. Queria poder explicar-me, mas você não deixou, e pediu para eu ir embora, voltar pro meu quarto, sumir.

Foi como um pesadelo. Tentei me esconder correr fugir desaparecer. Nunca antes ninguém tinha gritado comigo dessa forma. Tantos nunca-antes depois que a conheci. Talvez nunca antes vivi, antes de você. Nunca quero te perder, antes... antes...

Lembro-me de pouca coisa após o acontecido. A boate escura tornou-se borrões e sombras, os rostos desfiguraram-se. Perdi a noção de tudo. Como se de muito distante, sua amiga baixinha pareceu falar-me algo sobre não ter uma bad. Bad bad bad bad... dab dab dab...

Tento te ligar a horas. Por que não atende? Não quer mais me ver? Pensei que talvez você retornasse, depois que a raiva diminuísse... Não sei o que farei sem você. Eu que sempre achei isso de apaixonar-se uma besteira, coisa de menininhas bobas e românticas... Mas você é diferente de todas elas, é como aquela garota do filme, como alguém que eu queria ter e sequer sabia, que não sabia que existia, que não existe... sei lá... Talvez você existe apenas na minha cabeça?...

Não me sinto bem... Não devia ter tomado aquilo. Isso não me faria igual aos outros. Agir como eles não me fará... Mas não quero ser como eles. Nunca usei essas coisas, acho... Estava tão mal. Queria esquecer o que aconteceu. Está um calor anormal. Minha cabeça dói... Não quero te perder... Por favor, pare de me olhar assim. Não coma a barata, não! Tem algo escorrendo em meu rosto, está chovendo...

Eles olhando para mim, eu olhando para eles, eu olhando para mim. Eu na TV, eles na TV. Berro para pararem de me olhar, deixarem-me em paz. Preciso sair daqui, não quero ser apenas representação, quero juntar-me a eles no filme, quem sabe assim você para de me achar estranho, de dizer que preciso me socializar. Era você naquele filme? Aquela menina roqueira e metida a entendedora de Astrologia, misticismo, Psicologia? Por que estão todos olhando para mim? É você lá embaixo com eles, gritando, acenando? “O que você... Cuidado... Vai cair... Não pule... Calma...” Não consigo entender direito o que diz. Espere, vou sair desta tela, vou até aí. Abraçar-lhe, Ana...

Jorge Santos Nogueira
Enviado por Jorge Santos Nogueira em 03/07/2015
Reeditado em 03/07/2015
Código do texto: T5298742
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