Um final surpreendente

- Oi... posso me sentar com você?

Eu estava tomando café na lanchonete próxima do trabalho. Era um hábito que eu tinha, me sentar lá alguns minutos e relaxar antes de voltar pra casa. Neste momento eu estava sozinho, brincando com minha xícara de capuccino cheia pela metade. Eu gostava de brincar com o chantilly, vendo os desenhos que ele formava na borda da xícara. E definitivamente não gostava de ser interrompido, por isso estava sozinho. Meus colegas me conheciam a anos e não se atreviam a me incomodar. Tentei desconversar.

- me desculpe, mas já nos conhecemos?

Uma mulher não tão velha, porém muito bonita, me sorriu um sorriso estranho. E parece que sentiu prazer em responder, sem a menor preocupação de abaixar o tom de voz.

- Sim... eu e você somos pacientes do doutor Frank... eu a muito mais tempo, claro...

- Doutor Frank...?

Eu não me lembrava de conhecer nenhum médico com esse nome e já ia falar que ela estava me confundindo quando ela se sentou para abaixar o tom de voz. Coisa que eu achei em parte, desnecessária. Ela chegou o tórax pra frente, sobre a mesa e falou com um sorriso.

- na verdade... o nome verdadeiro dele é dr Francisco, mas eu o apelidei carinhosamente de dr Frankstein... o ex mutilador... ou o hipnotizador... como achar melhor...

Pronto... ela conseguiu o que queria. Eu larguei minha valiosa xícara para prestar atenção nela. Eu estava fazendo um tratamento psiquiátrico, mas fui a poucas consultas. Mas só porque eu estava precisando relaxar e ele me passou um calmante muito leve. Mas tentei imaginar por que aquela ali era paciente antiga dele.

- Ah! Sei... me desculpe, mas não me lembro de você e...

- mas isso era esperado... você não tira os olhos da revista, parecendo até que se sente desconfortável lá... no meio de doidos...

- e você é paciente dele, então?

Ela me sorriu quase diabólica. E não parecia nem um pouco desconcertada com minha provocação.

- Há muito tempo... na verdade em nem pago consulta... meu caso é tão interessante que ele me pede para ir lá, pra ele me estudar... Você se importa de me pagar um café igual ao seu? Eu também vou querer pão de queijo... tudo bem? É que estou com fome...

Eu nem soube o que dizer... quer dizer, não pelo dinheiro, pois aquilo não era nada. E nem pelo gesto, pois eu sempre pagava cafés para meus amigos. A questão primordial era: como alguém tinha coragem de se oferecer desse jeito?

Fiz o pedido, esperei ela comer, depois que o garçom recolheu os restos mortais, disparei uma pergunta fatal.

- Que mais?

- que mais, o quê?

- além de compartilharmos do mesmo médico e de você estar com fome, existe algum outro motivo pra você se sentar aqui comigo?

Eu tive vontade de falar que ela estava atrapalhando o meu relaxamento, aliás, por recomendação médica. Mas não quis ser tão mal educado, pois a moça não me pareceu uma verdadeira ameaça. Era apenas inconveniente.

- na verdade... eu queria te dar um conselho... – claro que eu nem tentei disfarçar minha cara assustada – é que eu fiquei com pena de você e acho que você merece saber a verdade...

Pronto... era só o que me faltava... talvez ela fosse mesmo paciente do tal doutor, já que ate agora eu não conseguia me lembrar dela. De repente um pensamento que eu estava sendo feito de bobo me veio à mente e eu quase me levantei, mas ela me assustou mais ainda.

- Não... eu não estou te fazendo de bobo... E eu no seu lugar me doaria alguns minutos, pois isso vai fazer muita diferença na sua vida...

Quase mandei ela desembuchar, pois isso estava começando a me irritar. Ela disparou, sem rodeios.

- é o seguinte: você não está ficando doido. Eu sei que você está indo no dr Frank por que está ouvindo vozes... e sei que ele falou que você está estressado, mas isso não é totalmente verdade... Quer dizer, você está estressado, isso não é difícil de perceber... mas não é isso que está provocando esses fenômenos... uma coisa não tem nada a ver com a outra, mas o estresse agrava a sua condição, não há dúvida. E é aí que eu entro...

Eu tive a impressão que o ar parou. Havia um milhão de perguntas a serem feitas, mas só uma surgiu na ponta da língua. Na verdade foi uma acusação.

- Pensei que as consultas eram sigilosas...

- Mas você não falou pro doutor que ouve vozes...

Um pergunta óbvia nasceu na minha boca e deixei ela fluir, pois eu há muito havia perdido o controle da situação.

- E como você ficou sabendo disso tudo? Quer dizer, se de fato isso for verdade, pois eu ainda não cheguei a uma conclusão do que, de fato, esteja acontecendo... mas supondo que isso seja verdade, como é que...

- Meu anjo me falou... de você... e eu vi um espírito dependurado no seu pescoço, agora a pouco, falando coisas no seu ouvido... mas não se preocupe que ele já se foi...

De repente eu senti que estava fazendo um verdadeiro papel de idiota. Mas decidi dar corda.

- Seu anjo? Mas então você conhece seu anjo? Você quer dizer anjo da guarda? Igual aqueles garotinhos que flutuam, de cabelos encaracolados e asas douradas?

Ela me olhou ironicamente e eu quase a vi se levantando. Mas percebi que ela fez uma força sobre humana para permanecer sentada. Depois falou indisposta.

- Não... na verdade esses anjos são folclóricos... das historias da carochinha e muito me admira você acreditar nelas... mas vamos lá... deixa de enrolação... é o seguinte... eu vejo e ouço os espíritos e meu anjo da guarda é um espírito. Ou seja... é um homem igual a você, sem enfeites, mas que não tem corpo. Acontece o seguinte... eu e ele... nós.... estamos desenvolvendo um trabalho e... bem... a minha conversa com você é fruto de uma conversa que eu tive com ele... mas o que está em discussão aqui é o que o conhecimento da existência dos espíritos pode ajudar na nossa vida. Quer dizer... vamos voltar pra você... Você foi no médico por que acha que está estressado... você está, é verdade, a sua impaciência e sua testa enrugada mostram isso. Mas não é por isso que você está ouvindo as vozes na sua cabeça... essas vozes nada mais são que os espíritos que falam com você e você consegue ouvi-los. Isso se chama mediunidade, que nada mais é que um ouvido a mais que algumas pessoas tem. E esse ouvido permite escutar o que os olhos não vêem, por assim dizer.

Eu não achei palavras para contestar ou concordar ou questionar. Ela foi benevolente.

- Então não adianta você tomar remédios pra abafar essas vozes... na verdade você precisa é aprender a ouvi-las, para selecionar o que deve ouvir... o mundo é cheio de espíritos e vários deles se ligam a nós, por algum motivo. E se você quiser não ouvi-los, vai ter que passar o resto da sua vida dopado. Agora... se você quiser aprender controlar essa habilidade... aí sim você vai ter um vida mais proveitosa. E o que os espíritos falam? Talvez você ainda não tenha conseguido chegar nesse ponto. Mas os espíritos sérios te falam coisas importantes... os levianos só fazem hora com a sua cara... e tem os mistificadores, enfim... estudo pra você é uma necessidade... você precisa ler o Livro dos espíritos e o evangelho segundo o espiritismo. Só pra começar... Depois que você ler esses livros e visitar um centro espírita, deve ter um pertinho da sua casa, aí nós podemos voltar a conversar...

Do jeito que ela apareceu na minha vida, se foi. E num piscar de olhos eu estava novamente sozinho, com minha xícara inacabada, agora fria. Pensei em pedir outro café, mas perdi a vontade. Aquela aparição súbita e aparentemente descabida me destemperou. Fiquei ainda alguns dias pensando naquele encontro e mais ainda esperando ela no horário de sempre, mas nunca mais a vi. Se ela tinha segundas intenções comigo, deve ter desistido. Tanto melhor, pois não a achei muito normal.

Mas algumas semanas depois a secretária do médico ligou para confirmar a consulta. Contei os minutos para o horário marcado e me sentei na sala de espera com olhares expectantes. Mas a moça não estava lá e me lembrei que nem sabia o nome dela para averiguar se a versão dela era mesmo verdadeira.

Quando entrei no consultório e antes do final da consulta, quando o doutor pergunta se o paciente está se sentindo melhor, me veio a fala dela à memória.

- Doutor... alguns dias atrás uma mulher me abordou, enquanto eu tomava meu café em uma padaria, dizendo que me conhecia do seu consultório... – o homem me olhou atentamente e soltou a caneta - ela disse que é sua paciente só para observação, por que o senhor é um mutilador... hipnotizador... de pacientes. – ele jogou o corpo nas costas da cadeira e parece que ficou sem respirar – bem... mas ela disse ainda que eu estou ouvindo vozes na minha cabeça que na verdade são espíritos... e como eu não falei nada com o senhor, porque não achei necessário, gostaria de saber sua opinião...

- A respeito de quê?

- dos espíritos... eles existem mesmo?

O homem coçou o queixo e estreitou os olhos para mim. Eu não tinha reparado no quanto ele é simpático, inspirando segurança, exatamente como um psiquiatra deve ser.

- Eu sou um homem da ciência, Sr Gustavo, e a ciência ainda não comprovou a existência de espíritos. Logo, não posso receitá-los em meu consultório... mas tenho muitos pacientes que melhoraram com a leitura do evangelho, o passe, a vigilância do pensamento, a auto disciplina, o trabalho voluntário, a caridade... tudo isso é o que a doutrina dos espíritos prega, para a melhoria dos nossos males. Eu mesmo tomo passe toda semana e faço a leitura do evangelho no lar. Te afirmo que minha vida melhorou muito, não que os problemas diminuíram, mas eu me sinto mais forte para enfrentá-los.

Eu fiquei desconcertado com essa resposta.

- Mas o senhor acha que ela pode estar certa? Quer dizer... as vozes podem ser mesmo espíritos?

- Eu acho que vale a pena investigar, embora o senhor não tenha feito essa queixa antes – ele pareceu pensativo – mas a fonte que te falou isso é muito confiável, pode ficar tranqüilo. Se fosse só o senhor me falando das vozes, não sei se eu chegaria a esse raciocínio, mas vindo dela...

- Por que? O que tem ela demais? Eu sinceramente achei ela meio estranha... não falando coisa com coisa...

- O que, senhor Gustavo, o que essa paciente falou que te impressionou tanto?

- Sei lá... conversa pelos cotovelos... me pediu pra eu pagar um café pra ela... se ofereceu pra sentar na minha mesa... depois sumiu sem dizer mais palavras... apenas que depois que eu lesse uns livros, que daí nos falaríamos...

- E ela procurou o senhor mais vezes?

- Não... não... por isso eu vim saber do senhor se devo confiar nas orientações dela...

- sim... sim... eu confio plenamente nessa paciente, senhor Gustavo, e me atrevo a dizer que se meu consultório está lotado, grande parte é pela ajuda dela. Ela faz uma captação desses pacientes que tem a mediunidade interferindo na saúde, pois os pacientes chegam com a queixa do organismo estar estragado, mas na verdade é a mediunidade que está descontrolada. E essa paciente tem um grupo de estudos pra explicar isso. Se o senhor quiser participar... mas sugiro que leia os tais livros primeiro, senão o senhor vai ficar perdido...

Em seguida o doutor me entregou um cartão com as descrições da reunião. Achei o negócio muito profissional e estranhei, mas fiquei desconcertado para mais perguntas. O homem não parecia muito à vontade com aquele assunto. Quando eu saí do consultório decidi procurar o endereço citado, pois não era muito longe dali. Era um hábito que eu tinha, sempre que tinha que me aventurar por bairros novos.

Logo cheguei em uma casa de esquina, rodeada por um lindo jardim. As janelas eram grandes e de vidro e madeira que não vedavam o interior. Então logo reparei nas várias poltronas e várias mesas e a porta e portões estavam abertos. Instantes depois vi um casal entrando e sentando na mesa e uma garota veio com um bloco de pedidos na mão. Era um restaurante? Procurei por placas de identificação e não encontrei... conferi o endereço do cartão e sim... era aquele o endereço. Espichei o pescoço e vi alguém de pé com um livro na mão...

Fui pra casa... quase não me agüentando. Mas a custo controlei minha ansiedade e no dia e hora marcados eu estava lá. Passei por aquele portão igual criança no primeiro dia de escola. Eu não sabia descrever, mas estava muito ansioso. A garçonete do dia anterior me recebeu e pediu que eu entrasse, pois já havia uma pessoa esperando. Avisou que hoje não seriam muitas pessoas, mas que começaria no horário.

Eu fiquei admirado com a simplicidade luxuosa da casa. Alguns adornos delicados enfeitavam os móveis pesados. Lindas pinturas do Realismo enfeitavam as paredes, mas tive pouco tempo para reparar, pois logo fui arrastado para uma espécie de salão, aos fundos da casa. E me assustei ao me deparar com uma linda moça, sentada num circulo improvisado, parecendo impaciente. Ao me ver tentou sorrir.

- Já sei... pela sua cara também foi pego de surpresa em alguma situação embaraçosa...

Eu não saberia explicar, mas alguma coisa muito forte vinha dela. Ela não me olhava, simplesmente, mas parecia me prender com o olhar astuto. Eu não consegui nem sorrir educadamente, menos ainda elaborar palavras. Ela me deixou de um jeito muito desconfortável e há muito eu não me sentia assim. Gostei dela. Seria casada? Não vi aliança...

Mas logo foram chegando mais pessoas e não pudemos nos falar. Um casal de idosos, parecendo adoentados. Outro idoso sozinho, um adolescente e sua mãe, duas moças. Logo o salão estava cheio e me lembrei da mocinha avisando que hoje haveria poucos pacientes. Quando faltavam dois minutos para o inicio programado, escutamos passos ao fundo. E escancarando à nossa frente, vieram ninguém menos que o doutor e a tal moça doida, de mãos dadas.

Meus olhos pregaram na imagem das mãos juntas e não consegui tirá-los dali. Eu ouvi quando ela cumprimentou cada um pelo nome e quando parou em mim eu levantei os olhos, muito envergonhado e sem saber por que, o que era pior. Por que eles estavam de mãos dadas?

- ora, ora... quem está aqui... senhor Gustavo, seja bem vindo... e se sentou junto da minha – eu vi, pelo canto do olho, a vizinha estreitando os olhos, perigosamente – a minha ilustre colega de profissão...

- você não é enfermeira...

- mas sou psicóloga... cuido da saúde mental... então estamos no mesmo barco, corpo e mente... temos muito trabalho juntas...

Agora eu vi a colega do lado fazendo uma verdadeira careta e sorri divertido. Mas uma voz enérgica se fez ouvir. O doutor estava sentado e apenas nos cumprimentou com um aceno discreto de cabeça.

- Antes de começarmos a reunião, gostaria de saber quem foi o linguarudo que falou pro meu marido o apelido dele...

Marido... apelido... então?!?!?! Se tivesse um buraco no chão eu enfiaria a cabeça nele.

- foi o senhor, seu João? Dona Rita? Fernanda? Hãn?

Muitas risadas desdentadas, outras tímidas, se seguiram. Eu senti um calor gostoso no meio daquelas pessoas simples e sorri. E de repente me dei conta que estava sendo observado pela minha vizinha. Eu quis perguntar como ela veio parar ali.

- Você também ouve vozes na sua cabeça?

Me senti muito estranho ao ouvir essas palavras de mim mesmo?

Ela falou baixinho.

- Não... pior... outro dia entrei numa cirurgia e operei igual médico... e só depois que terminou é que me falaram que eu fiz isso... essa daí - e apontou a doida com a cabeça - me disse que um espírito usou meu corpo para salvar a vida do paciente e que eu devia aprender sobre isso para poder me controlar...

- É... o seu caso parece ser mais grave que o meu...

Ela sorriu de um jeito muito gostoso. Gostei mais ainda dela. Depois voltamos nossa atenção para a moça, mas parecia que havia uma corrente de energia que nos conectava. Me senti intimo dela. Era uma sensação nova e muito boa.

A reunião foi muito rápida, mas depois conferi o relógio e vi que se passaram quase uma hora. O tema foi uma introdução ao estudo que é feito sobre o mundo espiritual, depois o doutor usou a palavra.

- alguns me perguntaram no consultório se eu acredito em espíritos – agradeci a discrição dele – eu já tive muitos problemas em assumir isso, oficialmente. Então fui convencido a não dar murro em ponta de faca. Por isso minha esposa adota esse método indireto, eu apenas pedi para ela não assustar meus pacientes, mas parece que ela está me desobedecendo – e se virou para o casal de idosos – dona Rita, como ela anda fazendo com a senhora?

A boa velhinha riu divertida.

- Ela me pede os meus biscoitos toda vez que vai me ver...

Depois ele se virou para mim e falou cerimonioso.

- Este elegante cavalheiro também foi atacado enquanto tomava um café em um local público... – e se voltou para a esposa, que sorria relaxada – qual é seu ponto, querida? Está sem dinheiro pra comprar o seu próprio lanche?

Mas a esposa não respondeu o marido. Ao contrario, se virou pra nós e falou profundamente.

- Eu nasci vendo espíritos... dizem que a mediunidade se manifesta na adolescência e inicio da vida adulta, mas eu fui o contrário... e sofri muito, porque não sabia o que acontecia comigo. E quando soube, não encontrei ajuda – e se virou para o marido - a ciência não me ajudou... meu corpo não me obedecia... e perdi muitos anos da minha vida tendo que dopar meu corpo pra eu ter algum controle sobre ele. E como consegui controlar? Aprendendo o que acontece com ele... em primeiro lugar... estudando esse fenômeno maravilhoso de intercambio com o mundo espiritual... por isso eu recomendei a todos que lessem os livros. Se vocês quiserem ler em um centro espírita, todos fazem o estudo desses livros. Mas talvez vocês não queiram se juntar a essa religião, tudo bem... o que vale é a intenção e não o culto externo... apenas que o centro espírita é a instituição mais qualificada para tratar desses assuntos... O médico não fala nada, vocês viram o depoimento do meu marido, as igrejas acham que é o diabo que tá no corpo... Mas uma coisa eu falo... não cai uma folha da árvore sem a permissão de Jesus... e se vocês nasceram assim, é porque existe um propósito nisso... a mediunidade é um terceiro olho que deve ser usada em favor do próximo... se você usar esse dom para seu benefício, estará contraindo grande dívida, acredite... por isso é importante estudar... E alguém sabe de que dívida eu estou falando?

Ninguém respondeu, mas todos nos sensibilizamos com o depoimento dela. Uma das moças perguntou, timidamente, como ela percebia a presença dos espíritos.

- eu vejo um espírito e uma pessoa e não sei dizer, rapidamente, quem é quem... preciso estudar os movimentos primeiro... eu falo mais com espíritos que com pessoas, por isso a minha inabilidade no trato com vocês... e como eu procuro escolher a companhia de espíritos mais evoluídos, o nível de exigência deles é muito alto. Eles acham que o sofrimento é bom... que a gente deve rezar pela vida dos nossos inimigos, porque eles nos fazem ser pessoas melhores, porque eles nos apontam nossos defeitos...

A moça ainda respondeu a mais perguntas e quando ela findou a reunião, eu lamentei. Eu nunca havia experimentado um nível de discussão tão profundo. As reuniões que eu participava eram apenas do escritório e do condomínio e nunca fui homem devoto a culto religioso. Então, não sobrava muita reunião pra eu ir. Mas quando a vizinha do lado se levantou tratei de acompanhá-la. Mas ela também não parecia com vontade de ir embora. Percebi que ela parecia cansada. Ao sondar.

- É que acabei de sair do plantão...

Conferi o relógio e era fim de tarde.

- mas meu plantão começou ontem a noite... tô direto... e teve muita urgência...

Fomos interrompidos pela mocinha que voltara e nos oferecia para tomarmos um café, antes de irmos. Fomos para os fundos, onde uma bonita mesa estava arranjada no jardim. Quando nos servimos e encostamos a um canto, o marido anfitrião veio ter conosco. E minha colega perguntou como eles haviam se conhecido. O homem sorriu apaixonado.

- Eu a conheci quando era estudante e fiquei muito intrigado com o caso dela. Fiz um estudo de caso dela e me comprometi a cuidar dela, já que ela era muito pobre e usava o serviço publico. Consegui internação em uma clinica particular pra ela e no meio do caminho me apaixonei por ela...

Mas a esposa apareceu e se aconchegou ao marido. Ele falou carinhosamente.

- minha querida... eles estão perguntando como nós nos conhecemos...

Ela sorriu bem grande antes de responder.

- nós nos conhecemos em outras encarnações e nos comprometemos a lutar juntos nessa em prol do avanço da ciência na área da saúde. A medicina não pode mais tratar só o corpo... os cientistas precisam de evidências para provar a interferência do espírito, nas doenças e na saúde. Então eu me ofereci de cobaia, pra ele, pra que ele e os colegas dele possam juntar evidências para publicarem material de estudo. É um trabalho de formiguinha, mas já é um começo...

Eu não me atrevi a nenhum comentário, mas minha colega era mais corajosa que eu.

- E esse arranjo... foi feito quando, mesmo?

- Antes da gente nascer... enquanto éramos espíritos errantes, procurando meios para evoluirmos... e um deles é ajudar no progresso do mundo... o avanço da ciência é só uma questão de tempo... logo muitas doenças estarão extintas, mas as doenças mentais, causadas pelo estresse e ansiedade, por exemplo, vão dominar o mundo... e a mente adoece o corpo. A doutrina ainda fala de germes espirituais que provocam as sensações... o desejo sexual descontrolado, o vicio... os microscópios não encontram bactérias mas elas estão lá...

Quando eles foram dar atenção para outras pessoas, entramos em um clima de reflexão. Mas logo minha colega me cutuca.

- E então... tudo o que ela falou faz algum sentido para você?

- talvez... não sei... o fato de eu ouvir vozes não interfere muito na minha vida, quer dizer, é fácil ignorá-los, comparado ao que você disse que aconteceu com você...

- É... eu fui em um médico e ele atribui o fato ao cansaço... eu fui nele e ele me convidou para esse grupo... e sinceramente eu gostei mais da explicação dela... o outro médico disse que se eu não melhorasse que teria que me internar pra observação... imagina eu em um hospício?!?!?

Eu tive que rir, mas só por causa da cara dramática que ela fez. Realmente seria um desperdício. Uma idéia súbita brotou na minha cabeça.

- Você gostaria de ir pra minha casa... ou sair pra comer alguma coisa?

Ela me olhou bem gostoso.

- Eu adoraria... adoraria mesmo... depois que me mudei pra cá não tive uma noite relaxante sequer... mas eu não dou conta... hoje não... talvez amanhã, depois de doze horas de sono... amanhã é sábado e eu to de folga esse final de semana...

- Então vai lá pra casa... eu tenho um quarto de hospedes que nunca é usado...

Eu estava empolgado igual criança e ela me olhou estranho.

- eu não sou esse tipo de moça... você está me confundindo...

Mas ela não parecia ofendida.

- Eu tenho certeza disso... nem eu sou o tipo de homem que convida qualquer mulher para sua casa... acontece que você é diferente... eu senti alguma coisa diferente entre nós... vem me dizer que você também não sentiu...?

- senti... senti sim... principalmente quando vi seu peito largo e imaginei que ele deve dar um bom travesseiro...

Eu ri com gosto e ela continuou.

- E sem falar o fato que eu nem sei seu nome... seus gostos... vai que você tem um quarto de tortura escondido na casa...

- não... eu sou um cara bem normal e previsível... rabugento... não gosto de nada fora do lugar... não bebo nem fumo... procuro comer coisas naturais... to tentando me matricular em uma academia... to tentando...

- eu falo muito, quando não estou cansada... vou entrando em casa e tirando a roupa e deixando por onde eu passo... eu deixo a louça se acumular na pia e só lavo quando eu tô de folga... lavo roupa só quando pego a última calcinha limpa... eu converso dormindo e me levanto as vezes sem saber... e minha amiga já me pegou com a chave na mão, de camisola...

- sonâmbula... você é sonâmbula? E o que mais você faz dormindo?

Ela pareceu pensar seriamente na resposta.

- papai e meu irmão faziam revezamento quando eu era pequena. Eles falaram que uma vez eu quis matar um homem e eles tinham que esconder a espingarda... a gente morava na fazenda...

- Eu troco os lençóis da cama, todos os dias... A propósito, meu nome é Gustavo...

- E o meu é Ana Catarina...

Eu não dei conta de segurar o riso.

- Ana... Catarina... nome... inspirador...

- É o nome das minhas duas avós... minha mãe quis homenageá-las...

- sua mãe deve ser uma pessoa muito interessante... quando posso conhecê-la?

Lucilia Martins
Enviado por Lucilia Martins em 06/10/2015
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