CONTO DE UMA NOITE DE CARNAVAL

CONTO DE UMA NOITE DE CARNAVAL

Prof. Luiz MASCARENHAS*

A noite já ia alta. Ao abrir a janela Odete viu o luar prateando o chão da pracinha e entrando sorrateiro assoalho afora...Sentiu uma brisa leve e fresca a soprar-lhe as faces. Com certeza, pelo cheiro de terra molhada, havia chovido pelas bandas do Bom Jesus. Correu os olhos na direção da Matriz e nada viu além de um cachorro preguiçoso que dormitava junto a calçada. Hoje, os festejos do carnaval se dão no parque de exposições da cidade, deixando o centro histórico deserto.

Debruçada no parapeito, ainda deu uma longa olhada pela vizinhança. Suas vistas cansadas enxergaram apenas lembranças, antes de se afastar da janela.

Com a dificuldade habitual para caminhar, segurou o castão de sua bengala e foi lentamente em direção ao velho sofá, já meio surrado, como surrada a sua própria vida.

Deu um longo suspiro, pois o suspirar dos velhos é um falar do coração, um desejo da volta. Do retorno a um tempo perdido e bem vivo em suas memórias, a perseguir diuturnamente o pensamento, remexendo todas as carcomidas emoções.

Fitou longamente toda a sala de estar, mal iluminada pelo antigo lustre, onde faltavam diversas lâmpadas e as aranhas teciam muitas rendas. Os móveis, as cadeiras altas de palhinha, o quadro dos Sagrados Corações, os retratos da família, o cabideiro aonde seu pai colocava o chapéu e o sobretudo ao chegar da rua ou a mãe depositava a sombrinha molhada da chuva; o espelho em seu meio, hoje todo manchado pelo tempo e que continha apenas os reflexos pálidos e esmaecidos de figuras presas eternamente em seu interior e que somente ela os podia ver...e ainda a mesinha de canto com o telefone, aparelho tão mudo e que não a ligava mais a quase ninguém, com uma agenda de páginas amareladas, cheias de nomes, daqueles que não mais podiam atender seus chamados...

Diante de si, na mesinha de centro uma grande caixa de papelão; um de seus muitos “guardados” como habitualmente dizia.

Há muito que sofria de insônia. Passava as tardes cochilando e a noite o sono não vinha mais e em seu lugar, Morfeu enviava uma grande caixa recheada de recados, rostos, sorrisos, lágrimas, cenas há muito vividas...tudo isso envolto nas brumas e ecos do passado- seu único e fiel companheiro.

Ouviu os ruídos do velho relógio de pêndulo, lá da sala de jantar, a preparar-se para lembra – lá insistentemente do correr do tempo por entre as velhas paredes de sua casa.

Meia noite...A hora imaginária dos mistérios.

Odete abre sua caixa e dela começa a retirar suas memórias. São cartas, cartões, fotografias, santinhos...

Ali estão seus parentes, amigos, conhecidos e tantos outros que por ela passaram ao longo destes noventa e dois anos.

Atrás de alguns retratos, dedicatórias ...”para Odete com carinho...”

Afinal, qual seria o propósito disso tudo?

Para que afinal, vir a este mundo, amar, ser amada e perder tudo ao longo do tempo? Seria essa a brincadeira de Deus? Nos dar e nos tirar, só para observar nossa dor?

“Que bobagem”, repensou ela, “dor e amor, luz e cruz, tantos sinônimos a conviver dentro em nós”.

Em meio a tantas coisas e papéis velhos, Odete percebeu algo embrulhado em papel celofane. Tinha um certo volume e parecia quebradiço. Desenrolou tudo junto ao colo, com muito cuidado. Vê surgir um pequeno ramalhete, seco, com uma fita azul desbotada em sua volta. Busca na memória, o que ou melhor de quem seria aquilo?

Para sua surpresa, junto ao embrulho, um cartão amarelado e com apenas um dizer: “vou amar-te sempre. P. 1944”.

Deitou as flores secas no colo e o cartão pôs junto ao peito e seus olhos buscaram o passado...

Neste instante, retorna há mais de setenta anos passados. Ela, moça feia, aos seus vinte anos!

“Odete, apresse-se com o almoço, retorno para a tipografia mais cedo hoje e lhe deixo na porta do Colégio. Irmã Cecília quer publicar algo na Gazeta sobre a visita do sr. arcebispo.” Era a voz de seu pai, Dr. Hercílio, proprietário e redator-chefe da Gazeta, respeitado jornalista e político da região.

Ambos a bordo do vistoso Oldsmobile , pararam à porta do imponente Colégio da Imaculada. Seu pai desceu, deu a volta pela frente do automóvel e abriu-lhe a porta, Odete saiu segurando os livros e as luvas ( as quais não tivera tempo de calçar dada a celeridade exigida pelo pai) com o braço esquerdo, a fim de ter a mão direita livre- precavida como era- no caso de ter de tomar a benção ao Cônego Teixeira Senna – o rigoroso e sisudo diretor.

“Boa tarde, reverendo cônego”- disse o Dr. Hercílio, já se inclinando a oscular a mão do clérigo, todo sorridente (para com algumas poucas personalidades de destaque da sociedade- bem entendido) e em seguida, beijou Odete na testa que também por sua vez, cheia de mesuras, beijou a mão de seu pai e em ato contínuo a da impoluta figura do cônego, com sua batina esvoaçando ao vento no meio da larga escadaria do colégio, segurando o seu saturno ( seu grande chapéu redondo) com a mão esquerda.

Aqui surge um outro personagem nesta cena.

E foi neste interim que eles cruzaram pela primeira vez o olhar.

Ele descia apressadamente as escadas, em elegante terno cinza de casimira inglesa, com a corrente do relógio a atravessar-lhe o peito, preso ao colete branco. Os cabelos negros, disciplinadamente partidos e arrumados com a famosa glostora brillantina e os óculos arredondados que lhe emprestavam um ar intelectual. Seu porte garboso e ombros largos causavam muito boa impressão aos que o viam. “Que belo cavalheiro” –pensou consigo Odete; afinal era uma jovem professora e em idade casadoira.

“Está atrasado, Dr. Paulo Taques!”- irrompeu a imperiosa voz do Cônego Senna. “Sim, reverendíssimo, deveras a Irmã Cecília retardou-me um tanto”, retrucou-lhe o jovial e apressado advogado; não sem perder alguns instantes detendo o olhar sobre a singular beleza daquela professorinha e baixando o mesmo ao perceber o esfuziante olhar do Dr. Hercílio.

E o ramalhete? Longa história... Posso apenas dizer que lhe foi dado em uma noite do carnaval daquele ano...

De repente, um grande barulho se fez ouvir. As janelas bateram devido a uma forte rajada de vento...Odete despertou e de novo olhou ao seu redor a grande sala vazia... O relógio soou uma única e forte badalada que atravessou-lhe as lembranças. Hora de se recolher- mais uma vez. Com muito jeito, guardou o ramalhete seco e o cartão amarelado. Ao recolher as outras cartas e diversos papéis, passou por um santinho – daqueles de lembrança de falecimento - aonde leu: “Em suas orações, lembrai-vos da boníssima alma de Mons. Paulo Vicente Taques” – RIP – 1919 + 1998. Seus olhos azuis encheram-se de lágrimas e novamente, deu um longo e sentido suspiro.

“Vou amar-te sempre”...e com essas palavras na mente e no coração, recolheu-se ao seu quarto...

* Bacharel em Direito e História pela Universidade de Itaúna

Diretor da EE “Prof. Gilka Drumond de Faria”

Escritor e 1º Secretário da Academia Itaunense de Letras

Autor de “Crônicas Barranqueiras”

Luiz Mascarenhas
Enviado por Luiz Mascarenhas em 06/02/2016
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