Um é pouco... três não é demais...

- Você ficou sabendo?

Me virei para ouvir melhor. Eu não gostava de fofocas, mas a voz dela me sugeriu ser algo importante. Mas não usei palavras pra demonstrar meu interesse, pois eu não queria que ela me confundisse com uma rede transmissora.

- A Cintia está grávida DE NOOOOVO...

Eu tentei relacionar de quem ela falava. Sim... era uma das secretárias que ainda estava de licença maternidade. E depois pegou férias atrasadas, para ficar mais tempo com o bebê. Rapidamente me veio à memória que ela foi pega de surpresa com a primeira gravidez e agora com uma segunda? Fiquei com pena... depois me lembrei que ela não devia ganhar muito e logo a situação financeira se complicaria. Nós não éramos muito próximas, mas mesmo assim não consegui tirar a situação dela da minha cabeça. Chegando em casa, comentei com minha mãe.

- mãe... existe alguma coisa pior do que se descobrir grávida ainda na licença maternidade?

Minha mãe estava fazendo bolo, parou de bater a colher para me olhar. Eu amava minha mãe. Há alguns anos eu saí de casa, mas o hábito e ir lá todos os dias se manteve.

- Claro, minha filha... descobrir que seus filhos estão usando droga, ou que seu marido está te traindo ou que todas as suas economias e sua casa estão penhoradas ou ainda que você não ama mais seu marido...

Eu não consegui segurar o sorriso. Ela continuou.

- ela é advogada? Por que senão poderá precisar de ajuda financeira... faça uma visita e veja se ela precisa de alguma coisa... eu posso conseguir um enxovalzinho lá do centro pra ela... e quando for leve um presente para a mãe... as pessoas têm o péssimo hábito de só ter olhos para o recém nascido e nós ficamos jogadas em um canto e isso é muito deprimente.

Nesse meio tempo meu pai entrou na cozinha e ouviu o depoimento dela. Depois de dar um beijo carinhoso na minha mãe, com o devido cuidado para não sujar sua camisa de massa de bolo, veio me beijar e se sentar perto de mim.

- Sessão melancolia?

Eu sorri. Meu pai era o máximo.

- Não... é que uma colega do escritório, uma das secretárias, está grávida do segundo filho, sem ser planejado e vim pedir...

- minha filha... não existe gravidez não planejada... ela pode não ter sido planejada conscientemente... mas com certeza foi planejada por alguém... pelos espíritos familiares ou por ela mesma, antes de reencarnar...

Eu e meu pai nos entreolhamos mas com o devido cuidado de não sorrir. Há muito, grandes discussões eram criadas tendo por base as idéias espiritualistas da minha mãe. Como meu pai abaixou a cabeça eu me aventurei.

- Mas esses planejamentos não levam em conta as condições financeiras da família? Pôr filho no mundo pra passar fome?

Minha mãe estava despejando a massa na forma e me olhou alguns segundos.

- Vai passar fome se a gente permitir, meu bem... caridade tem essa finalidade... socorrer momentaneamente alguém em dificuldade... hoje ela pode estar em situação delicada, mas daqui alguns anos são esses filhos que irão ampará-la na velhice. E você... quem vai te amparar?

Pronto. Eu e minha mãe sempre voltamos nesse ponto. Ela queria um monte de netos e eu tenho verdadeiro pavor à menção de filhos. E meu casamento de quase três anos a enchia de esperanças. Tento jogar essa responsabilidade para meu irmão mais novo, mas como ele nem namorada tem, recai sobre mim, sempre.

- Mamãe... nós já falamos sobre isso...

- sim... mas eu só acho que é minha responsabilidade te mostrar os vários pontos de vista nessa situação. Você já se colocou no lugar do Cacá?

É... discutir com minha mãe era impossível.

- Mãe... por que você sempre insiste nesse ponto? Não basta eu ter um marido e ser feliz junto dele? Se ele e eu estamos satisfeitos com a situação como está? Só nós dois em casa, sem nenhuma outra responsabilidade que nosso próprio bem estar?

Agora minha mãe havia colocado o bolo no forno e se sentou na mesa conosco e trouxe junto o café que havia coado. Senti a cor do meu rosto sumindo. Meu pai do meu lado parecia uma múmia. Ela se arrepiava quando demonstrávamos esse comportamento, que, segundo ela, era o cúmulo do egoísmo.

- por que nós nascemos?

A velha questão filosófica de onde vim, por que estou e para onde vou.

- não faço a menor idéia, mamãe... aliás... ninguém faz...

- Ninguém, virgula... a doutrina espírita tem uma explicação muito interessante... e se eu sou assim, do jeito que tanto incomoda vocês, é porque essa explicação me conforta. E por mais que vocês torçam o bico quando eu falo em vida espiritual, ninguém me deu uma versão mais coerente da coisa. Eu absolutamente não quero crer no nada, no vazio ou no sono profundo, após meu corpo morrer. Se não, por que tantos sacrifícios? Por que não aproveitar a vida, já que vamos tudo pro mesmo buraco?

Eu suspirei desanimada. Ninguém a vencia nos argumentos.

- Mas voltemos aos filhos... O mundo nasceu sem habitantes, sem desenvolvimento, sem ciência, sem progresso. Foi o homem, ao longo dos anos, que foi descobrindo as coisas, aplicando, transformando, desbravando. Então, um dos objetivos do nascimento sem dúvida é o bom uso e eficaz da natureza e de nossa inteligência, tornando nosso mundo um lugar agradável pra se viver.

Pausa para um gole de café.

- outro motivo que justifica o nascimento é justamente a oportunidade de vida que esse mundo oferece. Na escala dos mundos possíveis de serem habitados, esse é um dos mais cobiçados. Aqui o espírito faz uso de um corpo tão grosseiro que precisa ser carregado e alimentado, e protegido das intempéries da natureza. Há ainda aqui, o avanço da ciência que possibilita inúmeros prazeres, e inúmeras descobertas cientificas para o combate às doenças e intempéries da natureza. O mundo é um local de grandes desafios, conflitos, prazeres... e grande oportunidade de mostrarmos nossa compaixão, porque onde há fome e dificuldade há oportunidade de trabalho caridoso, de ofertar carinho e amparo.

Pausa para respirar e digerir um pouco.

- Quando eu e seu pai começamos a namorar, nós fazíamos planos de casamento para dali a algum tempo. Eu queria terminar a escola e ele conseguir um emprego melhor. Nós nos casamos e logo tentamos engravidar, mas você demorou a vir... um medo de não ter filhos começou a nascer e a ansiedade tomou conta de mim. Mas quando eu fiquei grávida de você, e depois do seu irmão... minha vida ganhou um novo sentido. Eu não tenho palavras pra me expressar, mas eu me sentia completa. Era como se eu desencarnasse naquele momento, que eu já havia feito a minha parte. E é estranho porque eu nunca tive sonhos de profissão importante, nunca quis mudar o mundo. Mas eu tinha certeza que eu teria uma família... é como se eu viesse nesse mundo só para ter vocês...

Ela refletiu alguns instantes.

- quando eu comecei a estudar a vida de Jesus eu me interessei pela história da mãe Dele, Maria. Ela foi uma mulher como eu e você... sem nada de especial ou sobrenatural... mas ela defendeu seu filho com unhas e dentes... fugiu pouco antes do nascimento para salvar a vida do seu filho... o criou com dignidade... lhe ensinou bons conselhos.... lhe ensinou um profissão... e Ele fez o que fez... então talvez não vejamos importância na nossa existência, talvez por que não cabe a nós essa reflexão... mas se a vida te mostra os caminhos, não é sábio se desviar dele. Você tem um marido que te ama e você o ama, um bom emprego, um teto confortável, estabilidade emocional e financeira, idade adequada... o que mais você quer?

Quando eu achei que ela havia acabado.

- E tem mais uma coisa importantíssima... não podemos esquecer a teoria da reencarnação... isso quer dizer que nascemos nesse mundo várias vezes... sempre com um corpo e uma história de vida diferentes... eu por exemplo, tenho certeza que já fui uma grande costureira... Lembra aquele vestido de fita cor de rosa que eu fiz pra você? Então... fiz praticamente sozinha e como eu aprendi? A única coisa que levamos desse mundo são as nossas aquisições espirituais... nossas virtudes e nossos defeitos... como o destino do espírito é a pureza dos anjos, que todos nós estamos fadados a ser anjos, o caminho é eu me depurar, perdendo defeitos e adquirindo virtudes e é aqui na terra que eu perco a maioria dos meus defeitos. Então quanto mais defeitos eu tenho, segundo o ensinamento e o critério dos espíritos, mais tempo eu devo viver aqui na Terra... E como eu perco esses defeitos? Num lugar que tanta gente passa dificuldade é mais fácil eu aprender a doar um pouco do que é meu do que se eu vivesse em um mundo sem pessoas passando fome, não acha? Um dia nosso coração amolece, um dia eu tenho vontade de ajudar, um dia eu canso de lutar e decido ceder... foi assim que os duelos e as guerras acabaram... o homem está aprendendo a ver o que realmente é importante...

Ela finalmente se calou. Meu pai se levantou e bebeu um gole de água. Eu sabia que ele acreditava nas teorias dela, mas ele não tinha coragem de admitir. Meu irmão concordava tanto que até ia com ela no centro, toda semana. Eu definitivamente ainda não havia me convencido. Mas não refutava de todo essas idéias mirabolantes, afinal, quem estaria com a razão? A ciência diz que não há vida em outros planetas, porque não há atmosfera respirável lá. Minha mãe diz que não há vida como a conhecemos, mas que esses planetas são os mundos dos espíritos superiores, que não precisam mais desse corpo grosseiro para sobreviverem. Que eles não respiram oxigênio e nem se alimentam de carne. Que a substancia que os mantém vivos é absorvida pelo corpo espiritual deles, através da atmosfera. Francamente, essa discussão me cansava. Mas minha mãe se levantou, após comermos, e enquanto levava a louça suja para a pia e embalava um pedaço do bolo para meu marido falou tranquilamente.

- Mas não se preocupe que se você tiver que ter filhos, terá... você já viu mulheres que fizeram ligadura e depois engravidaram? Ou aquelas que juram ter tomado a pílula direitinho? Então... elas estão falando a verdade e realmente podem dormir com as consciências tranqüilas, por que fizerem o que cabia a elas para evitar a gravidez. Mas, elas sabem o que Deus espera de nós? A nossa razão, que analisa condições financeiras e nossa boa vontade, pode pedir uma coisa, mas e nosso compromisso com os espíritos que precisam reencarnar? O útero materno é bendita porta para reparação...

Eu fiquei pasma com aquela informação, pra não falar indignada. Eu tomo pílula religiosamente e nem quero pensar nisso. Como minha mãe vive de consultório em consultório, decidi investigar.

- E a senhora já perguntou pro médico porque isso acontece?

- Claro...ele falou que a pílula é hormônio e qualquer indisposição da mulher pode fazer ela não ser absorvida. Por exemplo uma diarréia, um estresse... e os espíritos podem nos causar indisposição, se é do interesse deles que demos guarida a um bebê... um lindo bebê... e quanto á laqueadura, ele disse que não tem explicação, pois já teve paciente dele que ele cortou e separou as tubas e mesmo assim elas engravidaram. É o verdadeiro milagre... viu? Até a medicina reconhece o poder divino...

Fui pra casa pisando em ovos. Por que ela nunca havia me falado aquilo? Estremeci só de pensar numa dessas possibilidades por que, no fundo, eu sabia que minha mãe estava certa. No escritório brincávamos que a água estava contaminada e todas as mulheres juravam se cuidar. Esperei meu marido tomar banho e ir para a cozinha, pois tínhamos o hábito de fazer o jantar juntos enquanto compartilhávamos os assuntos do dia. Era um momento gostoso e uma criança roubaria toda nossa atenção. Mas quando estávamos comendo ele percebeu meu silêncio e deu um chute certeiro.

- foi na sua mãe hoje?

Eu o olhei e parei admirando seu belo rosto, ao mesmo tempo tentando lembrar por que ele se apaixonara por mim. Ele era um homem bom e eu sei que ele queria filhos.

- por que nós não falamos de filhos? Quer dizer... eu sei que combinamos não falar nisso por um tempo, mas minha mãe acha que nós precisamos de filhos, que você sente falta de filhos... ao mesmo tempo ela fala que quando Deus quiser Ele vai nos mandar os filhos que precisarmos ter... E eu estou com medo... quer dizer... se eu ficar grávida hoje eu não sei como eu vou reagir... eu não sei se eu vou amar meu filho como ele merece... Por que eu sou assim?

-Três filhos... outro dia eu sonhei que tínhamos três filhos... tudo escadinha... – eu soltei o garfo no prato – mas você estava muito feliz no sonho... nós não morávamos no apartamento e sim numa casa com um jardim em volta da casa e as crianças corriam brincando com o cachorro... daí eu perguntei pra sua mãe sobre os sonhos, até que ponto eles podiam ser reais, acontecer ou se eram só fruto da nossa imaginação. Ela disse que alguns sonhos podem ser premonitórios, outros podem ser uma lembrança do passado e outros ainda podem ser as lembranças dos passeios que o espírito dá enquanto o corpo está descansando. Daí me perguntou se alguma vez eu sonhei alguma coisa que tenha acontecido e eu me lembrei do nosso casamento... até te conhecer eu jurava que iria morrer solteiro, pois eu havia sonhado comigo no altar, esperando uma noiva, sendo que nem apaixonado eu estava.

Ele mastigou mais um bocado.

- Por que você é assim? Eu perguntei sua mãe a mesma coisa... por que você tem esse pavor de filhos... ela me falou que deve ser algum trauma de vidas passadas mas que você vai esquecer quando segurar seu filho nos braços... ela disse que é uma emoção que não tem explicação... que o amor de mãe é o mais sagrado e puro do universo...

- mas se eu o evito o máximo que eu posso...

- não... você não evita tanto assim... você vive esquecendo o horário de tomar...

- mas... como faremos com a questão financeira? Três filhos é... suicídio...

- nem tanto... podemos reduzir gastos, fazer um financiamento para a casa... arrumar um emprego que pague melhor... e não virão os três de uma vez... tinha um garotinho maior... uma garotinha e... outro garotinho... esse era mais bebezinho... e você estava absolutamente linda... radiante... mas eu não estou com pressa... já rezei pro nosso anjo da guarda pra ele ir monitorando e quando achar que estamos prontos, que ele nos mande quantos filhos pudermos ter...

- Rezando? E desde quando você reza?

- desde quando eu gostei da idéia de ter alguém olhando por nós... nos guiando... eu me sinto mais tranqüilo sabendo que tem alguém comigo... e absolutamente não gosto da história de que nossa história morre junto com nosso corpo...

- é... to bem vendo que eu sou minoria aqui... e o que mais você e minha mãe andaram falando pelas minhas costas?

- ah! Muita coisa... muita coisa mesmo... ela adora me mostrar o seu álbum de bebê, principalmente aquela foto que você corre pelada na sala...

Ele não tocou mais no assunto. Depois se levantou e foi lavar a louça. Eu tentei imaginar quantos maridos existiriam assim no mundo. Talvez eu tenha tirado a sorte grande e nem estou dando valor. A noite, quando nos deitamos, me lebrei de uma coisa importante.

- E se nossos filhos forem aquelas crianças mal educadas que batem no pai e na mãe?

Ele já estava sonolento quando me respondeu.

- Não serão... segundo sua mãe é só irmos corrigindo os defeitos na medida em que eles forem aparecendo... que filho grande não aprende a obedecer, então que temos que mostrar quem manda, desde pequenos...

Quando eu percebi que ele pegou no sono, decidi conversar com o tal anjo da guarda. Disse a ele que me ajudasse a aceitar a idéia dos filhos, que eu queria querer ter filhos, não por mim, mas por meu marido.

Dormi e sonhei com três crianças em volta de mim. Eu estava sentada em um gramado e os meninos pulavam no meu pescoço e me beijavam. Acordei com a sensação do beijo e um grande sorriso nos lábios. Olhei para meu marido que ressonava suavemente e comecei a aceitar a idéia das três crianças em volta de mim. Era pouco, mas definitivamente era um começo.

Lucilia Martins
Enviado por Lucilia Martins em 07/10/2015
Código do texto: T5407673
Classificação de conteúdo: seguro